A Administração Pública possui o poder de autotutela, segundo o qual tem a permissão de rever seus atos e anulá-los ou revogá-los em casos de ilegalidade, ou inoportunidade e inconveniência, respectivamente. No dizer de Maria Sylvia Zanella di Pietro

 ...É uma decorrência do princípio da legalidade: se a Administração Pública está sujeita à lei, cabe-lhe, evidentemente, o controle da legalidade. Esse poder da Administração está consagrado em duas súmulas do Supremo Tribunal Federal. Pela de nº 346: ´a administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos´; e pela de nº 473 ´a administração pode anular os seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.[1]

Ocorre que, referido poder não pode ser exercido indistintamente, pois se encontra inserido em um ordenamento jurídico, impondo-se a sua adequação a outros comandos legais.

O primeiro grande limite à Autotutela está na necessidade de se verificar o Devido Processo Legal, com Ampla Defesa e Contraditório ao interessado, sempre que a sua aplicação possa levar a restrição a direito de terceiro. No dizer de Adilson Abreu Dallari:

“Isso significa uma severa restrição ao poder de autotutela de seus atos, de que desfruta a Administração Pública. Não se aniquila essa prerrogativa; apenas se condiciona a validade da desconstituição de ato anteriormente praticado à justificação cabal da legitimidade dessa mudança de entendimento, arcando à Administração Pública com o ônus da prova. A ausência ou inconsistência da motivação acarreta a nulidade do ato de tutela”[2].

Para Romeu Felipe Bacellar Filho:

 “Na esfera administrativa, não pode haver privação de liberdade ou restrição patrimonial, sem o cumprimento do seguinte pressuposto: a consagração legal do processo administrativo em sentido constitucional.

A acolhida do devido processo legal administrativo assegura o contraposto para o cidadão frente ao poder da Administração de autotutela do interesse público”[3]

Desse modo, fica evidente que não obstante exista o Poder de Autotutela ele não pode se sobrepor aos interesses de terceiros, sem que a esses seja garantida a possibilidade de manifestação, aí entendida a ampla defesa e o contraditório.

Não se pode admitir que a Administração Pública tome medidas unilaterais que afetem direitos de terceiros sem que o faça mediante o Devido Processo Legal, através do qual se oportuniza a manifestação prévia do interessado, fazendo valer os princípios constitucionalmente fixados da Ampla Defesa e do Contraditório.

Afinal de contas ampla defesa no dizer de Romeu Felipe Bacellar é garantida e “não se questiona as razões para oposição, simplesmente assegura-se-lhe a oportunidade de faze-la”[4], enquanto que o contraditório nada mais objetiva do que “assegurar às partes equivalente possibilidade de influir na formação do convencimento do orgão julgador, no curso de todo o processo. Trata-se de um conteúdo positivo, apto de ir além da mera oposição ou resistência ao agir alheio”[5]

No dizer de Carmem Lucia Antunes o processo administrativo é indispensável, pois “...o patrimônio jurídico do interessado pela prática do ato é atingido”, impondo-se, “...para a sua ciência e para que ele, inclusive, possa se contrapor ao desfazimento do ato, oferecendo argumentos no sentido de sua manutenção ou da manutenção de seus efeitos”[6]

Assim a idéia de ampla defesa e contraditório não incide apenas nos casos em que se fale em penalidade, mas pelo contrário, devem ser respeitadas sempre que o ato venha a atingir terceiro.

É o que se extrai da doutrina de Romeu Felipe Bacellar Filho, segundo a qual “As garantias constitucionais apresentam. Por sua vez, dupla funcionalidade. Atuando, subjetivamente, na tutela de direitos dos administrados, comportam-se como “garantias dos administrados”, e objetivamente, ao prevenir e remediar violações do direito objetivo vigente, como “garantias de legalidade”.”[7]

Ocorre que, sempre que uma decisão gere efeitos sobre terceiros, especialmente causando restrição a direitos, não se pode olvidar de instaurar-se o competente processo administrativo, que “age como instrumento de proteção do individuo perante a ação daquela competência”[8], e nada mais é do que o respeito ao Devido Processo Legal, constitucionalmente garantido no artigo 5º, LV, segundo o qual:

Art. 5º (...)

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes

Para Romeu Felipe Bacellar FiIlho “O art. 5º, inc. LV, determina a incidência do processo administrativo na presença de litigantes e acusados”[9], e acrescenta que “O reconhecimento da lide ou litígio administrativo passa pela compreensão de que o processo será exigido quando houver a real possibilidade de atingimento da esfera jurídica de determinada pessoa por uma especifica decisão administrativa”[10].

Desse modo, não se fala em Devido Processo Legal apenas em situações que existam acusados, ou que se vise a aplicação de uma pena, mas sempre que um ato possa atingir direitos de terceiros, garantindo a esses a possibilidade de manifestação prévia.

Ainda, pode-se falar em outros limites a autotutela, e que se verificam em razão de sua adequação ao meio jurídico no qual está inserida e que estabelece outros princípios a serem observados, e que se aplicam a Administração Pública, dentre eles os princípios da Razoabilidade, Proporcionalidade, Boa-fé, Segurança Jurídica e outros. Nessa situação, deverão os princípios serem observados sempre que uma a Administração Pública venha a agir e especialmente quando atinja terceiros.

Uma limitação legal criada especialmente com vistas a garantir referidos princípios pode ser verificada na Lei 9.784/99, que disciplina o processo administrativo no âmbito federal, mas que, diante de omissões legislativas estaduais e municipais pode ser considerada ao menos como orientação para aplicação nessas esferas de poder. Referida legislação em seu artigo 54 estabeleceu um prazo decadencial, limitando o Poder de Anulação dos Atos, trazendo a Boa-fé como requisito fundamental, nos seguintes termos:

Art. 54 O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

§ 1º. No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.

§ 2º. Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato, ser garantidas através do devido processo legal.

Assim, verifica-se que a legislação mencionada limitou o poder de autotutela, justamente visando resguardar os direitos daqueles que poderiam vir a ser atingidos por decisão administrativa que lhes fosse desfavorável, estabelecendo prazo para a revisão dos atos, privilegiando a boa-fé e a segurança jurídica.

A utilização por analogia de mencionada legislação é defendida por Romeu Felipe Bacellar que concluiu “se a prescritibilidade da pretensão punitiva da Administração Pública consubstancia principio constitucional expresso, a inexistência de lei versando sobre o prazo prescricional jamais poderá levar à imprescritibilidade, devendo o intérprete socorrer-se da analogia para clmatar eventuais lacunas”.[11]

É nesse sentido que deve se dar o agir administrativo, sempre buscando resguardar os direitos daqueles que de boa-fé agiram, e que não podem viver sob insegurança jurídica.

Sérgio Ferraz e Adilson Dallari defendem justamente a análise da boa-fé em cada caso concreto:

A boa-fé é um elemento externo ao ato, na medida em que se encontra no pensamento do agente, na intenção com a qual ele fez ou deixou de fazer alguma coisa. É impossível perscrutar o pensamento, mas é possível, sim, aferir a boa (ou má) fé, pelas circunstâncias do caso concreto, por meio da observação de um feixe convergente de indícios (...) no processo administrativo, no tocante à decisão de validar ou invalidar um ato, de manter ou desconstituir uma situação jurídica, de aplicar ou não uma penalidade, a boa-fé do particular envolvido deve ser levada em consideração, pois sua intenção é efetivamente relevante para o Direito. Essa relevância está expressamente ressaltada no art. 2o, IV, da Lei 9.784, de 1999, e reiterada em seu art. 4o, II[12]

Assim, pode-se concluir que não obstante o Poder de Autotutela exista para a Administração Pública, ele não pode ser exercido ignorando-se todo o ordenamento jurídico em que está inserido, encontrando limites que visam justamente garantir o direito de terceiros e que não podem ser colocados de lado especialmente porque estamos inseridos num Estado de Direito.

Notas:

 

 

[1] DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 6a ed. São Paulo : Atlas, 1996, p. 66.

[2] DALLARI. Adilson Abreu. Os poderes administrativos e as relações jurídico-administrativas. In RTDP, São Paulo : Malheiros, 1999, v.24, p.69.

[3] BACELLAR FILHO. ROMEU FELIPE. Processo Administrativo Disciplinar. Ed Max Limoned. 1ª Ed. 1998. p. 67

[4] BACELLAR, FILHO. ROMEU FELIPE. Processo Administrativo Disciplinar. Ed Max Limoned. 1ª Ed. 1998. p. 304

[5] BACELLAR, FILHO. ROMEU FELIPE. Processo Administrativo Disciplinar. Ed Max Limoned. 1ª Ed. 1998. p.233

[6] ANTUNES, Carmem Lúcia. Princípios Constitucionais do Processo Administrativo no Direito Brasileiro. In RTDP, São Paulo : Malheiros, 1997, v. 17, p.24.

[7] BACELLAR FILHO. ROMEU FELIPE. Processo Administrativo Disciplinar. Ed Max Limoned. 1ª Ed. 1998. p. 61.

[8] BACELLAR FILHO. ROMEU FELIPE. Processo Administrativo Disciplinar. Ed Max Limoned. 1ª Ed. 1998. p. 62.

[9] BACELLAR FILHO. ROMEU FELIPE. Processo Administrativo Disciplinar. Ed Max Limoned. 1ª Ed. 1998. p. 69

[10] BACELLAR FILHO. ROMEU FELIPE. Processo Administrativo Disciplinar. Ed Max Limoned. 1ª Ed. 1998. p. 72

[11] BACELLAR, FILHO. Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. Ed Max Limoned. 1ª Ed. 1998. p. 381

[12] Ferraz, Sérgio; Dallari, Adilson Abreu. Processo administrativo. Malheiros: São Paulo, 2000, p. 83.

 

Como citar o texto:

QUEIROZ, Vanessa..Limites a autotutela. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 190. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/1441/limites-autotutela. Acesso em 5 ago. 2006.

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