SUMÁRIO

 

1 INTRODUÇÃO 05

 

2 A COISA JULGADA 06

2.1 Noções Gerais 06

2.2 Coisa Julgada Formal e Material 06

2.3 Limites Objetivos e Subjetivos da Coisa Julgada 07

2.4 Eficácia Preclusiva da Coisa Julgada (Princípio do Deduzido e do Dedutível) 08

2.5 Coisa Julgada nas Relações Jurídicas Continuativas 09

 

3 INSTRUMENTOS TÍPICOS DE REVISÃO DA COISA JULGADA 10

3.1- Ação Rescisória 10

3.2 Querela Nullitatis 14

3.3 Oposição a Execução Fundada em Título Inconstitucional 15

3.4 Correção de Erros Materiais e Erros de Cálculo 18

 

4.A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA 21

4.1 Casos Emblemáticos 21

4.2 Fundamentos para a Relativização da Coisa Julgada 23

4.3 Coisa Julgada Inconstitucional 25

4.4 Tese Contrária à Relativização 28

4.5 Soluções de Lege Lata ou de Lege Ferenda? 29

 

5.CONCLUSÃO 31

 

REFERÊNCIAS 32

 

 

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

A coisa julgada tem por escopo pôr fim aos litígios pela consolidação da tutela jurisdicional ofertada. Assim, a finalidade do instituto é promover a segurança jurídica e, por conseqüência, a pacificação social.

Entretanto, discute-se a intangibilidade da coisa julgada, quando a segurança jurídica se conflita com outros valores também constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e a moralidade administrativa.

Ante a possibilidade de uma decisão inconstitucional tornar-se imutável, surge uma corrente doutrinária que defende a possibilidade de “relativização da coisa julgada”, a qual afirma ser possível rever uma decisão transitada em julgado, independentemente de prazo, em decorrência dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

A presente monografia tem por objetivo o estudo da coisa julgada bem como sua revisão, com especial enfoque nas hipóteses que justificariam a relativização do instituto.

Imprescindível a discussão sobre o tema, pois posturas intransigentes não contribuem para o progresso do direito e de suas instituições.

 

 

 

 

 

 

2 A COISA JULGADA

2.1 Noções gerais

A coisa julgada é um instituto que tem por objetivo por fim ao debate de uma questão levada ao Judiciário. Portanto, visa implementar o valor da segurança jurídica.

É fator de extrema relevância ao alcance da pacificação social, escopo fundamental do processo.

2.2 Coisa julgada formal de material

A imutabilidade de uma decisão judicial pode ficar adstrita ao processo em que foi proferida, ou projetar-se para além deste. Assim, duas são as espécies de coisa julgada: a formal e a material.

O Código de Processo Civil limitou-se a definir a coisa julgada material: “Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. Nessa perspectiva, a coisa julgada material consiste na imutabilidade que se opera dentro e fora do processo. Somente decisões de mérito fazem coisa julgada material.

Por sua vez, a coisa julgada formal torna indiscutível a decisão apenas no processo em que foi proferida, não impedindo que o objeto de julgado volte a ser debatido em outro processo. A doutrina refere a esta como a preclusão máxima, porque se identifica com o fim do processo.

Nas palavras de Didier Júnior, “a coisa julgada formal é um degrau necessário, para que se forme a coisa julgada material” (DIDIER JÚNIOR et al., 2009a, p.409). Nessa linha de pensamento, Frederico Marques ressalta que há dois graus de coisa julgada: a coisa julgada e a coisa soberanamente julgada, esta última ocorre quando escoado o prazo decadência de propositura da rescisória (MARQUES apud THEODORO JÚNIOR, 2007, p. 592).

2.3 Limites objetivos e subjetivos da coisa julgada

Como define Wambier, “objetivamente a autoridade de coisa julgada recai sobre a parte decisória da sentença de mérito” (WAMBIER et al., 2006, p. 505). De acordo com o art. 468 do CPC: “A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.” Assim, as razões de decidir não estão submetidas à coisa julgada material, como explicita o art. 469:

Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.

Em relação ao art. 469, III, Theodoro Júnior (2007, p. 608) salienta que: “Não se deve confundir ‘questões preliminares’ (que se relacionam com os pressupostos processuais e condições da ação) com ‘questões prejudiciais’ (que se referem a fatos anteriores à lide).” É exemplo de questão prejudicial, a paternidade na ação de alimentos.

A questão prejudicial poderá, excepcionalmente, apresentar a eficácia de coisa julgada material, na dicção do art. 470: “Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts. 5o e 325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto necessário para o julgamento da lide.” Além disso, quanto ao limite subjetivo da coisa julgada, dispõe o art. 472 do CPC:

A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.

O referido dispositivo trata da coisa julgada inter partes, regra geral de nosso sistema. Conforme Wambier, “[...] a doutrina predominante considera serem atingidos também os assistentes litisconsorciais” (WAMBIER et al., 2006, p. 505). De acordo com Didier Júnior, o art. 472 do CPC tem inspiração nas garantias constitucionais da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, XXXV, LIV e LV, CF).

Isso porque, segundo o espírito do sistema processual brasileiro, ninguém poderá ser atingido pelos efeitos de uma decisão jurisdicional transitada em julgado, sem que se lhe tenha sido garantido o acesso à justiça, com um processo devido, onde se oportunize a participação em contraditório. (DIDIER JÚNIOR et al., 2009a, p. 419).

No entanto, excepcionalmente, a coisa julgada pode beneficiar ou prejudicar terceiros.

Quando a coisa julgada tem o poder de atingir determinados terceiros, vinculando-os ao processo, denomina-se ultra partes. Ocorre, por exemplo, no caso de substituição processual, em que o substituído é atingido, mesmo sem figurar no processo: no caso de decisão favorável a um dos credores solidários (art. 274 do Código Civil); nas ações coletivas em sentido estrito (art. 103, II, CDC); e nos casos de legitimação concorrente.

Diddier Júnior lembra que está última hipótese não é unânime na doutrina:

O sujeito co-legitimado para ingressar com uma ação (detentor de legitimação concorrente), que poderia ter sido parte no processo, na qualidade de litisconsorte unitário facultativo ativo, mas não foi, ficará vinculado aos efeitos da coisa julgada produzida pela decisão proferida na causa – hipótese esta polêmica na doutrina brasileira) (DIDIER JÚNIOR et al., 2009a, p. 420/421).

Há, ainda, a coisa julgada erga omnes, assim definida por Didier Júnior:

“aquela cujos efeitos atingem a todos os jurisdicionados – tenham ou não participado do processo. É o que ocorre, por exemplo, com a coisa julgada produzida na ação de usucapião de imóveis, nas ações coletivas que versem sobre direitos difusos ou direitos individuais homogêneos (art. 103, I e II do CDC) e nas ações de controle concentrado de constitucionalidade. (DIDIER JÚNIOR et al., 2009a, p. 421)

2.4 Eficácia preclusiva da coisa julgada (princípio do deduzido e do dedutível)

Como dispõe o art. 474 do CPC: “Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.” Mesmo não incidindo a coisa julgada sobre os fundamentos da decisão, preclui a possibilidade de discussão sobre os argumentos deduzidos e sobre os que poderiam ser suscitados, mas não foram.

Assim, exemplifica Wambier:

julgada improcedente determinada ação indenizatória por acidente de veículo, em que o autor alegou, como causa de pedir, a culpa do motorista do outro veículo, elencando argumentos como alta velocidade e pista escorregadia, não pode o mesmo autor, posteriormente, com base nos mesmos fatos e na mesma causa de pedir juridicamente considerada (culpa), alegar, por exemplo, embriaguez do motorista do outro veículo (WAMBIER et al., 2006, p. 505).

A vedação de emprego de um argumento, não deduzido de um processo em outro, não se confunde com a possibilidade de formulação do mesmo pedido, baseado em nova causa de pedir.

Como lembra Didier Júnior,

a eficácia preclusiva da coisa julgada não poderia, jamais, atingir todas as outras causas de pedir que pudessem servir para embasar aquela mesma pretensão, sob pena de grave ofensa ao direito fundamental de ação, o devido processo legal e o contraditório (DIDIER JÚNIOR et al., 2009a, p. 429).

2.5 Coisa julgada nas relações jurídicas continuativas

De acordo com o art. 471 do CPC:

Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; II - nos demais casos prescritos em lei.

Alguns doutrinadores defendem que as sentenças proferidas em situações rebus sic stantibus, como é o caso típico da ação de alimentos, não fazem coisa julgada material. Nesse sentido, Wambier, ao enumerar situações para as quase entende não haver coisa julgada material:

Exatamente o mesmo se dá no que diz respeito a relações continuativas, como, por exemplo, a relação alimentícia. No caso específico da relação de alimentos, se usa a expressão ‘modificação da fortuna do alimentante e da necessidade do alimentado’ para referir-se à situação que justifica que se requeira a alteração de provimento jurisdicional anteriormente obtido (art. 471, I, do CPC) (WAMBIER et al., 2006, p. 504).

Para Theodoro Júnior, entretanto, não se trata de alterar a sentença anterior, mas sim de obter uma nova sentença para uma situação também nova. A modificação do decisório, por ação revisional:

[...] vigorará ex nunc, atuando apenas sobre as prestações posteriores ao surgimento do novo quadro fático-jurídico justificador da ação revisional. Os efeitos anteriores à revisão judicial permanecerão intactos, sob o pálio da coisa julgada gerada pela sentença anterior (THEODORO JÚNIOR, 2007, p. 620).

 

3 INSTRUMENTOS TÍPICOS DE REVISÃO DA COISA JULGADA

3.1 Ação rescisória

 

Cuida-se de ação autônoma, que busca desconstituir decisão de mérito transitada em julgado, por ocorrência de uma das hipóteses previstas no art. 485 do CPC:

a) Prevaricação, concussão ou corrupção do juiz.

A sentença será rescindível, quando o juiz tiver praticado uma dessas três condutas tipificadas no Código Penal. Não é necessário que o juiz tenha sido previamente condenado no juízo criminal, nem se exige que haja processo em curso.

Prevaricar consiste em "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei para satisfazer interesse ou sentimento pessoal" (art. 319 do Código Penal); concussão significa exigir "para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela", de vantagem indevida (art. 316 do Código Penal); e corrupção (passiva) consiste em "solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem" (art. 317 do Código Penal).

b) Impedimento ou incompetência absoluta do juiz.

Wambier; Medina (s.d.) ressaltam que o inciso II do art. 485 diz respeito a dois pressupostos processuais de validade.

O impedimento, por ser hipótese objetiva de parcialidade, torna o julgado rescindível, ainda que não haja oposição das partes. Já a suspeição é sanada pelo trânsito em julgado da sentença.

Somente a sentença proferida por juiz absolutamente incompetente é que dá ensejo à propositura de ação rescisória, pois a incompetência relativa se prorroga quando não argüida em momento oportuno.

c) dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei.

De acordo com Didier Júnior; Cunha (2009, p. 408), “a hipótese de colusão entre as partes distingue-se do caso de dolo processual, na medida em que aquela é sempre bilateral, sendo este último unilateral.”

d) Ofensa à coisa julgada.

Havendo coisa julgada material, a sentença mais nova será rescindível. E se vencido o prazo para afastar a segunda coisa julgada, qual deveria prevalecer? A questão não é pacífica na doutrina.

Didier Júnior; Cunha (2009, p. 396) sustentam que a segunda coisa julgada deve prevalecer, “não só como homenagem ao princípio da segurança jurídica, mas também pelo fato de que, se a sentença tem força de lei entre as partes (art. 468, CPC), lei posterior revoga a anterior [...]”.

Wambier; Medina (s.d.) defendem que deveria prevalecer a primeira, pois “[...] não haveria a segunda coisa julgada, já que esta nunca teria chegado a se formar, porque, para a segunda ação, faltaria à parte interesse de agir.”

e) Violação a literal disposição de lei.

Exige-se que a violação à lei seja literal, ou seja, manifestamente errônea. Isso porque, de acordo com a Súmula nº 343 do Supremo Tribunal Federal: "[...] não cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição de lei quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais".

f) Prova falsa.

A falsidade pode ser apurada em processo criminal ou na própria ação rescisória. Como lecionam Didier Júnior; Cunha (2009, p. 408), “[...] somente cabe a rescisão em razão da prova falsa, se ela for a ‘base’ que sustenta a decisão rescindenda.”

g) Documento novo.

Caberá rescisória quando, depois da sentença, a parte obtiver um documento novo, cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer o uso, capaz, por si só, de lhe assegurar um pronunciamento favorável.

De acordo com Wambier; Medina (s.d.):

o inc. VII do art. 485 trata do único caso, do direito brasileiro, em que a sentença é “meramente rescindível”. Ela não é, em absoluto, viciada, nem por conter vícios intrínsecos, nem por conter vícios extrínsecos (isto é, nem por provir de um processo viciado).

h) Houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença.

Quanto à confissão, somente é possível a rescisão do julgado, caso esta seja o fundamento da convicção do julgador, tal como ocorre com a prova falsa.

Em relação à desistência, Didier Júnior. e Cunha (2009, p. 417) observam que esta é causa de extinção do processo sem julgamento do mérito. Assim,

ao que parece, o legislador, ao referir-se no art. 485, VIII, do CPC à desistência da ação, quis mencionar a renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação, essa sim motivo de extinção do processo com julgamento de mérito (CPC, ART. 269, V).

No que se refere à transação, existe dúvida quanto ao cabimento de ação rescisória ou ação anulatória da sentença homologatória de transação. Para Wambier; Medina (s.d.):

a ação rescisória somente será cabível quando a sentença decide com base na transação; quando, diversamente, o juiz apenas homologa a transação realizada pelas partes, sem manifestar-se sobre a procedência ou improcedência do pedido – isto é, sem nada decidir sobre a lide – cabível será a ação anulatória referida no art. 486 do CPC.

j) Erro de fato

O inc. IX do art. 485 diz que a sentença de mérito poderá ser rescindida, quando é fruto de “erro de fato resultante dos atos ou documentos da causa”. Nesse sentido, conforme Tereza Wambier e Medina (s.d.), esse inciso é uma cópia mal feita do Código italiano:

diz-se que a sentença poderá ser anulada segundo a terminologia do Direito italiano, toda vez que resultar, toda vez que provier ‘da um errore di fatto risultante dagli atti del processo’. ‘Resultante’, em italiano, não quer dizer somente que decorre, quer dizer, facilmente verificável. Em italiano não existe a palavra autos, mesmo porque na praxe forense italiana o processo não fica reunido. Usa-se a palavra ‘atti’, que é o plural de ato, nota-se então que onde a lei italiana usou a palavra ‘atos’, ela queria dizer ‘autos’. O legislador brasileiro traduziu ao pé da letra, por ‘atos’. Assim, a interpretação a ser dada a este inciso do art. 485 é a de que cabe rescisória, quando a sentença resultar de um erro que seja verificável do mero exame dos autos do processo.

Muito embora o rol do art. 485 seja taxativo, Didier Júnior; Cunha (2009) lembram que cabe ação rescisória para a sentença que julga partilha (art. 1.030 do CPC) e que é lícita a interpretação extensiva, como no caso inciso VIII do art. 485 para nele incluir a hipótese de reconhecimento da procedência do pedido.

A rescisória é uma ação de competência originária dos tribunais. É processada e julgada pelo tribunal ao qual está vinculado o juiz de primeira instância que proferiu a decisão de mérito.

Os tribunais julgam as ações rescisórias de seus próprios julgados, “[...] assim considerados quando proferidos em ações originárias ou no âmbito recursal, desde que conhecido o recurso e operado o efeito substitutivo previsto no art. 512 do CPC.” (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 376). Assim, uma rescisória ajuizada no STF ou no STJ, nos casos em que esses tribunais não conheceram o mérito dos recursos extraordinário, ou especial, será extinta sem resolução de mérito.

O cabimento da ação rescisória está sujeito a um prazo decadencial de dois anos, contados do trânsito em julgado da decisão (art. 495 do CPC). Segundo o STJ, esse prazo somente tem início a partir do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo, ainda que tenha havido recurso parcial (STJ, 2ªT., Resp n. 415.586/DF, rel. Min. Eliana Calmon, j. 12.11.202, publicado no DJ, de 09.12.2002, p. 328.)

A Fazenda Pública não conta com prazo diferenciado para o ajuizamento de ação rescisória, salvo nos casos de transferência de terras públicas rurais, hipótese em que o prazo é de 08 anos (art. 8º-C da Lei nº 6.739/1979, inserido pela Lei nº 10.267/2001).

A inicial da rescisória, além de atender aos requisitos do art. 282 do CPC, deve cumular ao pedido de rescisão, se for o caso, o de novo julgamento da causa, além de comprovar o depósito de 5% sobre o valor da causa, a título de multa, caso a ação seja declarada inadmissível ou improcedente por unanimidade de votos (art. 488 do CPC). A Fazenda Pública e o Ministério Público estão isentos do depósito prévio (art. 488, parágrafo único, do CPC e art. 24-A da Lei nº 9.028/95).

Nos termos do art. 491 do CPC, o relator fixará o prazo para o réu se defender na ação rescisória, que não será inferior a quinze dias nem superior a trinta. Como se trata de prazo judicial, a Fazenda Pública e o Ministério Público não dispõem de prazo em quádruplo, pois o art. 188 do CPC aplica-se a prazo legais.

A revelia do demandado em ação rescisória não produz o efeito material consistente na presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor (art. 319 do CPC). De acordo com Didier Júnior. e Cunha (2009, p. 437), o autor não está dispensado do ônus de provar o fato em que se baseia sua pretensão porque “ [...] a autoridade da coisa julgada não pode ser desfeita com uma simples presunção”. Em relação à produção de provas, assim dispõe o art. 492 do CPC:

Se os fatos alegados pelas partes dependerem de prova, o relator delegará a competência ao juiz de direito da comarca onde deva ser produzida, fixando prazo de 45 (quarenta e cinco) a 90 (noventa) dias para a devolução dos autos.

Nos termos do art. 489 do CPC, a rescisória não suspende a execução da sentença ou acórdão objeto da ação, salvo em caso de concessão de medida cautelar ou antecipação de tutela.

Nesse contexto, admite-se reconvenção em ação rescisória, bem como rescisória de rescisória.

3.2 Querela Nullitatis

Trata-se de ação autônoma de impugnação, não sujeita a prazo decadencial ou prescricional, que tem por objetivo declarar a inexistência de uma sentença prolatada em processo no qual esteve ausente algum pressuposto processual de existência, ou seja, eivada de vício transrescisório.

De acordo com Gajardoni (s.d.), a querela nullitatis, em sua origem, não era nem ação, nem recurso, e sim “uma invocação do ‘officiu iudicis’, uma forma simples de provocação do Estado, para que expurgassem do sistema, sentenças que, na verdade, não passam de verdadeiros simulacros”. Esses “simulacros” de sentenças surgem de processos eivados de vícios tão graves que são considerados como inexistentes juridicamente. Para Gajardoni (s.d.), isso ocorre quando as sentenças são “proferidas em feitos em que não observados os pressupostos processuais de existência”. Segundo Wagner Júnior (2008), os pressupostos processuais de existência (ou constituição) são os seguintes: petição inicial, jurisdição, citação e capacidade postulatória.

Conforme Wambier; Medina (s.d.),

os requisitos para que se considere um processo como sendo juridicamente existente são correlatos à definição clássica de processo, que praticamente o identifica com a relação jurídica que se estabelece entre autor, juiz e réu. Portanto, sem que haja um pedido, formulado diante de um juiz, em face de um réu (potencialmente presente, ou seja, citado) não há, sob o ângulo jurídico, propriamente um processo. Claro que uma sentença de mérito proferida nestas condições e neste contexto é, por “contaminação”, sentença juridicamente inexistente, que jamais transita em julgado.

Embora uma sentença prolatada em processo, que não reuniu pressupostos processuais de existência, seja juridicamente inexistente, existe no mundo fático, podendo, portanto, produzir efeitos. Sendo assim, faz-se necessária a declaração de inexistência pelo Poder Judiciário.

Diante disso, forçoso é o reconhecimento da subsistência da querela nullitatis no ordenamento jurídico pátrio. Cabe ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a querela nullitatis é o meio processual cabível para atacar sentenças inexistentes, verbis:

PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA. QUERELA NULLITATIS. CABIMENTO. LITISCONSÓRCIO UNITÁRIO. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DE TODOS OS RÉUS.

É cabível ação declaratória de nulidade (querela nullitatis), para se combater sentença proferida, sem a citação de todos os réus que, por se tratar, no caso, de litisconsórcio unitário, deveriam ter sido citados.

Recurso conhecido e provido.

(REsp 194.029/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 01/03/2007, DJ 02/04/2007 p. 310)

Para Gajardoni (s.d.), embora ainda sobreviva em nosso sistema, hoje não há previsão expressa em relação à querela nullitatis. Em sentido oposto, Didier Júnior; Cunha (2009c, p. 455) defendem que

[...] a querela nullitatis, no direito brasileiro, está prevista como hipótese de cabimento de impugnação à execução de sentença (art. 475-L, I, CPC; nesse caso, a alegação de nulidade as sentença será causa de defesa e não causa de pedir de uma ação) ou como hipótese de cabimento dos embargos à execução contra a Fazenda Pública (art. 741, I, CPC).

Didier Júnior; Cunha (2009, p.456) admitem que uma sentença inexistente possa ser atacada por ação rescisória: “[...] decisão judicial com defeito transrescisório pode ser impugnada por ação rescisória, embora a recíproca não seja verdadeira – decisão judicial com vício rescisório só por ação rescisória pode ser impugnada”. No entanto, a inexistência de uma sentença não precisa ser desconstituída, bastando ser declarada. Nesse sentido é o posicionamento de Gajardoni (s.d.): “se a relação jurídica processual é inexistente, a própria sentença o é, sendo impossível, pois que seja rescindida, já que não cabe ação rescisória sobre algo que não existe”.

3.3 Oposição à execução fundada em título inconstitucional

O art. 475-L, § 1º, e, art. 741, parágrafo único, ambos do Código de Processo Civil, trazem mais uma hipótese de revisão da coisa julgada material: a oposição à execução fundada em título inconstitucional.

O art. 475-L, incluído no CPC pela Lei nº 11.232/2005, trata das hipóteses de impugnação ao cumprimento de sentença, verbis:

Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre:

(...)

II – inexigibilidade do título;

(...)

§ 1o Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

O art. 741 trata dos embargos à execução contra a Fazenda Pública. O parágrafo único desse artigo foi acrescido inicialmente ao CPC pela Medida Provisória nº 1.997-37/2000, mas vigia por força da Medida Provisória nº 2.180-35, e art. 475-L, e assim dispunha:

Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal.

O texto conferido pela medida provisória foi revogado pela Lei nº 11.232/2005, que alterou o dispositivo, deixando-o idêntico ao art. 475-L, § 1º:

Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

Como observa Didier Júnior:

Houve uma pequena mudança de redação, para deixar claro que o paradigma que deve ser utilizado para a aferição da constitucionalidade da lei deve ser uma decisão do STF. É que a última parte do dispositivo (‘ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas como incompatíveis com a Constituição Federal’) não continha a informação, que estava implícita, de que a incompatibilidade constitucional cogitada deveria ter sido reconhecida pelo STF. Agora, não há mais dúvidas.” (DIDIER JÚNIOR et al., 2009b, p.372).

É indiferente que a inconstitucionalidade seja declarada em controle concentrado ou difuso. Ao permitirem a desconstituição do título executivo judicial quando esse tenha fundamento em norma que incorra “[...] em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”, o art. 475-L, § 1º, e, art. 741, parágrafo único, possibilitam a oposição de impugnação e embargos também nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade via controle incidental. Nesse sentido, Didier Júnior:

É importante ressaltar que mesmo as decisões proferidas em controle difuso servem como paradigma para a aplicação do mencionado dispositivo, tendo em vista a eficácia ultra partes e paradigmática que vem sendo dada pelo STF a tais decisões, em fenômeno que já se designou de ‘objetivação do controle difuso de constitucionalidade’. Para a aplicação do dispositivo é desnecessária a resolução do Senado (art. 25, X, CF/88), suspendendo a vigência da lei. (DIDIER JÚNIOR et al., 2009b, p.373)

Para Lucon (s.d.),

o título executivo judicial será desconstituído por força de decisão do Supremo Tribunal Federal, ainda que essa decisão seja superveniente à formação do título, o que aparentemente colidiria com a garantia constitucional da coisa julgada (CF, art. 5o, XXXVI). No entanto, tal garantia não constitui um bem ou valor intocável, já que a legislação infraconstitucional pode regular as situações em que ela poderá ser afastada (cfr., p. ex., os incisos do art. 485 do Código de Processo Civil).

A oposição à execução fundada em título inconstitucional é uma nova hipótese de revisão da coisa julgada. Portanto, não está submetida ao regramento da ação rescisória. Como lembra Didier Júnior: “é importante a observação, pois há diferenças em relação ao prazo bienal para a propositura da rescisória, que não se aplica a este caso, e à competência, que, para a ação rescisória, é sempre de um tribunal.” (DIDIER JÚNIOR, 2009b, p. 372).

O art. 475-L, § 1º, e, art. 741, parágrafo único, não abrangem expressamente todos os problemas relacionados à coisa julgada inconstitucional, eis que cuidam de provimentos jurisdicionais que dão ensejo à atividade executiva. Muito embora a impugnação ao cumprimento de sentença e os embargos à execução digam respeito às sentenças condenatórias, nada obsta que por interpretação analógica seja possível a revisão da coisa julgada em sentenças que dispensem atividade executiva.

De acordo com Talamini (2008, p. 157),

não é possível descartar por completo a desconstituição da coisa julgada em casos limites envolvendo os provimentos que independem de posterior realização prática (declaratórios e constitutivos). Podem existir situações em que seja tão grave a ofensa contida no provimento declaratório ou constitutivo, que se justifique o seu combate e desfazimento mesmo depois de decorrido o prazo para a ação rescisória.

Essa também é a opinião de Didier Junior:

Se o objetivo é prestigiar as decisões do STF em matéria de controle de constitucionalidade, uma sentença meramente declaratória sem eficácia executiva ou uma sentença constitutiva que ofenda a Constituição Federal, nos termos examinados, deve ser rescindida tanto quanto uma sentença condenatória. Não há razão para o discríminen. (DIDIER JÚNIOR et al., 2009b, p. 375).

Para Lucon (s.d.), a regra do § 1º do art. 475-L, § 1º, bem como do parágrafo único do art. 741, autorizam a declaração de inexistência do direito material sobre o qual se funda o título executivo, pela via jurisdicional da impugnação ou dos embargos, ou mesmo por meio de ação cognitiva autônoma.

O fundamento constante do dispositivo em análise constitui causa de pedir autônoma e suficiente para dar ensejo à propositura de ação cognitiva autônoma imprescritível. Na verdade, a inconstitucionalidade de uma lei, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, constitui invalidade insanável e por isso, não pode estar restrita ao campo exclusivo dos embargos. Por essa razão, essa causa petendi pode viabilizar ação cognitiva autônoma com o escopo de desconstituir sentença que se baseou exclusivamente em lei reconhecida como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal independentemente de seu conteúdo, seja o ato de poder meramente declaratório, constitutivo, condenatório ou mandamental. (LUCON, s.d)

3.4 Correção de erros materiais e erros de cálculo

A legislação pátria permite a impugnação de erros materiais e de cálculo em qualquer fase do processo, bem como a correção de ofício pelo julgador.

Conforme o art. 463 do Código de Processo Civil: “Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: I - para lhe corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou lhe retificar erros de cálculo”.

O art. 1º-E da Lei nº 9.494/1997, acrescido pela Medida Provisória 2.180-35/2001, estabelece que “são passíveis de revisão, pelo Presidente do Tribunal, de ofício ou a requerimento das partes, as contas elaboradas para aferir o valor dos precatórios antes de seu pagamento ao credor.”

De acordo com Talamini, erro material é aquele que pode ser verificado e corrigido a partir de critérios objetivos:

Trata-se de defeito “manifesto”, “evidente”, “reconhecível à primeira vista”, “patente”, “notório”. O erro material reside na expressão do julgamento, e não no julgamento em si ou em suas premissas. Trata-se de uma inconsistência que pode ser clara e diretamente apurada e que não tem como ser atribuída ao conteúdo do julgamento – podendo apenas ser imputada à forma (incorreta) como ele foi exteriorizado.

Esse caráter objetivo e inequívoco do erro material é facilmente ressaltado na hipótese de erro de cálculo: há até mesmo a “segurança” matemática de que existe a falha. Por isso, separa-se claramente o erro de cálculo das escolhas que o julgador faz acerca de critérios jurídicos ou econômicos que sejam relevantes para nortear a conta, mesmo quando estas sejam indevidas, estejam erradas. É a tradicional distinção entre erro de cálculo e “critério de cálculo” (TALAMINI, 2005, p. 526/527).

O erro material não altera o conteúdo da decisão, porque não se admite que o juiz tenha tido a intenção de cometê-lo. Assim, é possível a correção do erro material mesmo após o trânsito em julgado.

Entende-se como erro de cálculo apenas o erro aritmético, em razão do qual há inclusão de parcela indevida (TRF4 - AGRAVO DE INSTRUMENTO: AG 21728 RS 2004.04.01.021728-3 -Relator(a): LUIZ CARLOS DE CASTRO LUGON - Julgamento: 30/08/2005 - Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA SUPLEMENTAR - Publicação: DJ 05/10/2005 PÁGINA: 712)

Segundo Silva (2008, p. 316), a sentença que homologa cálculo não produz coisa julgada, porque decide sobre fato, não sobre direito:

Se o arbitrador, por qualquer motivo, desobedeceu ao julgado, produzindo um cálculo ‘absurdo’, terá, com certeza, cometido erro de cálculo. A declaração contida no ato de homologar, no ato através do qual o juiz torna seu o arbitramento (homo+logos), não produz coisa julgada, capaz de impedir que se corrija o cálculo, a não ser que aceitemos a imutabilidade dos efeitos da sentença.

O Superior Tribunal de Justiça reconhece amplamente a possibilidade de o erro de cálculo ser corrigido de ofício pelo Poder Judiciário, verbis:

RECURSO ORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. PRECATÓRIO. ATUALIZAÇÃO DE VALORES. ERROS MATERIAIS. CORREÇÃO PELO JUIZ. POSSIBILIDADE. NÃO-PROVIMENTO DO RECURSO.

1 - Constitui dever legal e constitucional do magistrado verificar se a execução está sendo realizada em conformidade com o estabelecido na sentença e, portanto, cabe-lhe, também apontar e não concordar com irregularidades constatadas na execução ainda quando a parte interessada não a tenha embargado ou percebido os erros cometidos.

2 - "In casu", o acórdão impugnado reconhece a existência de erro de fato nos cálculos e reduziu o valor do precatório complementar de R$ 18.924.593,88 para R$ 4.626.447,75, após a atualização. O erro material reconhecido pelo decisório foi comprovado pelos cálculos elaborados pela Seção de Apoio de Cálculo Judiciário.

3 - Recurso ordinário não-provido.

(RMS 20.755/RJ, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/11/2007, DJe 04/08/2008 – grifo nosso)

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. JUROS COMPENSATÓRIOS. BASE DE CÁLCULO. TRÂNSITO EM JULGADO. ERRO DE CÁLCULO.

1. O erro de cálculo, caracterizado pela omissão ou equívoco na inclusão de parcelas indevidas ou na exclusão de valores devidos, não faz coisa julgada, podendo ser corrigido até mesmo de ofício.

2. Configura-se erro de cálculo quando o contador judicial calcula o valor devido a título de juros compensatórios em percentual sobre o total da indenização devida, e não sobre a diferença entre a condenação e a oferta inicial.

3. Os juros compensatórios, na desapropriação, remuneram o capital que o expropriado deixou de receber desde a perda da posse, e não os possíveis lucros que deixou de auferir com a utilização econômica do bem expropriado.

4. Remunerando o capital que deixou de ser pago no momento da imissão provisória na posse, os juros compensatórios devem incidir somente sobre a diferença eventualmente apurada entre oitenta por cento (80%) do preço ofertado em juízo — percentual máximo passível de levantamento, nos termos do art. 33, § 2º, do Decreto-Lei 3.365/41 — e o valor do bem fixado na sentença, conforme decidido pela Corte Suprema no julgamento da ADI 2.332-2/DF, pois é essa a quantia que fica efetivamente indisponível para o expropriado.

5. Recurso especial provido.

(REsp 904.553/MG, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/04/2007, DJ 30/04/2007 p. 296 – grifo nosso)

Assim sendo, a impugnação com base na existência de erro material e erro de cálculo é instrumento de revisão da coisa julgada previsto no ordenamento jurídico pátrio.

 

4 RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA

Em nome da segurança jurídica, o que ficou decidido em sentença transitada em julgado, em regra, não pode ser revisto.

Assim, pode-se afirmar que “a coisa julgada faz do branco preto; origina e cria coisas; transforma o quadrado em redondo; altera os laços de sangue e transforma o falso em verdadeiro” (SCASSIA apud DIDIER JÚNIOR et al., 2009a, p. 408).

Mas, como indaga Câmara (2008, p.21), “[...] até que ponto pode valer a pena considerar-se imutável e indiscutível uma sentença errada?” De acordo com o referido autor, “o direito processual moderno é um sistema orientado à construção de resultados justos. [...] É preciso, pois, relativizar a coisa julgada material, como forma de se manifestar crença na possibilidade de se criar um mundo mais justo” (CÂMARA, 2008, p. 37).

Para Armelin (2008, p. 112), a prevalência da segurança jurídica sobre a justiça, “embora seja a regra, não deveria subsistir nas hipóteses macroscópicas de afronta da decisão transita em julgado aos demais princípios fundamentais e informativos do sistema, notadamente quando expressamente engastados na estrutura da Constituição Federal”.

Com fundamento em tais ponderações, surgiu uma corrente doutrinária que afirma ser possível rever a coisa julgada, independentemente de prazo para tanto, como uma decorrência da aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

4.1 Casos emblemáticos

Gisele Santos Fernandes Góes aponta dois casos como paradigmáticos da relativização: 1º) o da desapropriação em que foi fixado valor de indenização incompatível com a moralidade administrativa; 2º) o da nova ação de investigação de paternidade baseada em exame de DNA, inexistente à época da formação da coisa julgada.

O da desapropriação com um valor de indenização totalmente irreal (mais do que o justo valor) suscitou para os relativistas a tomada de posição de desconsideração da coisa julgada, porque a decisão transitada em julgado ofendia nitidamente o princípio da moralidade administrativa.

O dos exames de DNA, quando da descoberta do avanço tecnológico, incitaram a possibilidade dos filhos de investigarem a paternidade, com o intuito de descobrirem os seus vínculos de filiação, não podendo permitir-se trânsito em julgado, quando não é justo, razoável e proporcional no sistema distanciar-se da realidade, do fato de quem é o verdadeiro pai. (GÓES, 2006.).

O Superior Tribunal de Justiça já enfrentou essas questões no julgamento dos Recursos Especiais nº 240.712 e nº 226.436, verbis:

PROCESSUAL CIVIL. TUTELA ANTECIPADA. EFEITOS. COISA JULGADA.

1. Efeitos da tutela antecipada concedidos para que sejam suspensos pagamentos de parcelas acordados em cumprimento a precatório expedido.

2. Alegação, em sede de Ação Declaratória de Nulidade, de que a área reconhecida como desapropriada, por via de Ação Desapropriatória Indireta, pertence ao vencido, não obstante sentença trânsito em julgado.

3. Efeitos de tutela antecipada que devem permanecer até solução definitiva da controvérsia.

4. Conceituação dos efeitos da coisa julgada em face dos princípios da moralidade pública e da segurança jurídica.

5. Direitos da cidadania em face da responsabilidade financeira estatal que devem ser asseguradas.

6. Inexistência de qualquer pronunciamento prévio sobre o mérito da demanda e da sua possibilidade jurídica.

7. Posição que visa, unicamente, valorizar, em benefício da estrutura social e estatal, os direitos das partes litigantes.

8. Recurso provido para garantir os efeitos da tutela antecipada, nos moldes e nos limites concedidos em primeiro grau.”

(REsp 240.712/SP, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/02/2000, DJ 24/04/2000 p. 38)

PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. REPETIÇÃO DE AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR FALTA DE PROVAS. COISA JULGADA. MITIGAÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO.

I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido.

II – Nos termos da orientação da Turma, "sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza" na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real.

III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, "a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade".

IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.

(REsp 226.436/PR, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 28/06/2001, DJ 04/02/2002 p. 370)

Para Cristiano Chaves de Farias, no julgamento do Recurso Especial n. 226.436, o STJ inaugurou uma nova era no tratamento da coisa julgada:

A velha assertiva de que o direito processual civil se contentava com a verdade formal está definitivamente superada. Não se pode olvidar que prevalece na fase atual do nosso direito processual a busca da verdade no processo, evitando injustiças (FARIAS, 2008, p. 73).

De acordo com o autor,

a coisa julgada, talhada no sistema individualista do CPC vigente, é imprestável para as ações investigatória e negatória de paternidade, eis que poderia implicar na negação do próprio direito material correspondente. Ou seja, poderia, por via oblíqua, frustrar o caráter instrumental do direito processual, que serviria como óbice à concretização efetiva do direito à filiação, garantido constitucionalmente (FARIAS, 2008, p. 77).

Ainda segundo Farias (2008, p. 80), em razão das peculiaridades das ações filiatórias, a decisão judicial que não exaurir os meios de prova estaria acobertada pelo “manto sagrado da coisa julgada” sob a técnica secundun eventum probationes, identicamente ao que se tem nas ações coletivas. Registra que, nesse sentido, existe projeto de lei tramitando no Congresso Nacional.

Para a hipótese do exame de DNA, Barbosa Moreira (2008, p. 248) defende a necessidade de alteração legislativa para fixar o termo de início do prazo da rescisória “no dia em que o interessado obtém o resultado do exame, e não no trânsito em julgado da sentença rescindenda.”

Como assevera Farias (2008, p. 79): “[...] negar o direito do filho em investigar a paternidade do seu pai, invocando barreiras ou formalismos processuais, é inaceitável e atenta contra a dignidade humana, fazendo tabula rasa dos direitos fundamentais”. O direito não é um fim em si mesmo, eis que existe com meio de defesa dos interesses do ser humano. Assim, não se pode admitir que a dignidade da pessoa humana seja preterida pela coisa julgada.

4.2 Fundamentos para a relativização da coisa julgada

Dois são os fundamentos para a relativização da coisa julgada: a injustiça da decisão e a coisa julgada inconstitucional.

Quanto ao primeiro, cumpre salientar que a coisa julgada sempre foi vista como um dogma indiscutível, não como instrumento de justiça, mas como imperativo de segurança jurídica.

Como afirma Armelin (2008, p. 91): “[...] nenhum dos instrumentos processuais direcionados a afastar direta ou indiretamente a coisa julgada material leva em consideração a justiça da decisão.” O autor ressalta que “o sistema processual aceita o risco da existência de sentenças materialmente injusta, desde que adimplidos todos os requisitos formais para a prestação da tutela jurisdicional reclamada e atendida.” (ARMELIN, 2008, p. 98)

Para Luiz Guilherme Marinoni (s.d.), “[...] a ‘tese da relativização’ contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por ‘justiça’[...]”. Isso porque, por ser um valor, a justiça é um conceito variável no tempo e no espaço, o que dificulta o estabelecimento de regras objetivas definindo as hipóteses em que deverá prevalecer sobre a segurança jurídica.

Para Barbosa Moreira (2008, p. 236),

mesmo a doutrina favorável em maior ou menor medida, à proposta ‘relativizadora’ não pode deixar de advertir-se da insuficiência, para justificá-la, da mera invocação de eventual ‘injustiça’ contida na sentença passada em julgado. Condicionar a prevalência da coisa julgada, pura e simplesmente, à verificação da justiça da sentença redunda em golpear de morte o próprio instituto. Poucas vezes a parte vencida se convence de que sua derrota foi justa. Se quisermos abrir-lhe sempre a possibilidade de obter novo julgamento da causa, com o exclusivo fundamento de que o anterior foi injusto, teremos de suportar uma serie indefinida de processos com idêntico objeto [...]

Ademais, como ressalta Nelson Nery Júnior (2008, p. 296): “[...] a injustiça da sentença era, pois uma das causas de sua rescindibilidade pela ação rescisória alemã nazista.”

Não é desejável a perpetuação de decisões judiciais que firam o sentimento médio de justiça de uma sociedade. No entanto, a justiça absoluta é utópica. Pelo processo, é possível alcançar apenas uma justiça formal. Portanto, não se pode admitir a relativização da coisa julgada para corrigir uma suposta injustiça da decisão.

Assim, como entende Câmara (2008, p. 31): “[...] apenas no caso de se ter algum fundamento constitucional é que será possível reapreciar o que ficou decidido por sentença transitada em julgado.”

 

4.3 Coisa julgada inconstitucional

Para os defensores da possibilidade de relativização da coisa julgada inconstitucional, a colisão da segurança jurídica com valores igualmente constitucionais é solucionada pela aplicação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

Como exposto no tópico anterior, somente a ofensa à Constituição legitima discussões sobre a quebra da coisa julgada.

A coisa julgada está prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil, que assim dispõe: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (grifo nosso). Verifica-se que, muito embora seja a coisa julgada uma garantia constitucional, não foi conceituada no texto da Carta Magna.

Sua definição ficou a cargo da lei ordinária, que, deste modo, pode abrandar o alcance do instituto, como o faz nos casos de ação rescisória, revisão criminal, coisa julgada secundum eventum litis (LAP 18, LACP 16, CDC 103, I a III).

Assim, a inalterabilidade da decisão judicial transitada em julgado, vedada pela via recursal, não exclui sua modificabilidade por outras vias, como, por exemplo, a ação rescisória e os embargos à execução por inexigibilidade do título fundado em lei declarada inconstitucional (art. 741, parágrafo único, do CPC).

Diante disso, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria defendem que a Constituição a protegeu a coisa julgada apenas da retroatividade de lei nova, e, por isso, a imutabilidade da coisa julgada é contemplada apenas na legislação ordinária: “[...] a coisa julgada será intangível enquanto tal apenas quando conforme a Constituição. Se desconforme, estar-se-á diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada inconstitucional” (THEODORO JÚNIOR; FARIA, 2008, p. 191). Nessa perspectiva, a coisa julgada inconstitucional diz respeito à decisão judicial revestida de imutabilidade, que veicula uma afronta à Constituição.

Eduardo Talamini (2005, p. 384) aponta as origens dessa expressão:

O publicista português Paulo Otero dedicou-se ao exame do valor e eficácia das sentenças jurisdicionais acobertadas pela coisa julgada que contrariem regras e princípios constitucionais (‘sentenças inconstitucionais’). Empregou o termo ‘caso julgado inconstitucional’ para retratar tais situações – expressão essa que, adaptada em vista da designação mais comum do instituto no Brasil, tornou-se usual na doutrina brasileira recente: ‘coisa julgada inconstitucional. Assim, e de saída, ele tem o mérito de haver trazido a questão à baila.

Barbosa Moreira (2008, p. 239) critica a terminologia, pois, para o autor, a decisão contrária à Constituição já o é antes mesmo do trânsito em julgado: “[...] a expressão ‘coisa julgada inconstitucional’ é tecnicamente defeituosa: na sentença, e não em sua imutabilidade, é que se pode conceber a existência de contrariedade à Constituição”. Não obstante as críticas, a expressão é precisa, eis que enfatiza muito bem o cerne da discussão: imutabilidade versus inconstitucionalidade.

De acordo com Gisele Santos Fernandes Góes (2006), o pioneiro defender no Brasil a tese da relativização da coisa julgada inconstitucional foi o Ministro José Augusto Delgado do Superior Tribunal de Justiça, o qual advoga que “todo provimento jurisdicional deve guardar conformidade com a Constituição, sob pena de se configurar uma não-decisão.”

Para Alexandre Freitas Câmara (2008, p. 36), defensor dessa tese: “[...] diante de eventual conflito entre a segurança representada pela coisa julgada e a justiça representada pelo respeito à Constituição, esta última deve prevalecer”.

Como se sabe, a validade de um ato estatal, proveniente de qualquer um dos Poderes da República, está condicionada à sua compatibilidade com a Constituição. Em razão disso, indagam Theodoro Júnior; Faria (2008, p. 187): “Se a lei não é imune, qualquer que seja o tempo decorrido desde a sua entrada em vigor, aos efeitos negativos da inconstitucionalidade, por que o seria a coisa julgada?” A doutrina não é unânime quanto ao valor jurídico das sentenças inconstitucionais.

Para Theodoro Júnior; Faria, o trânsito em julgado de uma decisão não impede o reconhecimento da inconstitucionalidade, pois haveria nulidade absoluta:

A decisão judicial transitada em julgado desconforme a Constituição padece do vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos, lhe impõe a nulidade. Ou seja, coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazo a prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos judiciais nulos independem de rescisória para a eliminação do vício respectivo. (THEODORO JÚNIOR; FARIA, 2008, p. 195, grifo dos autores).

Segundo os autores, a relativização da coisa julgada se impõe mesmo que a decisão seja baseada em norma incompatível com a Constituição, mas que ainda não foi declarada inconstitucional pelo STF:

Por último, é importante notar que a quebra do absolutismo da coisa julgada tem sido obra criativa da jurisprudência, que vem sendo paulatinamente construída não sobre o fato de a lei aplicada ter sido posteriormente objeto de declaração de inconstitucionalidade, mas de a sentença conter ofensa a preceitos e princípios fundamentais consagrados na Constituição (THEODORO JÚNIOR; FARIA, 2008, p. 206)

De outro lado, Wambier; Medina defendem que as sentenças inconstitucionais seriam inexistentes, bastando, para atacá-las, intentar uma ação de natureza declaratória:

O fundamento para a ação declaratória de inexistência seria a ausência de uma das condições da ação: a possibilidade jurídica do pedido. Para nós, a possibilidade de impugnação das sentenças de mérito proferidas apesar de ausentes as condições da ação não fica adstrita ao prazo do art. 495 do CPC (WAMBIER; MEDINA, 2008, p. 388)

De acordo com Talamini,

Araken de Assis sustenta que no direito vigente é absolutamente ineficaz toda e qualquer sentença amparada em norma ou em interpretação ou aplicação declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal em sede de controle concentrado. Reputa que tal defeito não dará apenas ensejo aos embargos do art. 741, par. ún.: poderá ser alegado a todo tempo, inclusive na própria execução ou mediante simples ação declaratória. [...]. Em suma, uma vez tendo o Supremo em via direta declarado inconstitucional uma norma ou determinada interpretação, toda a sentença que nela se fundasse, doravante, cairia automaticamente por terra. (ASSIS apud TALAMINI, 2005, p. 400/401)

Contudo, segundo o entendimento tradicional da doutrina, somente por ação rescisória é possível desconstituir sentença baseada em lei que foi declarada inconstitucional em controle direto de constitucionalidade.

Nelson Nery Júnior (2008, p. 294) defende que a inconstitucionalidade da decisão não impede que se forme a coisa julgada material: “[...] a coisa julgada material tem força criadora, tornando imutável e indiscutível a matéria por ela acobertada, independentemente da constitucionalidade, legalidade ou justiça do conteúdo intrínseco dessa mesma sentença.” Nesse mesmo sentido é o pensamento de Talamini:

Ressalvados os casos em que a inconstitucionalidade afete diretamente os próprios pressupostos de existência da relação processual, a sentença de mérito fará coisa julgada material. Aliás, é precisamente por isso que se põe o problema da “coisa julgada inconstitucional”. Afinal, se procedesse a tese daqueles que preconizam indiscriminadamente a inexistência jurídica ou a “nulidade absoluta” (“transrescisória”) da “sentença inconstitucional”, o tema da “coisa julgada inconstitucional” seria um falso problema, e a expressão na faria sentido: simplesmente não haveria coisa julgada (TALAMINI, 2005, p. 422)

Por sua vez, Barbosa Moreira (2008, p. 429) é contrário à relativização da coisa julgada ainda que fundada em lei posteriormente declarada inconstitucional pelo STF: “Não nos inclinamos a sugerir que se elimine a imunidade da res iudicata à posterior declaração de inconstitucionalidade, mesmo no julgamento de ação direta.” Quanto à sentença que se baseou em lei já declarada inconstitucional pelo STF, defende uma solução de lege ferenda: “Em atenção à particular gravidade do vício, seria razoável abrandar essa exigência, permitindo, a título excepcional, o ajuizamento da rescisória a qualquer tempo.”

4.4 Tese contrária à relativização

Muitos são os argumentos levantados pelos que se opõem à relativização da coisa julgada.

Nelson Nery Júnior (2008, p. 292), por exemplo, afirma que, “[...] na verdade, pretende-se desconsiderar a coisa julgada, como se ela não tivesse existido, utilizando-se do eufemismo da ‘relativização’.”

Anote-se, por oportuno, que, mesmo com a ditadura totalitária no nacional-socialismo alemão, que não era fundada no Estado Democrático de Direito, como é curial, os nazistas não ousaram “desconsiderar” a coisa julgada. Criaram uma nova causa de rescindibilidade da sentença de mérito para atacar a coisa julgada. Mas, repita-se, respeitaram-na e não a desconsideraram. (NERY JÚNIOR, 2008, p. 296).

Mesmo no caso da nova ação de investigação de paternidade, baseada em exame de DNA, inexistente à época da formação da coisa julgada, Luiz Guilherme Marinoni mostra-se contrário à tese da relativização, argumentando que

a impossibilidade de o legislador acompanhar a velocidade do progresso da tecnologia não pode levar à conclusão de que o juiz pode definir, mediante a aplicação da regra da proporcionalidade, os direitos que não se submetem à coisa julgada material.

[...]

Ademais, a possibilidade de o juiz desconsiderar a coisa julgada diante de determinado caso concreto certamente estimulará a eternização dos conflitos e colaborará para o agravamento, hoje quase insuportável, da ‘demora da justiça’, caminhando em sentido diretamente oposto àquele apontado pela doutrina processual contemporânea. (MARINONI, s.d.)

Com o autor, concorda Gisele Santos Fernandes Góes (2006): “A relativização da coisa julgada atenta contra o princípio da razoável duração do processo inserto no inciso LXXVIII do art. 5º da CF/88”. Entretanto, os autores contrários à tese da relativização não dão soluções satisfatórias aos casos em que há flagrante inconstitucionalidade da decisão acobertada pela coisa julgada.

Para Sérgio Nojiri (2008, p. 368), nos casos de:

[...] possível mau uso de dinheiro público ou de equívoco da paternidade, acredito que, mesmo em se tratando de casos evidentes, é preferível a manutenção dessas decisões, tidas como injustas, do que colocar em risco a integridade do sistema.

Eduardo Talamini observa que, embora alguns autores discordem das teorias de relativização da coisa julgada, no entanto:

[...] o posicionamento por eles adotado em face de determinadas e específicas questões relacionadas com o tema muitas vezes implica, concretamente, significativo alargamento do âmbito de sentenças que podem ser revisadas depois do trânsito em julgado independentemente de ação rescisória. (TALAMINI, 2005, p. 400 – grifos do autor).

Conforme Sérgio Gilberto Porto: “[...] quando uma primeira ação de investigação de paternidade é julgada improcedente, ela poderia ser reproposta sem que esbarrasse na anterior coisa julgada, desde que na ‘nova’ ação fossem invocados outros elementos probatórios” (PORTO apud TALAMINI, 2005, p.401).

Talamini (2005, p. 402) condena esse artifício, pois a relativização da coisa julgada “mediante a subversão dos conceitos, categorias e critérios técnico-jurídicos tende a ser ainda muito mais perigosa porque é ‘silenciosa’, ‘invisível’, sub-reptícia”.

Uma indevida “relativização dos conceitos” estará ocultando a verdadeira “relativização” dos institutos, sem que os critérios então empregados necessariamente se revistam de legitimidade constitucional. Portanto, convém destacar soluções que, diante de situações em que rigorosamente há coisa julgada, mas não parece razoável mantê-la, em vez de enfrentar a questão da quebra da coisa julgada, optam pela ampliação ou adaptação de outros conceitos, mediante formulações destinadas a sustentar que não haveria coisa julgada (TALAMINI, 2005. p. 402/403).

4.5 Soluções de lege lata ou de lege ferenda?

Para o combate à coisa julgada inconstitucional há necessidade de alteração legislativa? Parte da doutrina entende que o Legislador deve redisciplinar o fenômeno jurídico da coisa julgada para o combate à coisa julgada inconstitucional, buscando conciliar segurança jurídica e justiça.

Fredie Didier Júnior (2008, p. 08/09), corroborando com o pensamento de Marinoni, Ovídio e Nelson Nery Júnior, defende que as hipóteses de ação rescisória devem ser revistas e que a querela nullitatis dever ser mais bem sistematizada, não se podendo permitir a revisão dos julgados de forma atípica por critérios de justiça.

Como já exposto no tópico nº 4.2, o conceito de justiça é variável no tempo e no espaço, razão pela qual não se pode admitir a quebra da coisa julgada para corrigir suposta injustiça da decisão.

A relativização da coisa julgada só é legítima se houver desrespeito à Constituição.

Ora, se um ato estatal só é válido se compatível com a Constituição, não se justifica tratamento diverso em relação aos pronunciamentos do Poder Judiciário.

Donaldo Armelin defende alterações na legislação a fim de se conferir nova disciplina à ação rescisória:

[...] mister se faria, para o equilíbrio dos valores Justiça e Segurança Jurídica, em casos especiais, reduzir a área dessa excepcionalidade, sendo conveniente flexibilizar a sai rigidez adotando-se uma disciplina menos limitativa da ação rescisória, com a fixação de termos iniciais para o prazo decadencial a ela imposta, variáveis conforme o tipo de vicio que inquina a decisão rescindenda. Assim esse prazo iniciar-se-ia a partir do conhecimento da ocorrência do vicio ensejador da rescisão ou do fato que a justificaria (ARMELIN, 2008, p. 113).

Com exceção das hipóteses do exame de DNA e de sentença baseada em lei já declarada inconstitucional pela Corte Suprema, para os quais há necessidade de alteração legislativa, Barbosa Moreira defende que:

a disciplina atual já leva em suficiente conta os motivos capazes de justificar a “relativização” da coisa julgada material – vale dizer, já a relativiza quantum satis. Não há lugar, ao nosso ver, para invocar, com o fito de aumentar a dosagem, quaisquer princípios supostamente desprezados pelo legislador. Atende o regime vigente, em especial, às exigências da razoabilidade normativa. Merece, em linhas gerais, apoio e preservação (MOREIRA, 2008. p. 249).

No entanto, como afirma Farias (2008, p. 79): “A sociedade não pode esperar pela atividade legislativa para ter assegurados seus direitos fundamentais.” Enquanto não há alteração legislativa, a coisa julgada inconstitucional deve ser combatida por intermédio de ação rescisória, embargos à execução ou querela nullitatis, quando escoado o prazo dos dois primeiros meios processuais.

A querela nullitatis consiste em uma ação declaratória de nulidade imprescritível. Assim, a sentença inconstitucional, seja por ser juridicamente inexistente, seja por ser padecedora de nulidade absoluta, poderia ser combatida a qualquer tempo.

Dessa forma, razão assiste a Theodoro Júnior e Faria (2008, p. 218), no sentido de que: “Não procede, portanto, a afirmação de falta de previsão no direito positivo, de remédio de ataque à sentença transitada em julgado, fora da ação rescisória”.

Essa também é a opinião de Teresa Aruda Alvin Wambier e José Miguel Garcia Medina (s.d.): “Não há, portanto, necessidade de alteração legislativa e muito menos do texto da Constituição Federal, para que se dêem à coisa julgada as dimensões que este instituto deve ter num Estado de Direito democrático”.

5 CONCLUSÃO

A ampliação das hipóteses de revisão da coisa julgada é objeto de intenso debate jurídico, prevalecendo na doutrina a corrente que não admite essa possibilidade.

No entanto, pela análise dos argumentos favoráveis e contrários à tese da “relativização da coisa julgada”, verifica-se que os pró-relativização têm alegações mais convincentes.

Obviamente, a injustiça de uma decisão, por ser um critério muito subjetivo, não pode dar ensejo ao afastamento da coisa julgada, mas não se pode admitir a manutenção eterna de uma decisão incompatível com a Lei Fundamental, apenas porque houve o decurso do prazo para a propositura da ação rescisória.

Cumpre salientar que a validade de qualquer ato estatal está condicionada a sua compatibilidade com os princípios e preceitos da Constituição. Assim, as decisões do Poder Judiciário, ainda que definitivas, não estão isentas de controle de constitucionalidade.

A segurança jurídica não é um valor absoluto, devendo se harmonizar com outros valores, tais como a dignidade da pessoa humana e a moralidade administrativa.

Deste modo, “relativizar a coisa julgada” de uma decisão inconstitucional não afronta o Estado Democrático e de Direito, pois prestigia a supremacia da Constituição.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

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Data de elaboração: outubro/2009

 

Como citar o texto:

ALMEIDA, Carolina Guerra de..Relativização da Coisa Julgada. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/2072/relativizacao-coisa-julgada. Acesso em 14 dez. 2010.

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