Sumário

 

Introdução...............................................................01

1. Do ato vinculado................................................02

2. Da forma do auto de infração...........................12

3. Da motivação dos atos administrativos.........21

Conclusão..............................................................27

Introdução

Não é novidade para ninguém a prática habitual dos agentes de trânsito, consistente na aplicação de penalidade (multa) ao motorista ,supostamente infrator, sem, no entanto, impor-lhe a medida administrativa, igualmente, prevista no Código de Trânsito Brasileiro.

Aliás, essa prática já se tornou tão corriqueira, que o motorista, geralmente, sequer sabe da existência de previsão legal da medida administrativa.

Vejam o artigo 167 do CTB: “Deixar o condutor ou passageiro de usar o cinto de segurança, conforme previsto no artigo 65:

Infração- grave

Penalidade- multa

Medida administrativa- retenção do veículo até a colocação do cinto pelo infrator.

Mesmo havendo expressa previsão legal acerca da medida administrativa, não é preciso provar o completo descaso com que os agentes de trânsito têm tratado essa segunda parte do referido artigo.

Esta informação pode ser facilmente confirmada pela a maioria das pessoas que já foi multada por falta de uso de cinto de segurança.

Não fosse suficiente a previsão de medida administrativa para compelir o agente de trânsito a parar o veículo (em se tratando de infração da natureza mencionada), ainda encontramos no CTB outro dispositivo do mesmo modo imperativo para tanto.

Prescreve o artigo 280, VI, do CTB que do auto de infração deverá constar:

“ a assinatura do infrator, sempre que possível, valendo esta como notificação do cometimento da infração”.

Portanto, o nosso trabalho consiste justamente em analisar os referidos atos dos agentes de trânsito à luz do Código de Trânsito Brasileiro e da Constituição Federal, perquirindo se eles consagram ou, ao contrário, afrontam o Estado Democrático de Direito.

Do ato vinculado

“ Atos vinculados são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização. Nessa categoria de atos, as imposições legais absorvem, quase por completo, a liberdade do administrador, uma vez que a sua ação fica adstrita aos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade da atividade administrativa” (LOPES MEIRELLES, Hely, Direito Administrativo Brasileiro, p. 170).

Por sua vez, o ato discricionário consiste “em permitir o legislador que a autoridade administrativa escolha, entre as várias possibilidades de solução, aquela que melhor corresponda, no caso concreto, ao desejo da lei” (LOPES MEIRELLES, Hely, p. 172)

Sendo certo que para a existência de um ato discricionário é “indispensável que o Direito, nos seus limites gerais, ou a legislação administrativa confira explícita ou implicitamente tal poder ao administrador e lhe assinale os limites de sua liberdade de opção na escolha dos critérios postos à sua disposição para a prática do ato” (LOPES MEIRELLES, Hely, p.172)

Á luz desses conceitos podemos analisar o artigo do CTB, provavelmente, mais utilizado pelos agentes de trânsito, qual seja, o já mencionado artigo 167 (cuja interpretação se estende a outros tantos artigos do CTB), bem como outras normas constantes do referido código e relacionadas ao tema, tentando elucidar se o ato do agente de trânsito (ou seja, a medida administrativa) é vinculado ou discricionário.

“Deixar o condutor ou passageiro de usar cinto de segurança, conforme previsto no artigo 65:

Infração- grave

Penalidade- multa

Medida administrativa- retenção do veículo até a colocação do cinto pelo infrator.

Não é preciso muito esforço hermenêutico para constatar, no artigo supracitado, a inexistência de qualquer atribuição de discricionariedade ao agente de trânsito. Afinal, a norma estabelece que se o condutor e/ou o passageiro estiverem sem cinto de segurança haverá aplicação tanto da penalidade quanto da medida administrativa. Em nenhum momento o legislador conferiu liberdade de escolha ao agente. Pois se essa fosse a sua real intenção, redigiria o texto, por exemplo, como o fez no parágrafo 5°, do artigo 270, do CTB: “A critério do agente, não se dará a retenção imediata, quando se tratar de veículo de transporte coletivo...”

Essa linha de raciocínio está em perfeita sintonia com o parágrafo 1°, artigo 269 do CTB : “ a ordem, o consentimento, a fiscalização, as medidas administrativas e coercitivas adotadas pelas autoridades de trânsito e seus agentes terão por objetivo prioritário a proteção à vida e à incolumidade física da pessoa.

Ora, se as medidas administrativas (no caso, a retenção do veículo até a colocação do cinto de segurança) têm como objetivo prioritário a proteção à vida e à incolumidade física da pessoa, é indubitável a obrigatoriedade de o agente reter o veículo até que o motorista coloque o cinto de segurança, pois diferentemente da aplicação de multa, cuja prevenção é futura (na medida em que, em tese, compelirá o condutor a passar a usar o cinto de segurança), a medida administrativa, neste caso, significa uma proteção imediata, pois só permite ao motorista prosseguir viagem caso ele coloque o equipamento de segurança.

Portanto, constatamos que o artigo supracitado não conferiu discricionariedade alguma ao agente de trânsito, para permitir-lhe aplicar somente a penalidade de forma isolada, sem a aplicação da medida administrativa.

Vejamos, agora, alguns textos potencialmente capazes de, implicitamente, sugerir um poder discricionário por parte do agente de trânsito na aplicação da medida administrativa, pois, conforme ensinou Hely Lopes Meirelles, nem sempre o poder discricionário é atribuído de forma explícita.

Análise especial merece o parágrafo 2° do artigo 269 do CTB (possível alvo de interpretações distorcidas):

“As medidas administrativas previstas neste artigo não ilidem a aplicação das penalidades impostas por infrações estabelecidas neste código, possuindo caráter complementar a estas”.

Poderiam sugerir alguns intérpretes que este texto exprime não somente a necessidade de aplicação da penalidade após a aplicação da medida administrativa (idéia esta trazida de forma inequívoca pelo referido artigo), porquanto se o texto aduz que a aplicação da medida administrativa não ilide a aplicação da penalidade, mas não diz, igualmente, que a aplicação da penalidade não ilide a aplicação da medida administrativa, seria porque, em tese, a aplicação da penalidade poderia ilidir a aplicação da medida administrativa.

O fato de o CTB definir as medidas administrativas como medidas complementares, para esses intérpretes ,corroboraria com a idéia de que as penalidades poderiam ser aplicadas de forma isolada, sem a necessidade de aplicação da medida administrativa (já que a penalidade, então, seria a medida principal).

E mais, uma vez admitida a potencialidade da penalidade para ilidir a aplicação da medida administrativa, caberia ao agente de trânsito decidir entre a aplicação da penalidade cumulativamente com a medida administrativa ou a aplicação somente da penalidade, de forma isolada.

O parágrafo 2°do artigo 269 do CTB estaria, a um só tempo, proibindo a aplicação da medida administrativa de forma isolada (se houver previsão de penalidade para o fato ocorrido, é claro) e permitindo a aplicação isolada da penalidade, sem a necessidade de aplicação da medida administrativa cabível, segundo um juízo de discricionariedade do agente de trânsito.

Primeiramente, cumpre ressaltar que o texto supracitado de fato explicita que a medida administrativa não impede a aplicação da penalidade, na verdade, em regra, a pressupõe, pois sendo a medida administrativa uma medida complementar, a sua aplicação parte do pressuposto da imposição da medida elementar, que, segundo o CTB, é justamente a penalidade.

Por sua vez, a penalidade, sendo a medida principal, excepcionalmente, poderá ser aplicada de forma isolada, sem a necessidade de imposição da medida administrativa.

O artigo 270, parágrafo 5° do CTB, como mencionamos, deixa a critério do agente a aplicação da medida administrativa em algumas situações excepcionais (artigo 270, parágrafo 5°).

Ademais, devemos nos recordar das hipóteses que impossibilitam a aplicação da medida administrativa, (especialmente quando esta for a retenção do veículo até a colocação do cinto de segurança), como a recusa do motorista em parar o veículo.

No entanto, o fato de o artigo referido não mencionar que a aplicação de penalidade não ilide a aplicação da medida administrativa e classificar esta como uma medida complementar, de forma alguma, exprime a existência de discricionariedade por parte do agente de trânsito na aplicação da medida administrativa, em qualquer caso.

Porquanto, obviamente, se a medida administrativa tem por finalidade a proteção à vida e à incolumidade física da pessoa, a retenção do veículo até a colocação do cinto de segurança, por exemplo, não pode ser objeto de ato discricionário do agente de trânsito.

Afinal, se o cinto de segurança visa exatamente a proteção à vida e à incolumidade física da pessoa, como poderia o agente de trânsito permitir ao condutor prosseguir viagem sem a sua utilização, pelo simples fato de já ter-lhe aplicado uma multa? Como poderia a aplicação da multa (cuja prevenção, em tese, é para o futuro, na medida em que inibe a reincidência do condutor) ilidir o ato de retenção do veículo até a colocação do cinto de segurança (cuja prevenção é imediata)?

Na verdade, embora a penalidade possa, excepcionalmente, ser aplicada sozinha, nem é ela que é dotada de força para, eventualmente, impedir a aplicação da medida administrativa, e sim, as circunstâncias fáticas do caso, seja porque se constituem em óbice à aplicação da medida administrativa (ex.: fuga do condutor), seja porque evidenciarão a necessidade de garantir um valor mais importante.

Assim, em alguns casos, o CTB confere ao agente de trânsito a possibilidade de ele próprio aquilatar o que é melhor à coletividade. “A critério do agente, não se dará a retenção imediata, quando se tratar de veículo de transporte coletivo transportando passageiros ou veículo transportando produto perigoso ou perecível, desde que ofereça condições de segurança para a circulação em via pública” (artigo 270, parágrafo 5° do CTB).

Também é necessário destacar que quando o CTB classifica as medidas administrativas como medidas complementares às penalidades, isto não denota a possibilidade de as medidas administrativas poderem ser dispensadas ao alvedrio do agente de trânsito. Afinal, embora o “complementar” seja secundário em relação ao elementar (no caso, a penalidade),isto não exprime a sua prescindibilidade, ou seja, o fato de um ato ser considerado, quiçá, menos importante do que o outro não expressa que ele possa ser deixado de lado. Muito menos, a existência de uma faculdade do agente de trânsito para decidir sobre a necessidade de sua aplicação (sobre a aplicação da medida administrativa), porque quando era esta a hipótese, o legislador o fez de maneira expressa : : “A critério do agente, não se dará a retenção imediata, quando se tratar de veículo de transporte coletivo...” (parágrafo 5°, do artigo 270, do CTB)

Destarte, conclui-se: o artigo 269, parágrafo 2° do CTB não atribui qualquer discricionariedade ao agente de trânsito, para facultar-lhe a aplicação da penalidade (multa) de forma isolada. Ao contrário, reforça a idéia de que a penalidade e a medida administrativa devem, em regra, caminhar juntas, vez que possuem uma relação de complementaridade.

No entanto, apesar de o ato do agente de trânsito ser vinculado, pode haver variação em seu objeto, ou seja, embora deva o agente aplicar cumulativamente a multa com a medida administrativa, na impossibilidade de aplicação desta última, como dissemos, (o motorista pode ter fugido, por exemplo), deverá o agente aplicar somente a penalidade.

Essa variação no objeto do ato, no entanto, nada tem a ver com discricionariedade, onde se tem como critério para a prática do ato administrativo a conveniência e a oportunidade.

Trata-se apenas de uma maneira de não permitir ao motorista infrator, que se evadiu do local ou recusou-se a assinar o auto de infração, o privilégio da não aplicação da penalidade, pois “a ninguém é dado beneficiar-se da própria torpeza”.

Sendo obrigatória a aplicação conjunta da penalidade com a medida administrativa, nos resta saber se a aplicação somente da penalidade, sem a imposição da medida administrativa, em não havendo qualquer óbice à imposição desta última (fuga do motorista ou algo parecido), se constituirá em um ato válido.

Neste caso, o agente de trânsito cumpriu a determinação legal, embora de forma parcial, ao aplicar somente a penalidade. Ou seja, a aplicação da penalidade em si não é uma medida ilegal.

Assim sendo, muitos se inclinam a avaliar este ato como válido.

Ademais, afirmam não haver prejuízo ao condutor (pois, mesmo havendo a aplicação da medida administrativa, a aplicação da penalidade ocorreria)

No entanto, ainda que se adote esta linha de pensamento, este ato do agente de trânsito deixa, no mínimo, registrada uma dúvida insuperável na memória do condutor: por que o agente aplicou a penalidade (prevenção mediata) e não tentou sequer aplicar a medida administrativa (prevenção imediata)?

O descaso do agente de trânsito com a segunda metade do artigo 167 do CTB revela, sobretudo, descaso com a integridade física do condutor e faz este último imaginar que a preocupação da Administração, na verdade, concentra-se, prioritariamente, na arrecadação de fundos.

Com efeito, chegamos a outra conclusão importante: a não aplicação injustificada da medida administrativa gera grande desconfiança por parte do administrado em relação aos atos da Administração, mormente no tocante às penalidades aplicadas pelo não uso de cinto de segurança.

O artigo 270 do CTB também merece uma rápida abordagem:

“O veículo poderá ser retido nos casos expressos neste código”

Poderiam alguns imaginar que este texto confere ao agente de trânsito discricionariedade na retenção do veículo, já que ele expressa em seu texto o termo “poderá” ( e não, deverá).

Todavia, este artigo denota muito mais uma idéia de restrição do que uma possível liberdade do agente de trânsito, uma vez que ele especifica quando poderá ser retido o veículo (somente “nos casos expressos neste código”).

Assim, o referido artigo é imperativo em permitir a retenção do veículo somente nos casos expresso no CTB, ou seja, não há margem para se legitimar uma retenção de veículo por norma implícita na lei.

Talvez seja esta a finalidade precípua do artigo 270, caput do CTB.

No entanto, ao nosso trabalho, pouco importa descobrir qual é a finalidade do referido artigo, o que nos interessa mesmo é saber qual não é a sua finalidade.

Neste passo, afirmamos que o artigo 270, caput do CTB, absolutamente, não confere qualquer discricionariedade ao agente de trânsito na retenção do veículo.

Afinal, o parágrafo 5° do mesmo artigo especifica uma situação onde há poder discricionário do agente de trânsito: “A critério do agente, não se dará a retenção imediata, quando se tratar de veículo de transporte coletivo..”

Ora, se o termo “poderá” previsto no caput do referido artigo exprimisse a existência de discricionariedade do ato administrativo em qualquer caso de retenção de veículo, não seria necessária esta previsão específica do parágrafo 5°. Pois, como sabemos, a lei não contém palavras inúteis.

Corroborando com a idéia de que o termo “poderá” não confere discricionariedade ao agente de trânsito no tocante à retenção do veículo, o artigo 269 do CTB : “ A autoridade de trânsito ou seus agentes , na esfera de competência estabelecidas neste Código e dentro de sua circunscrição, deverá adotar as seguintes medidas administrativas: I- retenção do veículo...”

Com efeito, se em um texto o legislador usou o termo “poderá” reter o veículo e em outro texto usou o termo “deverá” reter o veículo, esta aparente contradição deve ser resolvida com o auxílio da hermenêutica.

E, como demonstrado, uma simples interpretação sistemática já resolve a questão.

Com isto chegamos à primeira conclusão importante: O agente de trânsito tem a obrigação de aplicar tanto a penalidade (multa) como a medida administrativa (retenção do veículo até a colocação do cinto de segurança), pois o seu ato é vinculado .

Da forma do auto de infração

“ Lavrar-se o auto de infração do qual constará:

VI- a assinatura do infrator, sempre que possível, valendo esta como notificação do cometimento da infração” (artigo 280, caput, VI, CTB)

Vamos avaliar agora outro requisito do ato administrativo, qual seja, a sua forma.

È importante especificar o requisito ora em comento porquanto a forma do ato administrativo é, no mais das vezes, vinculada. Alguns doutrinadores, inclusive, são menos flexíveis e sustentam que a forma do ato administrativo é sempre vinculada:

“Por aí se vê que a discricionariedade é sempre relativa ou parcial, porque quanto à competência, à forma, e à finalidade do ato, a autoridade está subordinada ao que a lei dispõe, como para qualquer ato vinculado” (Lopes Meireles, Hely, p.121)

A despeito do entendimento do ilustre publicista, não podemos nos olvidar da possibilidade de, excepcionalmente, a forma do ato administrativo ser discricionária. No artigo 62 da Lei 8666, por exemplo, há previsão no sentido de o contrato administrativo poder ser realizado de várias formas, a critério do agente administrativo.

Por isso, mesmo que a priori todos os indícios nos levem a crer que o colhimento da assinatura do condutor infrator seja uma forma vinculada do ato administrativo, devemos analisar minuciosamente se não estamos diante de uma hipótese rara de ato administrativo cuja forma seja discricionária.

Na estudada norma do CTB o legislador aduz “sempre que possível, o auto de infração deverá conter a assinatura do infrator”.

Poder-se-ia sustentar que a expressão “sempre que possível” enseja um ato discricionário por parte do agente de trânsito, uma vez que a assinatura do condutor, no auto de infração, teria tão-somente a finalidade de notificá-lo acerca da penalidade a ele imposta (“valendo esta como notificação do cometimento da infração”), podendo , portanto, ser suprida por uma notificação posterior, via postal, se o agente de trânsito achasse oportuno ou conveniente.

Na verdade, estamos diante de um conceito indeterminado (“sempre que possível”), invariavelmente alvo de acirrados debates, haja vista alguns sustentarem que um conceito indeterminado indica a existência de discricionariedade por parte do administrador, já que a ele cabe a interpretação do referido conceito.

No entanto, mesmo aqueles que consideram a existência de discricionariedade nos conceitos indeterminados apontam as linhas limítrofes da liberdade do administrador.

“Verifica-se, assim, que os conceitos jurídicos indeterminados apresentam um núcleo e um halo conceitual. Sempre que temos uma noção clara do conteúdo e da extensão dum conceito, estamos no domínio do núcleo conceitual. Onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito .

Isso implica dizer que há certas situações que fatalmente estarão inclusas no conceito. Outras, por sua vez, jamais serão por ele abrangidas. Outras, ainda, estarão numa zona de incerteza onde não é possível dizer se podem ser enquadradas no limite do conceito. Estabelecida essa estrutura do conceito jurídico indeterminado, a dificuldade desaparece tanto na zona de certeza positiva quanto na zona de certeza negativa e permanece somente no halo do conceito . Delimita-se, com isso, a sua extensão.

É justamente nessa zona de incerteza (halo) que reside a discricionariedade existente nos conceitos jurídicos indeterminados”( HARGER, Marcelo, site: www.hargeradvogados.com.br ,30/06/2011)

Porém, até mesmo entre os defensores da tese de que os conceitos indeterminados ensejam um ato discricionário para os administradores se reconhece a existência de exceções, ou seja, nem todo conceito indeterminado enseja um ato discricionário.

Isto porque a interpretação sistemática da norma poderá dar a tradução de um conceito indeterminado a priori, ou seja, a suposta zona de incerteza (halo), onde residiria a discricionariedade dos agentes administrativos, seria dissipada através de uma interpretação harmônica do conjunto normativo. “pois a análise dos fatos pode demonstrar que, dentre as várias soluções possíveis, somente uma atende ao interesse público de modo ótimo” ”(HARGER, Marcelo site: www.hargeradvogados.com.br, 30/06/2011 )

Com efeito, no caso estudado, o conceito indeterminado (“sempre que possível”), pode ser traduzido de forma cristalina quando se leva em consideração todo o CTB, além, é claro, do significado gramatical dos termos envolvidos.

Pois, como se vê, a própria interpretação gramatical já denota que somente em casos excepcionalíssimos o ato administrativo em questão (multa) não precisa observar a forma prevista (isto é, conter assinatura do infrator no auto de infração).

. Afinal, não há dúvidas de que a expressão “sempre que possível” , se não é um conceito totalmente determinado, é muito mais limitativa do que a expressão “a critério do agente” (que encerra um verdadeiro ato discricionário).

Então, a grande pergunta a ser respondida é: que acontecimento seria capaz de impossibilitar o colhimento da assinatura do infrator por parte do agente de trânsito?

Certamente estão inclusas as hipóteses em que houver fuga do infrator ou a sua recusa em assinar o auto de infração ou , ainda, a ausência do condutor, em infração , como, por exemplo, estacionar em lugar proibido.

Quanto a esses exemplos mencionados não há dúvida de que eles impossibilitariam o agente de trânsito de obter a assinatura do infrator.

No entanto, a questão crucial consiste em saber se a idéia de impossibilidade de colhimento da assinatura alberga fatos que, diferentemente dos mencionados, não constituem, em si, óbice à obtenção da assinatura do condutor , mas apenas trazem à baila outros valores cuja proteção implicaria na impossibilidade do colhimento da assinatura do infrator.

Citamos como exemplo: o não colhimento da assinatura do infrator, em horário de pico, para não tumultuar o trânsito ou para acelerar o serviço do agente de trânsito etc.

Nestes exemplos supracitados, sim, haveria verdadeira discricionariedade por parte dos agentes de trânsito.

Mas para aceitar que tais fatos estejam excluídos da expressão “sempre que possível”, ou seja, considerá-los como fatos verdadeiramente impeditivos do colhimento da assinatura do condutor, teríamos de superar dois obstáculos, a nosso ver, intransponíveis.

Primeiro, como já exposto, seríamos obrigados a distorcer o significado gramatical do termo “possível”. Afinal “possível” é aquilo que pode ser.

Assim, a expressão parece sugerir que só não seria possível ao agente de trânsito colher a assinatura do condutor em virtude de um fato deveras impeditivo do colhimento da assinatura (como a fuga do condutor, por exemplo), e não por causa de uma impossibilidade decorrente da proteção de algum valor (o não colhimento da assinatura pelo fato de estar em horário de pico, por exemplo).

No entanto, embora a referida expressão (sempre que possível), considerada isoladamente, tenha este significado pouco excludente, devemos, ainda, verificar a sua interpretação no contexto do CTB, pois a interpretação sistemática, não raramente, acaba modificando sensivelmente o significado gramatical.

Neste caso, todavia, percebe-se que a interpretação sistemática do CTB apenas vem a confirmar o significado natural da expressão em comento, pois a obrigatoriedade (ato vinculado, como vimos) de o agente de trânsito reter o veículo até a colocação do cinto de segurança (medida administrativa) restringe demasiadamente as hipóteses que não são abarcadas pela expressão “sempre que possível”. Citamos a fuga do motorista , a sua recusa em assinar o auto de infração etc.

Percebam, só haveria alguma possibilidade de cogitarmos discricionariedade no colhimento da assinatura do infrator se o agente de trânsito não fosse obrigado a reter o veículo para aplicar a medida administrativa (colocação do cinto de segurança). Como dito, arguir-se-ia a impossibilidade de colhimento da assinatura por causa do trânsito intenso (por isso, o veículo não seria retido) etc.

Porém, uma vez retido o veículo (para que o condutor coloque o cinto de segurança- medida administrativa), tal argumento, obviamente, perde a coerência.

Afinal, seria um absurdo pensar que o agente administrativo parou o veículo para aplicar a medida administrativa ao condutor e, ainda assim, houve um motivo que justificasse o não colhimento de sua assinatura por parte do agente de trânsito.

Com efeito, se não se quer interpretar a expressão “sempre que possível”, por si só, como definidora de poucas hipóteses nas quais não serão necessárias a assinatura do condutor no auto de infração, uma simples análise, no contexto do CTB, torna irrefutável que da referida expressão só se excluem hipóteses excepcionais, como a fuga do condutor, a sua recusa em assinar o auto de infração etc.

Com efeito, asseveramos que a presunção de que a assinatura do condutor teria a finalidade única de servir como notificação sobre a penalidade a ele imposta e , por isso, poderia o agente de trânsito, segundo um juízo de discricionariedade, notificar o condutor posteriormente, via postal, é descabida, pois se alguma presunção houvesse de ser feita, seria justamente em sentido contrário.

Explicamos.

A primeira parte do artigo 280, VI do CTB prescreve que o auto de infração deverá conter “ a assinatura do condutor, sempre que possível” , e a segunda parte do referido artigo: “valendo esta como notificação do cometimento da infração”.

Como estudado, uma interpretação sistemática do CTB não deixa dúvidas de que o colhimento da assinatura do infrator só pode ser preterido em casos excepcionais. Trata-se de uma idéia clara, expressa na primeira parte do artigo em questão.

A segunda parte de tal artigo, no entanto, (“valendo esta como notificação do cometimento da infração”), não é passível de interpretação inequívoca.

Qual o argumento seria utilizado para sustentar que a assinatura teria a finalidade única de notificar o condutor?

O fato de o referido artigo mencionar que a assinatura vale como notificação não significa necessariamente que esta seja a sua única finalidade.

Mesmo porque, se assim o fosse, o texto tornar-se-ia contraditório: “o auto de infração deverá conter, sempre que possível, a assinatura do condutor, valendo esta unicamente como notificação do cometimento da infração”.

Observem esta configuração hipotética do artigo em comento, (acrescentando “unicamente”) como seria incongruente.

Na primeira parte, com tom de imperatividade (sempre que possível), impõe uma tarefa ao agente de trânsito.

Desta obrigatoriedade de colhimento da assinatura do condutor seria de se presumir uma finalidade especial (como, por exemplo, conferir mais credibilidade a este ato administrativo) e não que tal assinatura teria apenas a serventia de notificar o condutor infrator.

Poder-se-ia inferir um sistema normativo extremamente coeso. Pois, sendo a finalidade da medida administrativa preservar a integridade física das pessoas, o CTB estabelece a obrigatoriedade de o agente de trânsito reter o veículo para a colocação do cinto de segurança.

Ao parar o veículo, o agente de trânsito teria condições de verificar com mais precisão a ocorrência da infração (o não uso do cinto),o condutor, por sua vez, teria como certificar-se da sua transgressão. Eis que esse ato punitivo, tão odiado pela classe de motoristas, estaria sendo aplicado da forma mais transparente possível.

Da obrigatoriedade de colhimento da assinatura no auto de infração advém a incitação do agente em aplicar a referida medida administrativa.

Porque embora haja obrigatoriedade da aplicação da medida administrativa (juntamente com a penalidade),a sua não aplicação, ou seja, a aplicação isolada da penalidade (mesmo não havendo óbice à aplicação da medida administrativa), para muitos, não ensejaria a nulidade do auto de infração, porque, neste caso, o agente não teria praticado um ato ilegal, embora tivesse observado apenas parcialmente o texto da lei.

No entanto, como já explicado, o não colhimento da assinatura no auto de infração (salvo impossibilidade) é potencialmente capaz de gerar nulidade do ato administrativo (em consequência da não observância da forma do ato administrativo)

Nasce, assim, uma união perfeita.

De um lado, a obrigatoriedade da medida administrativa (colocação do cinto de segurança) limita as hipóteses excluídas do conceito “sempre que possível” (evidenciando que não é possível o colhimento da assinatura do infrator em pouquíssimas hipóteses).

Do outro lado, a obrigatoriedade do colhimento da assinatura do condutor (salvo em caso de impossibilidade) estaria praticamente assegurando a aplicação da medida administrativa, por parte do agente de trânsito.

Pois, como dissemos, seria absurdo pensar na hipótese de o agente de trânsito parar o veículo parar colher a assinatura do infrator e não aplicar a medida administrativa.

Diante do exposto, conclui-se, inexoravelmente, que é a primeira parte do artigo em discussão ("sempre que possível”), que deve lançar luz sobre a segunda parte (“valendo esta como notificação do cometimento da infração”).Afinal é cristalina a idéia de que “sempre que possível” é um conceito que pode ser bem definido, enquanto o mesmo não se pode dizer acerca da segunda parte do artigo (que a finalidade da assinatura no auto de infração é tão-somente a notificação ao infrator).

Uma vez concluído pela necessidade de assinatura no auto de infração, nos resta uma indagação: E se o agente de trânsito não colher a assinatura do condutor, como ficará o auto de infração?

“Destarte, importa frisar que a irregularidade do Auto de Infração de Trânsito, nessa hipótese se dará pela confluência da ausência da assinatura do infrator com a inexistência de justificação desse fato, porque se houver a ausência de assinatura do infrator, mas existir a justificação do fato, o ato poderá ser aproveitado, desde que seja emitida a notificação para infrator.” (Site Jus Navegandi, Samartin de Gouveia, Alessandro, 11/05/2011)

Portanto, a regra é colher a assinatura do condutor, salvo em caso de impossibilidade de fazê-lo. Nesta hipótese, no entanto, deve-se expor com clareza (motivação) o fato impeditivo do colhimento da assinatura, sob pena de invalidade do ato.

Motivação dos atos administrativos

“ O princípio da motivação dos atos administrativos, após a Constituição Federal de 1988, está inserido no nosso regime político. È, assim, uma exigência do Direito Público e da legalidade governamental. Do Estado absolutista, em que preponderava a vontade pessoal do monarca com força de lei, evoluímos para o Estado de Direito, onde só impera a vontade das normas jurídicas. Nos Estados modernos já não existe a autoridade pessoal dos governantes, senão a autoridade pessoal da lei. A igualdade de todos perante a lei e a submissão de todos somente à lei constituem dois cânones fundamentais dos Estados de Direito. A nossa Constituição consagrou tais princípios em termos inequívocos ao declarar que “todos são iguais perante a lei” (artigo 5°, caput) e que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5°,II)” (Lopes Meirelles, Hely, p.101)

Como enfatiza o renomado publicista, a motivação dos atos administrativos é uma garantia do cidadão contra o arbítrio do Estado, uma vez que reduz a sua possibilidade de impor a vontade pessoal do governante, ao dificultar que o seu ato se desvincule da lei.

Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, é óbvio que o administrador só poder agir de acordo com o dispositivo legal.

Dessa obrigatoriedade de observância da lei decorre a necessidade de motivação dos atos administrativos.

Somente dessa forma o administrado pode conferir se o ato do administrador, que lhe obriga a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, encontra arrimo no texto legal.

Impor algo ao administrado sem motivação é como dizer-lhe: “faça o que eu mando e não pergunte o porquê!”

Ora, esse comportamento arbitrário está tão ultrapassado que até mesmo no seio familiar é difícil o filho aceitar uma ordem do pai sem a devida justificativa por parte do seu genitor.

A Constituição, notadamente no tocante aos direitos humanos, vem, a passos largos, ganhando concretude, de modo que as normas infraconstitucionais, outrora interpretadas quase que isoladamente, hodiernamente, sofrem incidência direta das regras e princípios previstos na Lei Maior.

Por isso, a não motivação de um ato administrativo está na contramão do direito constitucional moderno, extremamente garantista.

Além de servir para exame da legalidade, igualdade e moralidade administrativa, a motivação é obrigatória para assegurar a ampla defesa e o contraditório.

Na hipótese de o agente de trânsito multar o condutor pelo não uso do cinto de segurança, sem colher a sua assinatura no auto de infração, a falta de motivação acerca da ausência da referida assinatura prejudicaria o contraditório e a ampla defesa por parte do condutor?

Para responder a essa questão precisamos tecer algumas considerações sobre o conteúdo do contraditório e da ampla defesa.

Ter direito ao contraditório e à ampla defesa não significa somente o direito do acusado de se contrapor a algum fato que lhe fora imputado, mas inclui o direito de ter os seus argumentos de defesa apreciados pelo juiz, com real possibilidade de influenciar na decisão do magistrado.

Pois se o argumento de defesa não tivesse potencialidade para influenciar na decisão do juiz, não haveria necessidade de defesa, isto é, de contraditório.

Isto posto, precisamos averiguar se o contraditório feito pelo condutor (isto é, a sua defesa) à motivação do agente de trânsito sobre a ausência de assinatura no auto de infração é potencialmente capaz de influenciar na decisão do julgador.

Antes, convém lembrar que a assinatura do condutor no auto de infração compõe a forma do ato administrativo.

E, segundo Hely Lopes Meirelles, “Enquanto a vontade dos particulares pode manifestar-se livremente, a da Administração exige procedimentos especiais e forma legal para que se expresse validamente” (LOPES MEIRELLES, Hely,p. 155).

Com efeito, a inobservância à forma prescrita em lei é motivo de invalidade do ato administrativo. O que já nos autoriza a concluir que a não motivação sobre a ausência de assinatura do condutor no auto de infração prejudica o contraditório, pois, dependendo do conteúdo da referida motivação, o auto de infração poderá se invalidado pelo condutor.

Só não seria necessária a motivação no auto de infração se o agente de trânsito tivesse liberdade irrestrita para decidir sobre o colhimento da assinatura do condutor, visto que, nesse caso, o contraditório do condutor ao conteúdo da motivação sobre a ausência da assinatura no auto de infração não teria potencialidade para influenciar na decisão do juiz. Pois se o agente de trânsito não tivesse limites em sua liberdade de agir, no que se refere à obtenção da assinatura do condutor, nenhum argumento de defesa por parte do condutor poderia obter êxito ao atacar o referido ato administrativo, uma vez que o agente de trânsito estaria sempre agindo de acordo com as suas prerrogativas funcionais. E a defesa do condutor consiste exatamente em argüir que o agente de trânsito extrapolou os limites estabelecidos pela lei. Logo, inexistindo tais limites (caso a liberdade do agente fosse irrestrita), nunca haveria ilegalidade no fato de o auto de infração não conter a assinatura do condutor.

Destarte, seria desnecessária a motivação acerca da ausência da assinatura do condutor no auto de infração. Pois, sendo a finalidade da motivação a constatação de que o ato administrativo se manteve dentro dos limites legais, inexistindo tais limites, a motivação perderia a sua razão de ser.

No entanto, cumpre ressaltar que nem mesmo nos atos discricionários é conferido liberdade irrestrita ao administrador , uma vez que, nesta categoria de atos administrativos, o agente de trânsito fica obrigado a “evidenciar a competência para o exercício desse poder e a conformação do ato com o interesse público” (Lopes Meirelles, Hely, p.102).

Com efeito, ato discricionário, para não se transformar em ato arbitrário, deve ter como vetor o interesse público, devendo este ser demonstrado pelo administrador (motivação).

Uma vez apartado do interesse público, o ato administrativo tornar-se-á ilegal, ensejando, por conseguinte, a sua anulação.

Logo, se até mesmo no ato discricionário o administrador é obrigado a observar determinados limites, sob pena de cometer atos ilegais e, conseqüentemente, ensejar a anulação desses atos pelo administrado prejudicado, resta claro que uma eventual falta de motivação prejudicaria o contraditório e a ampla defesa.

Portanto, ainda que se considerasse a existência de discricionariedade por parte do agente de trânsito no colhimento da assinatura do condutor no auto de infração, o referido agente, na hipótese de não colhimento da assinatura do condutor, deveria, obrigatoriamente, motivar tal ausência, demonstrando a conformidade do ato administrativo com o interesse público.

Neste caso, é verdade, haveria muitas hipóteses que permitiriam ao agente de trânsito a dispensa do colhimento da assinatura do condutor ( tais como o excesso de trânsito, a necessidade de realizar outro serviço etc.), de modo que se concluíssemos pela existência de discricionariedade na forma do auto de infração, dificilmente se obteria êxito na anulação desse ato (desde que houvesse motivação, é claro) uma vez que a possibilidade de motivação acerca da ausência da assinatura do condutor seria muito abrangente.

Apesar de tal liberdade conferida ao administrador (se o seu poder fosse discricionário), Isto, no entanto, não chegaria ao ponto de significar um poder irrestrito.

Assim, se claramente a motivação acerca da ausência da assinatura do condutor demonstrar um ato arbitrário (por exemplo, alegar de forma pouco esclarecedora que “não era oportuno colher a assinatura”, sem , no entanto, demonstrar o real motivo que o compeliu à prática do ato), tal ato poderá ser anulado por não se conformar ao interesse público.

Se nem mesmo os atos discricionários prescindem de motivação, com muito mais facilidade se compreende a obrigação de se motivar um ato vinculado, vez que, nesta categoria de atos administrativos, os limites de atuação do agente administrativo são rigorosamente delimitados pela lei. Sendo, portanto, muito mais fácil se verificar um eventual excesso por parte do agente administrativo.

Transportando o poder vinculado do agente administrativo para o caso em tela (como já exaustivamente tratado), haveria escassas hipóteses nas quais se justificaria a ausência de assinatura do condutor (fuga do condutor ou a sua recusa em assinar etc.).

Qualquer motivação que não observasse esses limites impostos padeceria de ilegalidade, ensejando a anulação do ato.

Diante da constatação de que no ato administrativo vinculado e até mesmo no ato administrativo discricionário há limites legais de atuação do agente administrativo, concluímos, indubitavelmente, que a falta de motivação acerca da ausência da assinatura do condutor no auto de infração prejudica o contraditório e a ampla defesa. Pois, como dissemos, a razão de ser do contraditório/ampla defesa reside justamente na sua possibilidade real de influenciar na decisão do julgador. O que só é possível se o ato administrativo encontrar limites na lei. Porquanto com o extravasamento dos limites legais é que nasce a possibilidade de invalidação do ato administrativo.

Percebam, a falta de motivação a que nos referimos é aquela concernente à ausência de assinatura do condutor no auto de infração e não a que diz respeito às condições nas quais se deu a aplicação da penalidade. Pois não raramente encontramos na motivação do ato administrativo: “Visão frontal”. Cujo intuito é não deixar dúvidas de que o agente de trânsito teve condições de, inequivocamente, constatar a falta de uso de cinto de segurança por parte do condutor.

No entanto, esta justificativa de forma alguma supre a falta de motivação acerca da ausência da assinatura do condutor no auto de infração. Pois, se o ato administrativo estiver viciado em sua forma, para poder anulá-lo, nem sequer é preciso se indagar sobre a veracidade do seu conteúdo.

Aliás, esta preocupação exagerada do agente de trânsito em querer demonstrar que não houve qualquer equívoco de sua parte na aplicação da penalidade não faria sentido se fosse colhida a assinatura do condutor.

Chegamos, com efeito, a outra importante conclusão: a não motivação acerca da ausência de assinatura fere mortalmente os princípios da legalidade, moralidade, igualdade, contraditório e ampla defesa.

Conclusão

Com razão, muitas vezes, é duramente criticado o legislador. Afinal, leis mal redigidas, confusas a até inconstitucionais recheiam os códigos nacionais.

No entanto, quando o legislador age com proficiência, infelizmente, não é raro surgirem interpretações absurdas sobre o produto do seu labor ( a lei), apoquentando, da mesma forma, o oprimido povo brasileiro.

Vejam que o Código de Trânsito Brasileiro estabelece normas coerentes.

O estudado artigo 167, por exemplo, prevê a aplicação de multa ao condutor infrator (prevenindo, em tese, que ele cometa novamente tal infração) e comina juntamente a medida administrativa de retenção do veículo, até colocação do cinto de segurança (prevenção imediata).

Devendo constar do auto de infração a assinatura do condutor infrator, salvo em caso de impossibilidade de fazê-lo.

O CTB, assim, conferiu mais crédito ao ato punitivo efetivado pelo agente de trânsito. Pois ao ser obrigado a assinar a multa, o infrator tem a possibilidade de certificar-se da sua prática infracional, mitigando, assim, as inúmeras dúvidas que pairam sobre a sociedade, no tocante a estes atos punitivos tão odiados pelos motoristas.

No entanto, no afã de conferir mais crédito a tais atos (multas), não poderia o legislador permitir que alguém se beneficiasse da própria torpeza.

Com efeito, quando não for possível colher a assinatura do condutor infrator , ele não ficará impune. Neste caso, excepcionalmente, o infrator será notificado por via postal ou outro meio, acerca da penalidade que lhe fora imposta.

Fechando de forma gloriosa essa trajetória extremamente coesa, deve o agente de trânsito motivar uma eventual ausência de assinatura do condutor no auto de infração, visando a assegurar os princípios da legalidade, igualdade, moralidade, contraditório e ampla defesa.

Esta linha de pensamento é tão lógica, que consegue, a um só tempo, valer-se da interpretação sistemática sem, contudo, escapar à literalidade da lei. Tudo isso sob o fulgor constitucional, consubstanciado nos princípios, há pouco referidos, da moralidade administrativa, legalidade, igualdade , contraditório e ampla defesa. Eis um Estado Democrático de Direito!

Interessante que, hodiernamente, a preocupação com a efetivação dos valores constitucionais é tão grande, que encontramos interpretações meio “forçadas” da lei, ou até mesmo contra a lei infraconstitucional, quando se tem por mira preceitos superiores consagrados na Lei Maior.

Assim foi construída a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, cuja finalidade é preservar os princípios da igualdade e da adequação do processo. Destarte, ainda que a lei processual expressamente atribua o ônus da prova a quem alega, segundo a referida teoria, pode o magistrado distribuir o ônus da prova de acordo com quem tenha condições de suportá-lo.

A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova tem sido amplamente aceita no direito pátrio, uma vez que, como dito, assegura os direitos constitucionais da igualdade e da adequação do processo, justificando, em tese, uma interpretação “distorcida” da lei infraconstitucional.

Inadmissível, no entanto, quando o intérprete dá uma “forçada” na interpretação da lei sem justificativa alguma para tanto. Ou pior, em detrimento de valores consagrados da Lei Maior.

È exatamente o que tem ocorrido em relação ao tema abordado. Pois, uma vez que se considere discricionário (em vez de obrigatório, por ser um ato vinculado) ao agente de trânsito reter o veículo até a colocação do cinto de segurança, abrir-se-á espaço para a não preservação da integridade física do condutor (já que a finalidade do cinto é resguardar a integridade física do condutor/passageiro).

Na mesma linha de raciocínio, a considerar discricionário o colhimento da assinatura do condutor, a credibilidade atribuída pela sociedade a este ato punitivo seria sensivelmente reduzida, pois, no mais das vezes, o agente de trânsito não faria a mínima questão de obter a assinatura do condutor, uma vez que a ausência de tal assinatura seria facilmente justificada.

Por fim, se não houvesse obrigatoriedade de motivação pela ausência da assinatura, os princípios da legalidade, moralidade, igualdade, contraditório e ampla defesa estariam sendo seriamente comprometidos.

Caros leitores, não são poucas as pessoas vitimadas pelas “indústrias” de multas.

Quantas vezes não somos penalizados e sequer nos recordamos da prática do ato infracional.

Bem, o esquecimento é inerente ao ser humano, sobretudo de idade mais avançada, diriam.

Até por levar isso em consideração, muitas vezes, nos conformamos com algumas multas recebidas, embora, provavelmente, não as tenhamos cometido.

Porém, a questão nos tira o sono quando nos sobrevém a certeza de que fomos punidos sem termos praticado qualquer infração, e que muitos ainda o serão.

A irresignação aumenta quando nos sentimos indefesos ante a presunção relativa (quase absoluta eu diria) de veracidade e legitimidade dos atos administrativos.

Diante da improbabilidade de se desmentir um ato administrativo, somos obrigados a buscar um último socorro no conjunto normativo pertinente ao tema.

Para o nosso consolo, percebemos claramente que no sistema normativo há dispositivos para impedir a prosperidade dessas indústrias de multa, sobretudo, quando consideramos obrigatória a motivação dos atos administrativos.

Porque não se pode negar que o referido princípio (desde que alicerçado em interpretações coesas) dificulta sobremaneira a aplicação de penalidades por infrações inexistentes.

Imaginem que a justificativa do agente de trânsito para a ausência de assinatura do condutor, no auto de infração, seria muito restrita, como a fuga do motorista ou a sua recusa em assinar etc., de modo que, uma suposta mentira por parte do agente de trânsito, seria facilmente identificável pelo condutor. E , em se multiplicando esses atos desonestos, a classe de motoristas certamente se uniria para conclamar justiça.

No entanto, meus caros, mesmo havendo tantas pessoas desmotivadas com as infindáveis injustiças ocorridas no país tupiniquim, parece que o princípio da motivação, especialmente no tocante à questão abordada, não tem sido usado como um poderoso escudo do Estado Democrático de Direito, embora não lhe falte potencialidade para tanto.

 

 

 

 

 

Data de elaboração: janeiro/2012

 

Como citar o texto:

SAITO, Marcio Kazuo..Multa de Trânsito x Estado Democrático de Direito. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 955. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/2440/multa-transito-x-estado-democratico-direito. Acesso em 29 jan. 2012.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.