A palavra contrato talvez induza a uma idéia de várias páginas escritas de forma a resguardar o interesse, sobretudo, do contratante. Estudiosos do Direito, entretanto, em seus compêndios valiosos visando esclarecer e orientar a disciplina contratual, definem a palavra contrato não apenas de forma a beneficiar apenas um lado, no caso a pessoa que está contratando. Corresponde a obrigações e vontades para ambos os lados, tanto para o contratante como também para o contratado. E mais, o contrato, dependendo da forma que a lei o exigir, nem dependerá da forma escrita para se tornar válido, bastando o acordo de vontades verbalmente estipulado, a exemplo do contrato de mandato (art. 656 do Código Civil). Nem requer uma forma complexa, com frases de difícil compreensão, podendo qualquer pessoa que figure como contratante redigir seu próprio contrato, assentando os pontos acordados, datando, assinando etc.

Os contratos celebrados com a Administração Pública, ressalvados os casos em que a lei o permite, em regra, devem ser formalizados por escrito (art. 60, parágrafo único, da Lei 8.666/93) e necessariamente preencher alguns requisitos, como cláusulas obrigatórias. Até que se formalize o instrumento de contrato, a Administração Pública, em decorrência dos princípios de legalidade, moralidade, impessoalidade e eficiência, não pode contratar indiscriminadamente, devendo instaurar um procedimento licitatório adequado, pelo qual todos os interessados concorrerão em iguais condições de participação para, ao final, optar pela proposta mais vantajosa e contratar com o vencedor.

Além dos entraves e dificuldades, impostas pela própria lei de regência, a uma contratação célere, tendo em vista as diversas etapas a serem percorridas, há também os prazos para a interposição de recursos das decisões administrativas proferidas no curso do procedimento, o que conduz muitas vezes a prejuízos irreparáveis para a Administração Pública. Há, também, as possíveis injustiças cometidas contras os próprios contratados pelo fato de ser permitido ao Poder Público acolher ou não as razões do recurso, sem, contudo, um criterioso método de julgamento. Consideremos o seguinte exemplo.

Uma sociedade empresária firmou contrato com a Administração Pública com prazo de vigência de um ano. Ocorre que quatro meses depois a mesma se vê impossibilitada de honrar em dia com os compromissos assumidos e é notificada pelo departamento responsável a continuar executando o contrato, sob pena de se aplicar as sanções impostas pela Lei de Licitações, em seu art. 86. A sociedade, diante da notificação, apresenta suas razões, alegando, em suma, que o descumprimento parcial deveu-se a uma falha no registro do novo contrato social da sociedade, por exemplo, mudança de endereço, na Junta Comercial, o que ocasionou o indeferimento do requerimento para emissão de notas fiscais junto ao órgão fazendário. Eis o impasse, impossibilitada de emitir notas fiscais, será justo punir a sociedade empresária? Pode a Administração deixar de aplicar a multa contratual, mesmo sofrendo prejuízos em razão do atraso na entrega do objeto? Neste caso, imprescindível se ater à conduta da sociedade, a fim de poder aferir até que ponto pode-se atribuir-lhe a responsabilidade pelo atraso, no caso de ter agido com intenção (dolo) ou culpa, não bastando apenas o resultado.

De início, já se pode descartar a prática intencional por parte da contratada quanto ao retardamento da execução do contrato, uma vez estar justificado e demonstrado pelo requerimento junto à Administração Fazendária para emissão de novos documentos fiscais. Resta saber, então, se houve a culpa de sua parte; para tanto, façamos uma análise nos institutos relacionados com a aplicabilidade de penas, qual seja, o Direito Penal e seus conceitos.

A culpa consiste numa prática não intencional de uma conduta juridicamente reprovável, faltando por quem a pratica, o devido cuidado para com o resultado, ou o modo como conduz seus passos, de maneira descuidada. Quando se pretende aplicar as sanções previstas no instrumento contratual firmado com o órgão público, mesmo que a regra permita não se discutir a culpa nos contratos, também não se pode admitir a responsabilização da conduta se ausente a culpa, ou também quando não for diretamente responsável pelo resultado, não se aplicando, assim, a máxima “qui in re illicita versatur etiam pro casu tenetur”, ou seja, quem se conduz de modo irregular responde também pelo acaso. Num exemplo clássico de Maximilianus Cláudio Américo Führer e Maximiliano Roberto Ernesto Führer, em “Resumo de Direito Penal”, 4ª edição, “mesmo que um motorista conduza seu veículo pela contra-mão, ou com freios defeituosos, não poderá ser responsabilizado penalmente por fato lesivo que venha a ocorrer por causas outras, totalmente alheias às irregularidades apontadas e sem que haja culpa de sua parte”.

A interpretação do caso presente, por ser atribuível o resultado danoso para a Administração, a princípio, pelo menos até a data do protocolo junto ao órgão fazendário, leva-nos a enquadrá-la no conceito de culpa, sem dúvida, por ter sido negligente para com o prazo de vencimento de suas notas fiscais e, conseqüentemente, inadimplência contratual; por outro lado, não é possível culpá-la por todo o transtorno, pelo menos até a data de entrada do pedido, o que só aconteceu, talvez, nessa hipótese, após o primeiro atraso na execução.

Cabe fazermos o confronto com o que dispõe os artigos 70, 78 e 86 da Lei 8.666/93, ipsis litteris:

“Art. 70. O contratado é responsável pelos danos causados diretamente à Administração ou a terceiros, decorrentes de sua culpa ou dolo na execução do contrato, não excluindo ou reduzindo essa responsabilidade a fiscalização ou o acompanhamento pelo órgão interessado.”

 

“Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:

(...)

V - a paralisação da obra, do serviço ou do fornecimento, sem justa causa e prévia comunicação à Administração;”

“Art. 86. O atraso injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato.”

Os artigos que aludem às possibilidades de aplicação de sanções sempre enfocam a necessidade da conduta culposa, pelo menos, por parte da contratada. Além do mais, há que se levar em consideração a redação dos artigos, onde apenas, e friamente, mencionam as conseqüências, abstendo-se de definir com clareza e precisão qual a conduta ou até intenção seria aplicável àquelas penalidades. É princípio básico de toda condenação que “nulum crimem, nulla poena sine lege”, disposto no art. 5°, inciso XXXIX da nossa Constituição Federal.

A lei deve definir com clareza não só as sanções, mas também, e, sobretudo, a conduta condenável, dispondo com inequivocidade a conduta proibida, o que, mais uma vez, se for bem aproveitada, pesa a favor da contratada. Diz o art. 19 do Código Penal que “pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”, e, só se pune determinada conduta culposa havendo previsão expressa (art. 18, parágrafo único do Código Penal).

Poderia a Administração cogitar uma espécie de culpa consciente por ter se empenhado tardiamente em tentar evitar o transtorno (deveria ter protocolizado o pedido de regularização das notas fiscais com antecedência), entendida como aquela excepcional, em que o agente prevê o resultado, mas acredita que o mesmo não ocorrerá, quer por confiança errônea na sua perícia ou nas circunstâncias. “Existem casos em que o agente prevê a possibilidade de causar um dano, mas por excesso imprudente de confiança em si ou em fatores circunstantes, calcula que pode evitar o resultado, que no fim acaba ocorrendo, verificando-se que a ação foi imprudente e o cálculo mal feito”. (Maximilianus Cláudio Américo Führer e Maximiliano Roberto Ernesto Führer, em “Resumo de Direito Penal”, 4ª edição)

Como todo conceito, a culpa também possui seus elementos característicos. Senão, vejamos: conduta voluntária da sociedade empresária no momento de sua participação no certame licitatório, obrigando-se a todas as suas exigências, deveres e riscos assumidos; resultado não-intencional, demonstrado pelo retardamento na entrega do objeto, mas que fora justificado em razão da impossibilidade de se emitir o documento próprio a acobertar o transporte das mercadorias, devido a fatores estranhos à sua vontade; inobservância do dever de cuidado e atenção, que se percebe pelo atraso no pedido de regularização da pendência, o que ocorreu só quatro meses após o início da vigência do contrato e por já existir ordens de fornecimento de entrega de mercadorias atrasadas, mesmo com datas anteriores à do pedido. Caracteriza-se, então, a princípio, certo descuido e falta de atenção quanto aos prazos para o cumprimento efetivo do contrato, até porque a mesma, devendo avisar a Administração Pública do motivo impeditivo, fê-lo com atraso, gerando prejuízos. Previsibilidade, essência de toda conduta culpável, que consistiu na possibilidade, embora latente, de se prever o resultado danoso para a Administração se ocorresse qualquer atraso. Mas a eventual reprovação de seu requerimento, e novamente, com data posterior a ordens de entrega já atrasadas, a partir daí, foge de sua capacidade vaticinar. Restou prejudicada, neste momento, a previsibilidade de se ocorrer um dano, mesmo ciente do atraso, porque um inconformismo tão sutil como o ensejador da reprovação (falha no endereço do contrato social) seria considerado algo até imprevisível, embora não de todo, mas um formalismo exagerado talvez, o que só contribui para aumentar os entraves do setor público, ocasionando, sem o menor resquício de dúvida, problemas ainda maiores do que o esperado.

Dizer que a sociedade podia ou devia prever que seu requerimento seria indeferido é ir além da razoabilidade, ou, noutro sentido, admitir a ineficiência do sistema estatal. O indeferimento, e daí o impedimento para emissão de notas fiscais deveu-se a uma infelicidade da sociedade empresária, um caso alheio à sua vontade, o que, sem dúvida, serviu para quebrar o elo (nexo) de ligação entre a obrigação assumida e o dever de evitar o prejuízo a partir da entrada do requerimento. Até porque o resultado seria o mesmo (indeferimento), independentemente da data do protocolo do requerimento.

Se se permite a interpretação subjetiva do “atraso injustificado”, há que se fazê-la de modo “in bonam partem”, ou seja, em favor da contratada. Persistindo a dúvida, após excluídas todas as hipóteses de conduta protelatória intencional ou culpável, a questão deve ser resolvida pendendo para o lado da contratada, pelo “in dubio pro reo”.

Talvez pudéssemos indagar se teria ou não a sociedade condições de ter emitido as notas fiscais até a data do requerimento junto à Administração Fazendária, minimizando os efeitos do atraso junto ao contratante, entregando o objeto a que estava obrigada pelas ordens de fornecimento já emitidas até a data do requerimento. Entretanto, não cabe prever essa possibilidade ao departamento jurídico talvez, tampouco formar um juízo de convencimento a respeito, mas pelo exemplo mencionado, muitas Administrações Públicas de pronto aplicariam as sanções previstas no instrumento contratual, além da rescisão unilateral. Pelo exemplo, a sociedade demonstrou que havia um impedimento em seu desfavor, e isto é o fato, e que este deveu-se a circunstâncias estranhas à sua vontade.

Por fim, o que se percebe é o prejuízo da conduta culposa por parte da contratada, consoante artigos 70, 78 e 86 da Lei 8.666/93, em razão das justificativas aceitáveis, por ter requerido a regularização das notas fiscais e por advir o mesmo resultado ainda que a sociedade tivesse protocolizado o requerimento antes de o atraso ter ocorrido, minando o elemento da previsibilidade. Ainda mais, por ter se comprometido a arcar com a obrigação tão logo seja sanada a pendência, será possível a quem de direito duas escolhas. Adquirir os objetos do contrato por meio de dispensa de licitação se for o caso do art. 24, inciso IV (emergência ou calamidade pública). Ou, nos termos do art. 57, § 1°, inciso II da Lei 8.666/93, prorrogar o prazo de entrega do objeto em mais tantos dias a Administração julgar conveniente, pela superveniência de fato excepcional, estranho à vontade das partes. Desta forma, e aí sim, não o cumprindo, sob pena de aplicação das sanções dispostas no instrumento de contrato, caso seja atribuída à contratada, pelo menos com culpa, o resultado danoso para a Administração.

O fato de poder aplicar as penalidades não quer dizer que o interesse público será satisfeito. Evidentemente, o interesse público deve prevalecer sobre o interesse particular, no entanto, a Administração Pública não pode, indiscriminadamente, aplicar pesadas sanções aos seus contratados que, com boa vontade, demonstrarem que cumprirão suas obrigações, mesmo que tenham a infelicidade de conduzirem mal os seus negócios.

 

Como citar o texto:

SOUZA, Bruno Soares de..A aplicabilidade do Direito Penal na inexecução contratual para a administração pública. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 231. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/1774/a-aplicabilidade-direito-penal-inexecucao-contratual-administracao-publica. Acesso em 4 jun. 2007.

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