No período compreendido entre 1889, ano da proclamação da República e 1927 há vasta legislação sobre o assistencialismo às crianças abandonadas. Com a república recém-instalada surgem preocupações de ordem social referente à segurança pública, pois era relativamente alto o número de crianças que viviam nas ruas em situação de total abandono. O Estado começava a utilizar mecanismos repressivos para conter a população jovem e evitar que os mesmos viessem a delinqüir e a perturbar a ordem social. A polícia cívica, por sua vez iniciava um processo de perseguição às crianças na rua.

Nas palavras de SANTOS “O aumento da ocorrência de crimes é acompanhado pelo aumento e especialização dos mecanismos de repressão, gerando uma maior incidência de conflitos urbanos, numa clara manifestação do agravamento das tensões sociais.” (2000, p. 214)

Neste contexto, surgiram novas leis e decretos para regulamentar a situação das crianças em situação de abandono e reprimir a criminalidade. “A criança representava uma ameaça nunca antes descrita com tanta clareza. Descobrem-se na alma infantil elementos de crueldade e perversão. Ela passa a ser representada como delinqüente e deve ser afastada do caminho que conduz a criminalidade das “escolas do crime”, dos ambientes viciosos, sobretudo as ruas e as casas de detenção”. (RIZZINI, 1997, p. 28)

Em 02 de março de 1903 é aprovado o Decreto nº 4780 que regulamentava a Escola Correcional Quinze de Novembro, que foi criada para educar e corrigir profissional e moralmente as crianças e tirá-las da situação de abandono e miséria em que viviam. Na definição desta lei os menores abandonados serão recolhidos ao Instituto por ordem das autoridades competentes em consonância com o que preceitua o Art. 7º da Lei nº 947, de 29 de fevereiro de 1902. No art. 2º da Lei encontra-se a definição de crianças abandonadas, in verbis: “Art. 2º Comprehendem-se como abandonados os menores de 14 annos, maiores de 9, que, por serem orphãos, ou por negligencia, ou vicios, ou enfermidades, ou falta de recursos dos paes, tutores, parentes, ou pessoas, em cujo poder, guarda ou companhia vivam, ou por outras causas, forem entregues ás autoridades judiciarias ou policiaes, ou forem encontrados habitualmente sós na via publica, entregues a si mesmos e desamparados de qualquer assistencia natural.”

Nesse sentido, todas as crianças que estivessem na faixa etária entre 09 e 14 anos, órfãos, ou que os pais biológicos não tinham condições financeiras de garantir-lhes o sustento, e que na falta deles não havia, nem tutores e nem parentes, seriam entregues as autoridades judiciais para que em seguida por determinação do juiz, fossem então encaminhados ao Instituto Correcional Quinze de Novembro. Além das situações acima descritas, o fato de a criança estar na rua sem qualquer assistência, também era causa de internamento no Instituto. As crianças poderiam permanecer no Instituto até completarem 17 anos.A educação no Instituto Correcional era voltada para a profissionalização como forma de integrar o interno a vida social. Com o advento da industrialização e a precarização da mão-de-obra, a utilização dos serviços dos menores abandonados que habitavam o instituto foi solução encontrada pelos republicanos para impulsionar a economia e garantir a segurança social, já que essas crianças também seriam retiradas das ruas, onde facilmente deixariam de conviver com o crime, para se regenerar pelo trabalho. Era preciso corrigir as crianças enquanto pequenas, pois nas ruas e abandonadas certamente poderiam preferir seguir os caminhos para uma vida voltada para o crime. Formava-se então, a mão de obra barata necessária para abastecer a economia do país. 

As Escolas de Aprendizes Artífices foi regulamentada pelo Decreto 13.064 de 12 de junho de 1918 e estabeleceu um convênio firmado entre os Estados da República com o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Essas escolas ministravam gratuitamente o ensino profissional primário para que as crianças pudessem se adequar às exigências desse novo regime. Não tinha caráter de internamento e o aprendizado nessas escolas tinha a duração de 04 anos, exceto ao aluno que não conseguisse se formar nesse lapso de tempo, o qual teria ainda mais dois anos. Ao final dos cursos os aprendizes recebiam certificado de conclusão do curso. O art. 2º deste Decreto assinala, in verbis: “Art. 2º Nas escolas de aprendizes artifices procurar-se-há formar operarios e contramestres, ministrando-se o ensino pratico e os conhecimentos technicos necessarios aos menores que pretendem aprender um officio, havendo para isso as officinas de trabalho manual ou mecanico que forem mais convenientes aos Estados em que funccionarem as escolas, consultadas, quanto possivel, as especialidades das industrias locaes.”

O ingresso na Escola de Aprendizes Artífices estava sujeito aos requisitos do Art. 7º deste Decreto, o qual preceitua, in verbis: “ Art. 7º A matricula das escolas serão admittidos os menores cujos paes, tutores ou responsaveis o requererem dentro do prazo marcado e que posssuirem os seguintes requisitos, preferidos os desfavorecidos da fortuna: a) idade de 10 annos no maximo e 16 no maximo; b) não soffrerem de molestia infecto-contagiosa;c) não terem defeitos physicos que os inhabilitem para o aprendizado do officio.”

Um ano após a regulamentação das Escolas de Aprendizes Artífices, o Decreto nº 13.706 de 25 de julho de 1919 dá uma nova organização aos patronatos agrícolas. Talvez a mudança mais significante esteja consagrada no art. 40, que estabelece que não seriam admitidos nos patronatos agrícolas menores delinqüentes. Sendo adotado em regime de internamento que abrigavam as crianças entre 10 e 16 anos de idade. Além dos menores delinqüentes também não poderiam freqüentar os Patronatos Agrícolas os menores que sofriam de doença contagiosa, lesão ou qualquer deficiência orgânica que os inabilitassem aos serviços agrícolas.

Os Patronatos Agrícolas atendiam quase que exclusivamente a classe mais empobrecida da sociedade. Tinham a finalidade de proporcionar a educação moral, física e profissional de menores desvalidos que por insuficiência da capacidade de educação da família eram postos por autoridades judiciais à disposição do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.

O processo de admissão dos menores aos Patronatos Agrícolas dependia de uma série de requisitos elencados no art. 41 do referido decreto, o qual estabelecia: “Art. 41. O processo para a admissão dos menores, dado o caso de vaga, será o mais summario possivel e consistirá em requerimento ao director do Serviço de Povoamento, com os seguintes documentos: a) certidão de idade ou attestado passado por duas pessoas de reconhecida idoneidade; b) attestado de indigencia e de boa conducta, passado por autoridade competente; c) attestado de sanidade, indicando ser vaccinado, não soffrer de molestia infecto-contagiosa, ou de qualquer lesão ou anormalidade que o inhabilite para os serviços agricolas; d) attestado, de obito de pae, mãe ou de ambos; e) documento que atteste incapacidade moral dos paes, tutores, parentes ou protectores, para o educar ou indique caso de restricção, ou de destituição de patrio poder.”

Nesse sentido, ficou evidente que as famílias ao serem destituídas do pátrio poder, por quaisquer motivos deixavam, não só por vontade própria, seus filhos aos cuidados e tutela do Estado. “Fechavam-se os trinta primeiros anos da República com um investimento na criança pobre potencialmente abandonada e perigosa, a ser atendida pelo Estado. Integrá-la ao mercado de trabalho significava tirá-la da vida delinquencial, ainda associada aos efeitos da politização anarquista e educá-la com o intuito de incutir-lhe a obediência”. (PASSETTI, 2000, p. 355)

Dado o caráter de internamento dos Patronatos Agrícolas, o dispositivo no art. 97 referenciava as fugas. Sempre que um aprendiz fugia do estabelecimento, o fato era imediatamente comunicado e encaminhado cópia da ficha interna do aprendiz a autoridade policial, à imprensa local e ao diretor do estabelecimento. Nota-se que o interno fugitivo era perseguido e desde já estigmatizado. No entender de LEWIS “O estigma se constitui como um traço que o indivíduo possui e que, durante a relação social cotidiana, afasta as pessoas que encontra, sem a possibilidade de estas conhecerem outros atributos seus. (2001, p. 31)

Com a aprovação do Decreto nº 16.272 de 20 de Dezembro de 1923 ficou regulamentado a Assistência e Proteção aos Menores Abandonados e Delinqüentes, estabelecendo que o menor de qualquer sexo, abandonado ou delinqüente será submetido à assistência e proteção desta lei.No capítulo II deste Decreto, que trata dos Menores Abandonados está prevista a condição do menor em situação de abandono, conforme preceitua o Art 2º no qual, daremos ênfase ao inciso V, in verbis: “ Art. 2º Consideram-se abandonados os menores de 18 annos: [...] V - , que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem”

O Estado ao utilizar os termos vadiagem, mendicidade e libertinagem dá uma nova denominação as crianças pobres que se encontravam na rua, com forma de responsabilização individual da própria situação de miséria em que eram vítimas.

Certamente quando nos deparamos com crianças e adolescentes pobres nas ruas a primeira sensação é de que essas crianças não pertencem à sociedade no qual estamos inseridos. Desde o surgimento das primeiras Leis e Decretos que regulamentaram a situação de abandono e assistência dos menores pobres verifica-se a produção e reprodução da estigmatização da infância como forma de vigilância, controle e repressão sobre as classes historicamente excluídas no Brasil.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Decreto nº 13.064, de 12 de junho de 1918. Dá novo regulamento as Escolas de Aprendizes Artífices. Coleção de Leis do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, v. 002., p. 607, 31 dez. 1918.

BRASIL. Decreto nº 13.706, de 25 de julho de 1919. Dá nova organização aos patronatos agrícolas. Coleção de Leis do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro,RJ, v. 003, p. 146, 31 dez. 1919.

BRASIL. Decreto nº 16.272, de 20 de dezembro de 1923. Aprova o regulamento de assistência e proteção aos menores abandonados e delinqüentes. Coleção de Leisdo Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, v. 003, p. 363, 31 dez. 1923.

CUSTÓDIO, André Viana. VERONESE, Josiane Rose Petry. Trabalho Infantil: a negação do ser criança e adolescente no Brasil. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2007.

FREITAS, Marcos Cezar de (org). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2o ed., 1999.

LEWIS, Liana. (Des) Encontros a Céu Aberto: ensaios etnológicos sobre crianças em situação de rua na cidade do Recife. 2001. Dissertação, Mestrado, Curso de Pós-Graduação em Antropologia Cultural, Universidade Federal de Pernambuco.

MORAES, Carmen Sylvia Vidigal. A Normatização da pobreza: crianças abandonadas e crianças infratoras. Revista Brasileira de Educação. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. (ver André)

PASSETTI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2000.

PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2000.

RIZZINI, Irene. O Século Perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. Rio de Janeiro: USU, 1997.

SANTOS, Marco Antônio Cabral dos Santos. Criança e Criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2000.

 

 

Como citar o texto:

LIMA, Fernanda da Silva.A repressão sobre a infância empobrecida na Primeira República no Brasil. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 254. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-da-infancia-e-juventude/1854/a-repressao-infancia-empobrecida-primeira-republica-brasil. Acesso em 24 nov. 2007.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.