1 INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho aborda os inconvenientes ocasionados pela citação ficta na esfera Processual Penal, principalmente depois que se se introduziu, por meio da lei 11.719/2008, a citação por hora certa no art.362 do CPP, ante a garantia individual do acusado de ser citado pessoalmente, exigência essa que poderia ser inferida a partir da força semântica que a CF atribuiu ao princípio do devido processo legal, à igualdade processual (paridade de armas), ao contraditório e à ampla defesa, mas que restou explicitada de lege ferenda no texto constitucional, com a decisão da Suprema Corte que agregou em nossa carta política os tratados internacionais referentes a direitos humanos, especificamente a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

Assim, é certo que o legislador retrocedeu nesta inovação, pois insiste-se em pensar a partir de uma teoria geral do processo, equiparando os conceitos do processo civil aos do processo penal, em detrimento da forma particular de como os princípios processuais constitucionais se concretizam no Processo Penal..

Analisaremos alguns pontos omissos deixados pelo legislador no que tange ao art.366, com redação dada pelo Lei 9.271/96, que são de suma importância para se resguardar a segurança jurídica do acusado.

 

2 CITAÇÃO E SUA FINALIDADE CONSTITUCIONAL

O processo se inicia com o recebimento da denúncia ou queixa formando inicialmente uma relação linear entre autor e o Estado-juiz, mas que somente se completa com a citação do acusado para integrar o processo quando, doravante se triangulariza (iudicim est actum trium personarum: iudicis, actoris et rei).

Essa relação trilateral entre os sujeitos do processo1 somente fica esmerada definitivamente, principalmente no processo penal, quando o acusado é informado inequivocamente do teor da denúncia ou queixa (edictio actionis) e que deve vir se defender (ius vocatio).

O art. 363 do Código de Processo Penal, com redação dada pela lei 11.719/08, aduz que “o processo terá completada sua formação quando realizada a citação do acusado”, donde se infere, portanto, que a citação inicial deve ser feita in facien, constituindo verdadeiro pressuposto processual de validade, cujo destinatário é o sujeito da pretensão punitiva.

Mas não basta que a citação seja feita de qualquer modo.

Outrossim, o magistrado receberá a denúncia ou queixa de maneira fundamentada2e ordenará que o oficial de justiça na posse do mandado, o qual contém o substrato bastante relativo à demanda (art.352 do CPP), se dirija até o acusado para, pessoalmente, proceder a leitura e entrega da contra-fé ( art.357, CPP).

Estas formalidades necessárias inerentes à citação, conhecidos em sede de doutrina como requisitos intrínsecos e extrínsecos, tem o escopo de assegurar aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes ( CF, LV).

Contudo, obtempera o STJ :

De acordo com o sistema da instrumentalidade das formas, abertamente adotado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, não se declara a nulidade do ato sem a demonstração do efetivo prejuízo para a parte em razão da inobservância da formalidade prevista em lei. (STJ, HC 107743 / DF, Relator(a) Ministro JORGE MUSSI (1138), Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA, DJe 21/09/2009)

Insta asseverar que por força da lei 11.719/2008 o réu é citado para, em dez dias,3 formular sua resposta inicial4 -audiatur et alteara pars- podendo nesta alegar tudo o que interesse a sua defesa, argüir preliminares, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário (art.396 c/c 396-A).

É neste momento, acrescente-se, mais do que nunca, em que se verifica a presença do contraditório bipartido extensivo, pois o réu noticiado da imputação (informação) sendo-lhe oportunizado reagir (reação necessária) valendo-se para tal de tudo quanto for necessário - ampla defesa - para influenciar a parte dispositiva da sentença.

Este é o escólio de Luiz Flávio Gomes5

“O direito de ser informado pessoal e previamente do inteiro teor da acusação formulada faz parte tanto da garantia da ampla defesa como do contraditório e foi reconhecido (v.g.) pela lei 9.271/96. Este, aliás, como assinala a doutrina, é composto de dois momentos: o da informação, que se concretiza por meio da citação, e o da reação (ou possibilidade de contradizer). A simbiose que se vislumbra entre tais garantias, aliás, é a seguinte: enquanto o primeiro momento – o do contraditório (“informação”) – torna possível a defesa (efetividade), o segundo (reação) lhe dá plenitude.

Noutras palavras, com supedâneo em Fredie Didier6 o comunicado inicial é o marco para o exercício do contraditório formal, o qual seria a garantia de ser ouvido, e o exercício da reação substancial, que seria o poder do réu em influenciar efetivamente a convicção do magistrado sobre a verdade constitucionalmente possível.

A citação, volto a dizer, pressuposto de validade do Processo, é inerente à idéia de due processo of law assegurado pela Constituição Federal, no art. 5º, LIV, como direito fundamental e corolário do contraditório e ampla defesa.

Cumpre salientar que a relevância do ato citatório é imensa, pois não há como se aceitar que em um Estado Democrático de Direito alguém seja condenado, sucumbindo ao jus puniendi, sem lhe ser oportunizado meios reais para contradizer a pretensão acusatória. Com efeito, o princípio do contraditório e da ampla defesa são apenas ontologicamente distintos do momento citatório.

José Francisco Cagliari, ademais, diz que a “citação é, seguramente, o mais importante ato de comunicação processual, elemento essencial do contraditório e imprescindível ao exercício do direito de defesa”. 7

Visto que intimamente ligado à idéia de contraditório (reação) expandido por uma ampla defesa, o que forma a base do substative due processo of law, decorre como conseqüência insuperável para a procedibilidade válida do processo que a citação seja feita pessoalmente. A citação é, exatamente por isso, dizia Couture, “uma garantia individual”8 portanto, insuscetível de restrições por legislação infraconstitucional.

Por esta razão, o STF reconheceu, no HC 67.714, de relatoria do Ministro Celso de Melo, a necessidade de que se cientifique da sentença condenatória não só o defensor constituído ou dativo, mas também o próprio acusado- in facien.

Qualquer dúvida a este respeito, qual seja, que a citação deve ser pessoal, entendimento que, como comprovado, já podia ser inferido numa hermenêutica estrutural da constituição, foi ceifada no leanding case do HC 87.585, oportunidade na qual o Ministro Celso de Melo proferiu entendimento que atribui aos tratados internacionais sobre direitos humanos status de norma constitucional porque formalmente recebidas, nessa condição, pelo § 2º do art. 5º da Constituição; logo, a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foram emancipados ao nosso texto maior, cuja disciplina jurídica deteve passagem à citação in facien.

A falta de citação acarreta nulidade absoluta do processo (art. 564, III, e, CPP), não obstante o comparecimento espontâneo do acusado convalide o vício (art.570 do CPP). O defeito por falta de componente essencial consubstancia nulidade relativa, que pode ser sanada se não for argüida tempestivamente (art.564, IV, c/c 571 e 572 do CPP).

2.1 Citação ficta e a inovação da lei 9.271/ 96

Por via de exceção, frise-se, o Código de Processo Penal admitiu, para casos em que não seja possível encontrar o acusado para triangularizar a relação processual, que a citação seja feita de maneira ficta, com a qual presume-se que o acusado tenha conhecimento de ação contra si intentada por meio da imprensa e de afixação do edital à porta do edifício onde funciona o fórum.

Previa o CPP, até o advento da lei 11.719/08, a citatio edctalis9como a única forma de citação presumida, que, da forma como colocada dentro código de Processo Penal, fazia verdadeiro simulacro dos direitos processuais assegurados pela Constituição visto que, não rara vez, o acusado jamais tinha conhecimento da acusação; a verdade é que na prática esse tipo de cientificação presta quase, ou nenhum efeito à consecução da tão pregada máxima efetividade dos direito fundamentais- contraditório e ampla defesa.

Alerta o professor Eugênio Pacelli que o art.366 em sua redação primitiva rezava que o processo seguiria à revelia do acusado que, citado inicialmente ou intimado para qualquer ato do processo, deixasse de comparecer sem motivo justificado.10

A sistemática adotada até então abriu azo para que os processos prosseguissem a revelia, culminando, ao final, com desfechos injustos, pois os acusados que não atendiam ao chamamento para o processo, por meio da ineficaz citação por edital, eram condenados, a despeito de não serem ouvidos.

Existia, destarte, uma inconstitucionalidade chapada, clarividente, pela razão óbvia segundo a qual a revelia no processo penal, neste contexto, tinha o mesmo caractere que lhe atribui o processo civil. Neste, marcado pela disponibilidade de direitos, existe confissão quanto a matéria fática podendo o magistrado inclusive julgar antecipadamente a lide ( CPC, art. 319), todavia, em processo penal, por se tratar de direitos indisponíveis – liberdade, “verifica-se ( a revelia) a partir da ausência injustificada do acusado, que fora pessoalmente informado, por ocasião da realização de qualquer ato relevante do processo” 11 tendo como único efeito a não- intimação do recalcitrante para prática do atos processuais ulteriores. Ao acusado, neste caso, será nomeado um defensor, nos termos do art. 261 do Código de Processo Penal.

Sem embargo, atualmente não subsiste o entendimento, numa perspectiva constitucional-processual, de que existe contra o revel presunção de culpabilidade por ter este se quedado inerte, uma vez que Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória ( CF, art.LXI), podendo o contumaz, por consequência dessa lente constitucional pela qual se interpreta os dispositivos infraconstitucionais, ao final ser absolvido, dependendo do contexto probatório, cujo ônus é do autor, mesmo sem ter participado do itinerário processual.

Percebendo o aviltamento do direito natural de defesa abalizada doutrina, encabeçada por Frederico marques, defendia a inconstitucionalidade, como dito, da citação editalícia por afronta ao príncipio de que nemo inauditus damnari potest( ninguém pode ser julgado sem ser ouvido).

Seguindo orientação doutrinária com a intenção clara de manter íntegro o supracitado princípio em desfavor do Estado polícia-símbolo de eficiência àquela época, o que a experiência demonstrou ser uma falácia, o legislador ordinário deu nova redação ao artigo 366 que assim dispõe:

“ Se o acusado, citado por edital, não comparecer nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do art. 312”.

O novo art. 366 tentou promover o princípio audiatur el altera pars a que tanto se clamava. Segundo Pacelli, “a regra trazida pela Lei 9.271/96 [...] exige a efetiva participação do acusado no processo, redimensionando o princípio da ampla defesa, de pouquíssima valia ( quando nenhuma) nos processos de réus citados por edital.12

O supracitado artigo contemplou a suspensão do processo, se o réu citado por edital não apresentar defesa escrita, pois presume-se, agora acertadamente, que o acusado não teve notícia da imputação que lhe é feita. Estabelece, ainda, que o magistrado concomitantemente decrete a suspensão da prescrição.

Entretanto, o art. 366 foi omisso em não dizer qual o lapso temporal sob o qual a prescrição estaria suspensa, criando, prima facie, uma suspensão ad eternum do processo. Significa dizer, pois, que se não for determinado o tempo que a prescrição fica suspensa, o processo nunca terá um dies ad quem, se o acusado não aparecer, afrontando por via oblíqua o direito à liberdade e à segurança do cidadão.

Estar-se-ia criando, desta forma, por meio de Lei ordinária, uma nova hipótese de imprescritibilidade-restrição de direitos fundamentais-o que somente pode ser feito por expressa disposição constitucional (restrição imediata) ou mediante lei ordinária promulgada com fundamento imediato na própria Constituição (restrição mediata).13

A interpretação da CF deve levar em conta todo o sistema, tal como positivado, dando-se ênfase, porém, para os princípios que foram valorizados pelo constituinte14 por conseguinte, em relação aos direitos e garantias fundamentais , a CF deu-lhes status de cláusula pétrea, cravando, portanto, um mínimo principiológico ao longo do texto maior, em especial no art.5º, impondo ao operador do Direito, nesse passo, interpreta-los de modo extensivo com o escopo abstrair o maior conteúdo semântico possível deles, bem como conceber novos direitos fundamentais que se encontram implícitos dentro da CF e que são descortinados de acordo com a experiência constitucional, conforme exegese do art.5º, § 2º c/c o art.60.º, § 2º

Conclui-se: A interpretação, quanto à inclusão de direitos fundamentais, deve ser extensiva. Ao contrário, quanto às restrições destes Direitos, deve ser restritiva, a fim de manter intacto o núcleo essencial dos direito fundamentais. Desse modo, entendo que somente o racismo e a ação de grupos armados contra o estado democrático de direito são imprescritíveis, pois a regra, em material criminal, ao que parece, é a prescrição dos crimes.

Sendo assim, “o prazo de suspensão deverá encontrar o seu limite naqueles previstos para o reconhecimento da prescrição da pena em abstrato, ou seja, conforme estiver previsto na regra do art. 109 do CP” 15 com o objetivo de evitar que uma lei infraconstitucional crie uma nova hipótese de imprescritibilidade, o que, pelo que foi expendido, seria inconstitucional.

Suspenso o processo, permite o dispositivo a produção antecipada de provas a depender do caso concreto. Seriam, basicamente, segundo Tourinho: provas periciais, busca e apreensão, inclusive inquirição de testemunhas.16

3- A CITAÇÃO POR HORA CERTA. O ERRO CIENTÍFICO EM CONFORMAR A LEIS DE PROCESSO PENAL SOB O ENFOQUE PROCESSUAL CIVIL. INCONSTITUCIONALIDADE DESSA ESPÉCIE DE CITAÇÃO DIANTE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS INSERTOS NA CONSTITUIÇÃO.

 

Adveio a lei 11.719/2008 para incluir, dentre os meios de comunicação dos atos processuais penais, a citação por hora certa em termos sinônimos aos previstos nos arts. 227 a 229 do CPC; de modo inovador, acrescentou-se, especificamente no art.362 do CPP, mais uma forma de citação ficta no âmbito do Processo Penal.

Esta modalidade de citação requer os seguintes pressupostos: a) objetivo: procura do réu por três vezes em dias distintos (aplicação analógica do parágrafo único do art.653) em seu domicílio ou residência sem encontrá-lo; b) subjetivo: suspeita de ocultação; o oficial deverá, pois, indicar expressamente os fatos evidenciadores da ocultação maliciosa.17

Ante o caso concreto que reúna os dois requisitos acima, o oficial de justiça intimará a qualquer pessoa da família, ou, em sua falta, a qualquer vizinho, que no dia imediata voltará a fim de efetuar a citação, na hora que designar ( CPC,art.227).

O terceiro a quem se intimou haverá, naturalmente, de ser pessoa capaz, de nada valendo a intimação se se tratar de criança ou interdito. 18

No dia e hora designados, o oficial de justiça, independentemente de novo despacho do juiz, voltará à residência ou domicílio do réu, a fim de completar a diligência (art. 228, CPC).

Caso o demandado for encontrado, a citação será feita normalmente, segundo o que dispõe o art.357 do CPP. Se, porém, continuar fora de casa, o oficial procurará informar-se das razões da ausência e, não as considerando justas, dará por feita a citação, mesmo sem a presença do réu, e ainda mesmo que a ocultação tenha se dado em outra comarca ( art.228 § 1º, CPC).

Deixará a contrafé com pessoa da família ou com qualquer vizinho. Lavrará, em seguida, certidão da ocorrência ( art.228 § 2º, CPC).

Feita a citação com hora certa, o escrivão enviará ao réu carta, telegrama ou radiograma, dando-lhe de tudo ciência ( art.229, CPC).

Preleciona o STJ acertadamente:

Na citação por hora certa, a remessa pelo escrivão da carta, telegrama ou radiograma dando ciência ao réu da citação é requisito obrigatório e, se não efetuada, acarreta nulidade da citação. Se a citação do oficial de justiça não explicita os dias e os horários em que realiza as diligências a procura do rei. Também acarretará a nulidade da citação por hora certa.Precedentes: REsp 280.215-SP, DJ 13/8/2001, e REsp 473.080- RJ, DJ 24/3/2003. REsp 468.249-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 5/8/2003.

Se porventura cumprido todo esse itinerário o acusado não aparecer, ser-lhe-á nomeado defensor dativo ( art.362. § único do CPP)

Diz Marques da Silva:

“O novo art. 362 do CPP praticamente manteve a redação inicial- Verificando que o réu se oculta para não ser citado- mas inovou na conseqüência jurídica para a hipótese.

Oriundo do processo civil, num lampejo de unificação do Direito Público com o privado, o legislador entendeu por bem penalizar o réu que se oculta para não ser citado com uma modalidade de citação, que mesmo não se encontrado o acusado, considera-o citado prosseguindo-se, e isso é o mais grave, com a ação pena à sua revelia. 19

Essa transmigração do procedimento de citação por hora certa para o Processo Penal visa, para os seus mentores, imprimir maior celeridade processual, assegurando, portanto, uma prestação jurisdicional efetiva, adequada, tornando concreto, destarte, o direito fundamental encartado no art. 5º, inc. LXXVIII.

Aury Lopes Jr., de modo percuciente, critica esse erro fenomenológico, com base em Carnelutti, em olhar o processo penal impregnado das impressões processuais civis:

“[existe] Todo um erro de pensar que podem ser transmitidas e aplicadas no processo penal as categorias do processo civil, como se fossem as roupas da irmã mais velha, cujas mangas se dobram, para caber na irmã preterida. É a velha falta de respeito a que se referia GOLDSCHIDT, às categorias próprias do processo penal”. 20

O processo penal é uma realidade que possui particularidades e diversidades metodológicas própria, o que o arroga, e já era tempo, ao patamar de uma ciência autônoma no campo da dogmática jurídica, uma vez que tem objeto e princípios que lhe são peculiares.21

Isso implica dizer que o processo evolutivo de seus institutos na perspectiva de se atribuir concretitude ao princípio da efetividade, ou seja, “um processo capaz de obter o caminho eficiente à manutenção da ordem jurídica estatal justa” 22em um menor tempo possível deve ser buscado levando-se em conta as nuances inerentes ao processo penal- indisponibilidade de direitos, significa dizer, adequando suas regras a fim de proporcionarem uma prestação jurisdicional capaz de reconstituir a ordem jurídica violada, mas, ato contínuo, deferindo ao possível agressor de um bem juridicamente protegido o exercício efetivo dos direito processuais constitucionais que lhe servem de garantia contra os possíveis abusos do poder estatal.

Sendo assim, a colocação pura e simples das normas processuais civis no contexto do processo penal, no caso, a citação por hora certa, acarreta na prática ao acusado graves restrições em seu direito defesa-defesa técnica, autodefesa, e defesa efetiva ( paridade de armas), pois presume-se que o imputado será inteirado de todo o conteúdo da acusação- por mera ficção jurídica23e acaso permaneça silente o processo seguirá a sua revelia, mas para que isso ocorra, como demonstrado a partir da contextualização da citação na CF como uma garantia individual, requer-se que o acusado tenha sido informado pessoalmente para apresentar sua resposta ou para a prática de um ato processual (CPP, art.367).

A experiência demonstrou-citação por edital, a falácia de não se moldar o uso da citação ficta de acordo com as especificidades do Processo Penal, fruto de uma ultrapassada Teoria Geral do Processo.

Ivan Luís Marques da Silva assevera:

“o princípio da ampla defesa somente é respeitado de forma ampla com a presença do acusado, no decorrer da ação penal, da defesa técnica e da autodefesa. Faltando uma dessas modalidades, mitigado estará o princípio e, por razões lógicas, eivada a ação penal de vício passível de anulação futura. Foi justamente para evitar este problema que a redação do art. 366 do CPP foi alterada pela Lei 9.271/1996, para evitar que o acusado fosse processado sem ter ciência disso. 24

Uma interpretação sistemática da Constituição, atribuindo-se a melhor significação, dentre as várias possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos, já demonstrava que o constituinte não prescindiu da citação pessoal, porém, como já falado, se tornou expresso, desde o voto do Ministro Celso de Melo, o qual incorporou ao texto constitucional a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que a citação deve ser, em regra, pessoal, senão veja respectivamente:

Art. 8°. Omissis

b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

art. 14. Omissis

a)[ toda pessoa tem direito] a ser informada, sem demora, em uma língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada;

Portanto, uma lei infraconstitucional em que seu texto- art362 do CPP- não condiz com a Carta Magna, ou seja, o legislador traz para a esfera do processo penal mais uma modalidade de citação ficta-citação por hora certa, cuja natureza é de coação psicológica, mas não a adequa com o parâmetro constitucional de normas- contraditório e ampla defesa- como o fez a lei 9.271/ 96, está sem dúvida eivada de inconstitucionalidade material.

4 CONCLUSÃO

A citação teve seu significado objetivado dentro do Estado de Direito Brasileiro, fulcrado na dignidade da pessoa humana, como uma garantia individual do acusado, conquanto o constituinte priorizou a liberdade individual do cidadão ( art.1º, inc.III, art.5º caput, inc. III, LIV, LV, VLII) em detrimento do Estado arbitrário, despreocupado com direitos e garantias individuais, conforme se viu aqui durante o regime militar dos anos de 1964 a 1985, época na qual reinava o medo e a insegurança, que, em síntese, poderíamos comparar com o drama do personagem de Franz kafka, Josef k., em o Processo, que se viu condenado sem saber do que era acusado.

Mas, mesmo face essa evolução do pensamento jurídico, veio o legislador por meio da lei 11.719/2008 e introduziu mais uma modalidade de citação ficta-agora por hora certa-no Processo Penal em detrimento da garantia individual de qualquer acusado de ser citado pessoalmente, exigência essa, para os que ainda questionavam, agora explicitada na CF com o voto do Ministro Celso de Melo, que elevou a nível constitucional os tratados sobre Direito Humanos.

Por isso, por ter o legislador se olvidado de contornar a falta de eficácia de qualquer citação ficta, no caso a por hora certa, mitigando a eficácia das normas e princípios constitucionais, Destarte, sem dúvida o art.362 do CPP é inconstitucional.

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTAS

 

1- Teoria concebida por Bulow e Wach , a qual diz que a relação jurídica processual é uma relação entre três sujeitos: juiz, autor e réu todos eles com direitos e obrigações recíprocos. Em contrário, os angularistas, liderados Amílcar de Castro e Celso Agrícola Barbi, sob o argumento de que não existe entre autor e réu nenhuma relação, pois tudo se passa por mediação do juiz, ver: ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo.11°ed.Rio de Janeiro:Forense,2007. pág.172-173.

2- O STF, no HC 42.576, Rel. Min. Pedro Chaves, RTJ 35/585, entendeu possível o recebimento implícito quando se manda autuar e designar interrogatório( rectus: citação para apresentação da defesa inicial).

3- Conta-se o prazo da citação e não da juntada do A.R. Sumula 710 do STF: No processo penal, contam-se os prazos da data de intimação, e não da juntada aos autos do mandado ou carta precatória ou ordem.

4- A defesa inicial é “verdadeira condição de prosseguibilidade ou condição especifica da ação, pois não deverá o magistrado prosseguir o feito antes do seu oferecimento. É obrigatória, portanto, sua existência. MENDONÇA, Andrey Borges de Mendonça. Nova reforma do Código de Processo Penal: comentada artigo por artigo. 1° ed. São Paulo. Método, 2008. pág. 269.

5- GOMES, Luiz Flavio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Penal: comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v.4, p.95/9

6- DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. rev. ampl. e atual. 9° ed. Salvador. Editora jus podvm, 2008. pág. 45.

7- CAGLIARI, José Francisco. Citações e intimações. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Tratado temático de processo penal. São Paulo: Juarez de Oliveira. pág. 267.

8- COUTURE, 1972. Apud Tourinho Filho 1997, pág. 181

9-O STF manifestou-se proclamando que a citação por edital só é cabível, sob pena de nulidade, depois de esgotados os meios pessoais para encontrar-se o acusado (RHC 61.406-0-RJ, RT 586/403)

 

10-OLIVEIRA , Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal.11º ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2009.pág.504

11-OLIVEIRA.op.cit.pág 503-506.

12-OLIVEIRA.op cit. pág.504.

13MENDES, Gilmar Ferreira , INOCÊNCIO, Mártires Coelho, PAULO, Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 2º ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

14 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 21ºed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006, pág.24.

15-OLIVEIRA. op. cit., pág. 506.

16- TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 1997, pág. 205-206.

17-DIDIER. op. cit. pág.466.

18-THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil- Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 48º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. pág.304

19-SILVA, Ivan Luís Marques da. op.cit., pág 20.

20-LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Capítulo II.

21-LOPES Jr. op cit. pág.33-34

22-GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo, 1990. apud SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. 2005.

23- SILVA, Ivan Luís Marques da. Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 21

24-Neste sentido argumenta Ivan Luís Marques da Silva: “Parece-nos que teremos muitos problemas em decorrência da nova redação do art.362 do CPP, pois atribui a um funcionário público poderes de decisão que nem mesmo o magistrado tinha antes da reforma. Como poderá o réu restituir-se à situação anterior e provar que todo o processo que correu a não poderia ter sido realizado? Qual é a palavra que mais valerá na prática no final da ação? A do réu recém-condenado ou a do oficial de justiça cujos atos administrativos presumem-se legítimos?” E o autor arremata: “ficando constatada má-fé do oficial de justiça, responderá processo disciplinar e o ato será anulado, refazendo todo o processo desde a citação. Entretanto, trata-se de uma análise subjetiva feita pelo agente público que difilmente poderá ser contestada no caso concreto”. pág. 20.

 

Data de elaboração: janeiro/2010

 

Como citar o texto:

COSTA, Leonardo Emrich Sá Rodrigues da ..Citaçao ficta e s inconstitucionalidade modalidade por hora certa no processo . Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/2048/citacao-ficta-s-inconstitucionalidade-modalidade-hora-certa-processo-. Acesso em 9 dez. 2010.

Importante:

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