Introdução

A influência do pensamento clássico que ainda sobrevive e insiste em permanecer na cultura jurídica brasileira tornou os instrumentos de realização do Direito Penal um formalismo inconcebível para a sociedade moderna.

Nossa polícia judiciária, por exemplo, possui a estruturação legal dos tempos de Getúlio Vargas, com força inquisitiva, por meio do inquérito policial obsoleto, cujos depoimentos vão repetir-se de forma protelatória na fase judicial, graças à ausência do contraditório na fase investigatória.

Faltando garantias constitucionais que retirem os policiais da influência político-partidária, a Polícia Civil acaba servindo como um verdadeiro filtro dos que devem ou não ser denunciados pelo Ministério Público. Exerce um controle sobre a criminalidade baixa, pouco realizando quando trata-se dos crimes contra a economia, a ordem tributária ou quando a atividade criminosa é proveniente de organização criminosa e lavagem de dinheiro, até mesmo por falta de estrutura para tanto.

A Polícia Militar, em suas rondas ostensivas, igualmente controla a periferia, concede segurança aos bancos e ao comércio, sem desenvolver papel mais importante no combate à criminalidade da classe dominante, em que pese seus esforços na área florestal, na defesa do meio ambiente, mas sem estrutura para essas funções em um país de dimensões continentais.

Os delegados de polícia, sem garantia constitucional da inamovibilidade, quando atuantes, estão sujeitos às pressões políticas e remoções indesejadas pelos agentes políticos que são prejudicados pelas investigações policiais.

Acabam apenas dedicando-se a cuidar dos delitos contra o patrimônio, geralmente cometidos pelos agentes mais pobres, enviando, dessa forma, ao Poder Judiciário e conseqüentemente ao Ministério Público, inquéritos policiais que versam sobre delitos, que, em sua maioria, são socialmente irrelevantes, enquanto milhões de reais escorregam por vias escusas diariamente em vários setores da corrupção, sem que haja um aparelho policial capacitado técnica e politicamente para enfrentar tais desafios.

Daí ter afirmado o papel de filtro quando se trata de manter esta estrutura arcaica, na forma de apurar-se os fatos delituosos.

O processo penal na fase judicial igualmente traz ranços do autoritarismo, com o desrespeito à dignidade da pessoa humana, por meio de inúmeras prisões cautelares sem necessidade, o interrogatório do réu sem a participação do advogado de defesa, o que é uma tragédia para os acusados mais pobres, contendo ainda a proibição para elaborarem-se reperguntas ao interrogando.

O Tribunal do Júri, em que pese dizer-se democrático, pouco representa a realidade social. O corpo de sentença, geralmente formado por jurados de classe média, acaba por selecionar os condenados, ou seja, os pobres, visto que, uma classe superior tende a ver na classe inferior uma ameaça.1

Além disso, elaboram-se quesitos técnicos e complexos para pessoas leigas, ao invés de simplificá-los ao máximo.

Ainda persistem no Código de Processo Penal muitas inconstitucionalidades, sem que haja o reconhecimento por parte dos operadores do Direito.

Dessa forma, um processo penal que realmente garanta uma ampla defesa e contraditório passa pela necessidade de uma reforma global e não pontual como se tem feito ultimamente.

Apressar os julgamentos, com a supressão de recursos protelatórios e criando o Juízo de Instrução, cujo magistrado que decidir sobre prisões cautelares, arresto, seqüestro, busca e apreensão, etc., não seria o mesmo que prolatasse a sentença de mérito, com o intuito de garantir-se o contraditório mesmo na fase investigatória, agilizando o julgamento de mérito após ofertada a denúncia.

Quanto à Polícia Civil, ou concede-se de vez a inamovibilidade aos delegados de Polícia ou extinguem-se os cargos, passando a condução dos inquéritos, não necessariamente a um bacharel em Direito, e sim a um bacharel em Segurança Pública, mas subordinando suas ações ao Ministério Público, que presidiria as investigações e denunciaria, como, aliás, com grandes resultados, ocorre na área cível com o inquérito civil público e com a ação civil pública.

Nossa tradição talvez recomende a reformulação da polícia, com o melhoramento de seus quadros, salários e, sobretudo, na mentalidade, com mais garantias constitucionais, que deveria ser unificada, extinguindo-se a disputa e a rivalidade entre as Polícias Civil e Militar.

TÍTULO I - Análise crítica do processo penal

A evolução do pensamento jurídico deve passar pelo abandono dos dogmas, dos quais estamos acostumados: a lei, a jurisprudência e a doutrina clássica influenciam no atraso da evolução do Direito como ciência, colocando pré-verdades, aceitas sem maiores reflexões dos malefícios sociais que causam.

O Direito Processual Penal determina a realização da pretensão punitiva estatal. Nesse aspecto, o processo penal não possui uma independência absoluta - é um sistema formal de realização do Direito Penal.

A pretensão estatal nasce no Direito Penal para proteger um bem jurídico relevante, pois o Direito Penal deve ser a última ratio. Mesmo que haja um fato típico formal, nem sempre justifica-se a instauração do processo penal, por faltar tipicidade material, ou seja, quando o fato for irrelevante ou o bem violado insignificante. O processo penal, pois visa servir de instrumento para a proteção de bens jurídicos relevantes.

Uma vez instaurado o processo, verificar-se-á ao final, se o fato e o bem jurídico são relevantes e, contrário senso, não haverá a necessidade de punição do agente, visto que as conseqüências de uma condenação serão muito mais danosas socialmente falando do que a absolvição, diante da realidade das prisões, que são instituições totalitárias.

Se não há pretensão penal justa, não há sequer interesse de instaurar-se um processo penal, pelo simples fato de gostar-se do formalismo do processo.

O processo penal é verdadeiramente um Direito Constitucional (art. 5º, da CF): o princípio da oficialidade é o interesse público, pautado na lei, mas, principalmente, na Constituição Federal. E os operadores do Direito Processual Penal - delegados de polícia e promotores de justiça - somente podem agir por meio de instrumentos e provas previstas em lei. Deve-se partir do princípio da verdade judicial e não real.

Onde há criminalidade difusa - quadrilhas organizadas, meio ambiente, tóxico - obviamente deverá ocorrer o Direito Processual Penal intervencionista.

Mas, quando o bem jurídico é localizado individualmente (furto e roubo) ou seja, existe efetivamente autor e vítima, de forma que se possam individualizá-los para a instauração do processo penal, dependerá da vontade da vítima a movimentação do poder estatal. Isto é, desde que seja da vontade do titular do bem jurídico violado levar o fato ao conhecimento da autoridade policial e demonstrar o desejo na apuração do caso é que será iniciado o processo criminal. E, mesmo assim, a máquina estatal só deverá ser movimentada se for um fato socialmente relevante.2

O princípio da obrigatoriedade baseia-se no caso de ocorrer um dano a um bem jurídico relevante, não podendo nesses casos, os operadores do Direito deixar de agir e de instaurar o processo penal, pois há um efetivo dano social.

Mas, caso o bem jurídico for irrelevante e o fato insignificante - como, por exemplo, um furto de uma caneta, de um relógio, de um quilo de carne, de retratos de família, fitas e fotos de casamento -, mesmo que haja valores sentimentais, não há que se instaurar o processo penal, visto que se deve partir de uma análise social se o autor delituoso merece ou não uma reprovação social, sofrendo o estigma do processo penal e possível estigma da condenação, com todas as conseqüências sociais que isso advém, ao enviar-se uma pessoa para o sistema penitenciário. Em não ocorrendo um fato socialmente relevante e o fato ser insignificante, não há que se inaugurar o processo penal.

O Ministério Público somente deverá ofertar a denúncia se, ao lado do princípio da legalidade, estiver presente também o princípio da oportunidade. Por isso, entendo que o artigo 28 do Código de Processo Penal é inconstitucional.3

TÍTULO II - Compreensão cênica: argumentos da acusação X defesa

Com a remessa do inquérito policial ao Judiciário e conseqüente vista ao Ministério Público, este, ao ofertar a denúncia, opera uma releitura do inquérito que, por sua feita, elaborou a primeira interpretação do fato.

Nesse sentido, em um processo penal garantista, o juiz deve ser um mero receptor da argumentação, tanto da acusação quanto da defesa e, após, proferir sua decisão baseado na verdade judicial que as partes levaram ao processo.

Na forma em que se encontra o processo penal brasileiro, por diversas formas o juiz acaba por alterar e influenciar os rumos do processo, como por exemplo, dando nova definição jurídica ao fato (art. 383 do Código de Processo Penal), inclusive com conseqüências danosas ao acusado (art. 384 do CPP), violando o princípio constitucional da igualdade entre as partes, vilipendiando a presunção de inocência, além de ingressar na esfera da titularidade da ação penal, privativa do Ministério Público. Ora, se o órgão acusador entende que houve um crime e não consegue provar, basta que o juiz absolva por falta de provas dos argumentos da acusação, isto é, de sua versão dos fatos (releitura do inquérito policial) e não se arrojar como definidor de novo tipo penal, determinando que o Ministério Público adite a denúncia quando importe aplicação de pena mais grave (art. 384, parágrafo único do CPP), pois retira do Poder Judiciário a inércia e a imparcialidade, visto que o Direito Penal moderno não visa apenas punir os agentes que cometerem crimes, mas, sim, impor ao Estado, que, "in casu", é democrático, os claros limites de sua atuação. Como o processo penal é o instrumento de se fazer valer o Direito Penal e, após a Constituição Federal, esse direito é garantístico, compete à acusação e tão-somente a ela, provar os fatos descritos na denúncia. Em não conseguindo, absolve-se. A instituição ministerial que oferte, quando for possível, nova Denúncia, de forma correta. O juiz estará sempre restrito ao processo e aos argumentos dos sujeitos processuais.

O inquérito policial somente justifica a denúncia, não podendo servir para pronúncia, nos casos dos crimes dolosos contra a vida ou para uma condenação. Somente as provas produzidas no juízo natural do caso, excetuando-se as técnicas, poderão ser levadas em consideração no momento de decidir.

Juízes com a mentalidade garantista sequer lêem os depoimentos produzidos na fase policial, pois reconhecem que o destinatário do inquérito é o Ministério Público e não o Judiciário, em que pese a lei infraconstitucional ainda não ter adaptado-se ao mandamento constitucional contido no artigo 129, I, da Carta Magna.

No Direito Processual Penal Clássico, a verdade é metafísica (idos de 1850); no positivismo de Auguste Comte, "a verdade é aquilo que você pode provar" (empírico); já em 1871 surge a relação de causalidade - é a materialidade.

Certos dogmas no Direito Processual Penal, ainda muito aplicados e citados por juízes e promotores, além de tribunais, são frutos do autoritarismo, tais como: "A verdade moral não precisa ser provada"; "Valoração da prova e livre convencimento"...

O juiz deve justificar sua decisão, demonstrar o porque de sua sentença.

Há que se punir condutas que possuem reprovabilidade na maioria do grupo social, daí a verdade jurídica ser produzida pelos sujeitos processuais que acabam aceitando aprioristicamente certas pré-verdades.

Necessitamos funcionalizar o Direito, de tal forma que esclareça uma determinada verdade jurídica para aquele caso em concreto, abandonando o dogma da prevenção geral da pena, que é falsa.

A sentença deve ser racionalmente justificada. O vínculo do juiz com o processo é absoluto. É o princípio da racionalidade do processo.

O mencionado artigo 384 do Código de Processo Penal é resquício do Direito empírico, do positivismo naturalista, influenciado por Lombroso e Ferri.

Na Alemanha e nos EUA, não se pode redefinir o fato típico, isto é, dar nova definição jurídica do fato. Não se pode igualmente introduzir provas colhidas fora do processo e da presença das partes.

A lei não possui a priori: subtrair coisa alheia móvel de 1940 é a mesma coisa de 1999? Evidentemente que não! Movimentar um processo-crime, com possibilidade de estigmatizar uma pessoa como criminosa, porque subtraiu uma caneta, um quilo de carne ou um simples relógio de pulso, jogando-a no falido sistema prisional, no final do século XX (onde se cometem atrocidades contra o ser humano, como deixar doentes morrerem nas filas de hospitais, sem atendimento, de fome, sem assistência material, com o tráfico internacional de entorpecentes, crimes tributários, com os paraísos fiscais, etc.), é brincar com o dinheiro do contribuinte brasileiro, abarrotando as prateleiras dos fóruns e das delegacias de polícias, com processos e inquéritos inúteis e desnecessários para a sociedade moderna, sem falar no principal: a violação da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF).

A inquisição influenciou o Direito Penal até 1764, quando Beccaria demonstra que a confissão em si não é prova absoluta.

A inquisição utilizava a confissão oculta (confessionário) para punir. O indivíduo confessava para um sacerdote e, após, era preso e o seu confessor era chamado a testemunhar contra a pessoa que havia confiado em tal sacramento.

O neokantismo (positivismo), retorna o valor da confissão, dizendo que é uma atenuante.

A influência da jurisprudência em manter tal estado de coisas já foi criticada em 1847, por Kirchmam, dizendo que a jurisprudência não é ciência, pois não possui base filosófica, criando Direito sem preocupar-se com a ideologia.

O processo penal garantista não pode perder de vista se um bem jurídico relevante foi violado.

Para o positivismo de Ferri e Lombroso, o bem jurídico era o Direito Natural; Von Liszt entende que o bem jurídico é social; Binding afirma ser a lei o próprio bem jurídico.

No entanto, se o Direito for funcional, ou seja, querer de fato ser útil à sociedade, há que respeitar que a sociedade possui valores diferenciados, por ser extremamente conflitiva e heterogênea, notadamente a sociedade industrial moderna.

Nesse sentido, Jüngen Habermas sempre quis saber qual a razão do ser humano receber valores e agir de forma diversa, eticamente, dos valores que recebera.

Klaus Günter afirma que haverá culpabilidade no momento em que o agente diverge da exigência de agir de maneira diversa. Esse é o direito penal do autor-totalitário. Vincula-se à postura moral.

A culpabilidade não traz consigo a questão da pena. Não há ligação entre a pena e a culpabilidade, como pensam os clássicos. Só pode ser culpado se o autor tiver a oportunidade de participar da formação da lei penal, em amplo processo democrático, ocorrendo um liame entre o cidadão e a legitimidade da norma jurídica. Dessa forma, não há porque punir toda conduta típica e antijurídica.

Ora, a sociedade exclui milhares de pessoas da participação do processo de formação das leis, por meio da miséria social, que sequer como eleitores possuem participação. Famílias inteiras vivem de forma degradante, sequer recebendo a comunicação social da norma penal e sua legitimidade.

O cidadão, pois, é aquele que faz parte do processo legislativo como eleitor, por exemplo. Há, nesse caso, um respeito à lei pelo cidadão.

Os que não participam desse processo têm diversos motivos para não cumprir a lei.

TÍTULO III - O agir comunicativo da pessoa deliberativa

Devemos entender, por fim, no Estado Democrático de Direito, o agir comunicativo da pessoa deliberativa. Esta tem a capacidade crítica, utilizando-se, mesmo que em um monólogo, da capacidade de questionar valores sociais e éticos e até mesmo de elaborar a autocrítica.

Quando uma pessoa elabora uma suposição empírica, questiona a norma penal e sua legitimidade.

No Estado Democrático de Direito, é o cidadão quem dá legitimidade à lei e pode retirar essa legitimidade.

Havendo consenso comunicativo entre as partes, a norma penal não deve incidir sobre o agente, em que pese a norma continuar em vigor, como, por exemplo, os crimes de sedução e de adultério - artigos 217 e 240, do Código Penal, respectivamente.

A norma deve ser analisada no caso concreto, racionalmente e não moralmente.

Quando uma pessoa, como no caso do gerente do jogo de bicho, nega a legitimidade da norma, forma uma tensão entre a pessoa deliberativa e os demais cidadãos que aderem à norma proibitiva. Mesmo que as pessoas reprovem a ação dos que não aderem à norma, o Estado não deve intervir na vida do cidadão, exceto quando este solicite a intervenção do Estado em última ratio.

Mas quando há legitimidade da norma? Quando houver consenso social da validade dessa norma.

Quando uma pessoa deliberou criticamente que a norma não tem valor, mas a sociedade entende que a norma tem validade, como os arts. 121, 157, do Código Penal, por exemplo, o autor que deliberou praticar o ilícito é penalmente reprovado, podendo ser punido criminalmente.4

Conclusão

Somente com a introjecção pelos operadores do Direito e pelos legisladores dos princípios democráticos e garantísticos, da dignidade da pessoa humana, forjando uma reforma global do processo penal, poder-se-á tornar o processo não um formalismo que toma tempo, dinheiro, lotam presídios e cadeias públicas desnecessariamente, mas sim um efetivo instrumento da vontade social de coibir fatos socialmente danosos, tornando efetiva a norma penal, com a proteção de bens jurídicos relevantes.

Quando se percebe que o rigor da lei não atinge toda a sociedade, que possui valores diferenciados, reforma-se a lei, livrando-se da pena ou descriminalizando condutas que não são socialmente relevantes.

 

1 STRECH, Lenio Luiz. Tribunal do Júri - Símbolos e Rituais. Livraria do Advogado Editora, 2ª edição, 1994, págs. 113/117.

2 O anteprojeto do novo Código Penal prevê a ação penal pública condicionada à representação da vítima nos crimes de furto (art. 180, § 5º) - Nota do autor

3 O mesmo pensamento tem Chaves Camargo, juiz aposentado do TACRIM-SP e verdadeiro pioneiro em termos de decisões quanto ao Direito Penal Mínimo e Princípio da Insignificância - Nota do autor

4 Günther Klaus. A culpabilidade no Direto Penal Atual e no Futuro, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, RT, ano 6, nº 24, págs. 79/92.

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Como citar o texto:

SERRANO, Sérgio Abinagem.Processo Penal Garantista: Críticas ao Sistema Formalista. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 1, nº 70. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/231/processo-penal-garantista-criticas-ao-sistema-formalista. Acesso em 1 abr. 2004.

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