SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Histórico da busca da verdade no direito. 3. O principio da verdade real no processo penal. 4. O sistema acusatório brasileiro. 5. O principio da presunção de inocência e a liberdade constitucional da informação. 6. Descaracterização da verdade real diante da realidade processual. 7. Considerações finais. 8. Bibliografia.

 

RESUMO: Cuida o presente trabalho de fazer um apanhado sobre os meios de prova no processo penal, especialmente diante do desejo natural de buscar a verdade real dos fatos. A explanação faz um traçado histórico sobre as garantias individuais e constitucionais, fazendo uma breve análise sobre o sistema acusatório e proteção dos direitos individuais durante a tramitação do processo. Será também proposta uma demonstração de que se faz incabível uma relação de intervenção do magistrado nos casos de existência de um sistema plenamente acusatório, haja vista a incompatibilidade de vinculação dos poderes acusar e julgar frente às garantias e princípios determinados pela Constituição Federal. Por fim, será problematizada a relação entre o direito de informação e a presunção de inocência, diante do excessivo uso indevido da intimidade da pessoa humana pelos meios de comunicação.

Palavras-chave: Verdade real – Liberdade – Mídia – Garantias – Direitos fundamentais.

1.- INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil proclama, em seu artigo 5º, inciso LIV, que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. O princípio significa dizer que se devem respeitar todas as formalidades previstas em lei para que haja cerceamento da liberdade (seja ela qual for) ou para que alguém seja privado de seus bens.

Destarte, todos os outros princípios que serão abordados derivam deste, pois não há verdade processual sem que, para descobri-lá, respeitem-se os procedimentos delineados em lei, essencialmente, à liberdade..

Ao tratarmos do direito de liberdade referimo-nos à liberdade de locomoção, envolvendo o direito de ir e vir, a chamada liberdade física. A pena, principalmente a pena privativa de liberdade, vem em contraposição ao direito de liberdade, no sentido de limitar ou suprimir a mesma.

Praticada uma infração penal, surge o direito de punir em concreto. Mas antes de colocar na prática esse direito de punir, o Estado deve se colocar em confronto com os direitos de liberdade. Portanto, ao mesmo tempo em que existe um direito do Estado, existe em contrapartida, um direito subjetivo de liberdade.

No processo penal o grande desiderato é desvendar, demonstrar, aclarear, encontrar a verdade dos fatos. A finalidade do processo penal é encontrar a verdade real. Encontrada, fica fácil a aplicação do direito, seja prevalecendo o jus puniendi do Estado, seja prevalecendo o jus libertatis do réu. Tanto o jus puniendi do Estado quanto o jus libertatis do réu, dependem, para serem efetivados da descoberta da verdade real.

Tendo em vista a situação atual da globalização, com os meios de comunicação de massa atingindo quase toda a população mundial, de forma imediata, rápida e eficaz, proporcionando uma integração nunca antes verificada, o direito a informação, é necessário, pois não só propícia à atualização das pessoas como, também, cria valores, muda opiniões, denuncia, interage e integra as pessoas como um todo, possuindo, assim, um valor social. Além, é claro, de ser fundamental para a manutenção de um estado democrático de direito.

Porém, com o intuito de dar uma maior cobertura sobre a matéria ou assunto e assim ganhar audiência, os meios de comunicação de massa utilizam-se deste direito de informar, previsto constitucionalmente, para muitas vezes ferirem outros direitos previstos, também, em nossa Constituição Federal, como é o caso dos direitos da personalidade (honra, imagem, intimidade). Como exemplo, podemos citar os casos Nardone, Suzane Von Richthofen, Eloá (Lindenberg), Bruno, e tantos outros que, apresentam os fatos sobre o ilícito, mas agressivamente, invade a privacidade dos réus, divulgando elementos desnecessários a comprovação do fato.

Quando esses direitos de personalidade são violados pela imprensa, suas consequências são de difícil e ineficaz reparação, muitas vezes antecipando julgamentos de culpabilidade.

Ambos os direitos, tanto de personalidade e de liberdade de expressão e comunicação, possuem tutela constitucional e incorporam-se aos chamados direitos fundamentais, porém os valores que revestem cada um desses dois direitos, muitas vezes são opostos.

Deve-se encontrar um ponto de equilíbrio, dentro dos princípios da proporcionalidade, adequação, necessidade e razoabilidade, para vislumbrar-se até que ponto poderia sobrepor-se um ao outro.

Prevê a Constituição que “ninguém será considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.” Este princípio é inovado como matéria constitucional, uma vez que nenhuma constituição anterior o contemplava.

Impera no processo penal o princípio da verdade real e não da verdade formal, que é próprio do processo civil, em que, se o réu não se defender, presumem-se verdadeiros os fatos alegados pelo autor. No processo penal, entretanto, o silêncio do acusado não induz em sua culpa, pois, o que se procura aqui não é acusar simplesmente, mas, sim buscar a apuração da verdade.

O Juiz deve, no processo penal buscar sempre a verdade real dos fatos, não se contentando com a chamada verdade formal (dos autos). Até por isso o Juiz possui poderes instrutórios, pode ordenar de ofício a produção de provas que lhe auxiliem na formação de seu convencimento.

A verdade real, mesmo inexistindo um mecanismo de evidência absoluta em face dos métodos de persecução utilizados, se torna um elemento capital que o Direito almeja. Logo, reconhecendo a verdade como instrumento fundamental que motiva um pronunciamento judicial, necessário se faz a análise do caminho percorrido pelo juiz, na construção dessa verdade processual, o que nos conduz aos critérios utilizados, representado pelas provas.

2.- HISTÓRICO DA BUSCA DA VERDADE NO DIREITO

“O processo penal é uma atividade de busca da verdade os elementos subjetivos que percorrem a figura de um crime, todos eles, são difíceis de serem compreendidos, mas eu só posso ter um processo criminal, se eu puder provar cada um deles.”

O conceito de princípio da verdade real sugere, a todos, que o processo penal lida com a verdade dos fatos, mais do que isso, somente existirá processo penal contra alguém se for possível provar os fatos imputados. Embora difícil, sem prova dos elementos subjetivos de um crime não existe processo penal. Enfim, a atividade desenvolvida no processo penal é objetiva – depende de prova e não da opinião do julgador ou dos demais personagens da Justiça criminal.

A inclusão da verdade como método a justificar a solução de uma pretensão resistida advém de um passado distante, podendo retroceder-se até a Grécia. Nesta época, foi exposta uma obsoleta prática da prova da verdade estabelecida judiciariamente, visando a abonar a decidibilidade como um jogo de prova.

Observa-se que o homem primitivo recorre ao jogo como um padrão estrutural do processo ontológico, enquanto circunstância invencível por parte daqueles entregues ao jogo, cominando ao mundo dos fenômenos um embasamento divino.

No mesmo sentido, no Direito germânico constatou-se um sistema que regulamentava os conflitos tendo como forma de apuração da verdade o “jogo da prova.” Era um procedimento que não permitia a intervenção de um terceiro indivíduo neutro, em busca da verdade.

Apesar dos conflitos entre o Direito Germânico e o Direito Romano, reconhece-se a predominância do primeiro no Direito Feudal. No sistema da prova judiciária feudal tratava-se não da pesquisa da verdade, mas de uma espécie de jogo de estrutura binária. “O indivíduo aceita a prova ou renuncia a ela. Se não quer tentar a prova, perde o processo preliminarmente. Havendo a prova, vence ou fracassa. Tal forma binária é a primeira característica da prova.”

Prosseguindo, ainda, sobre o Direito medieval feudal, vejamos a lição de José Reinaldo de Lima Lopes: “Ali o processo era oral e o sistema de provas era o dos ordálios, cheios de testemunhas, desafios e duelos. Nas aldeias e no campo predominavam, em casos criminais, os julgamentos por ordálios, assistidos por todos. A corte senhorial é presidida pelo senhor da região, mas são os pares (vassalos) que julgam seus pares. As cortes julgam, mas são também órgãos de conselhos e de grandes deliberações.”

Já na Idade Média europeia houve “uma necessidade de criar um mecanismo de averiguação real dos fatos, em prol da verdade” Dissertando sobre o tema, Michel Foucault, salienta que:

“Desde que a Idade Média construiu, não sem dificuldade e lentidão, a grande procedura do inquérito, julgar era estabelecer a verdade de um crime, era determinar seu autor, era aplicar-lhe uma sanção legal. Conhecimento da infração, conhecimento do responsável, conhecimento da lei, três condições que permitiam estabelecer um julgamento como verdade bem fundada. Eis, porém, que durante o julgamento penal encontramos inserida agora uma questão bem diferente de verdade. Não mais simplesmente: O fato está comprovado, é delituoso?” Mas também: “O que é realmente esse fato, o que significa essa violência ou esse crime? Fantasma, reação psicótica, episódio de delírio, perversidade?” Não mais simplesmente: “Quem é o autor?” Mas: “Como citar o processo causal que o produziu? Onde estará, no próprio autor, a origem do crime? Instinto, inconsciente, meio ambiente, hereditariedade?” Não mais simplesmente: “Que lei sanciona esta infração?” Mas: “Que medida tomar que seja apropriada? Como prever a evolução do sujeito? De que modo será ele mais seguramente corrigido?” Todo um conjunto de julgamentos apreciativos, diagnósticos, prognósticos, normativos concernentes ao indivíduo criminoso encontrou acolhida no sistema do juízo penal. Outra verdade veio penetrar aquela que a mecânica judicial requeria: uma verdade que, enredada na primeira, faz da afirmação de culpabilidade um estranho complexo cientifico jurídico.”

Nesta época, o processo penal possui características próprias, dentre elas temos o fato de ser ele secreto até a sentença final, isto é, “oculto não só para o público, mas para o próprio acusado.”

O julgador podia receber denúncias anônimas e caminhava em busca de uma verdade às escondidas do acusado. Assim, o magistrado constituía sozinho “uma verdade com a qual investia o acusado; e essa verdade, os juízes a recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos.” Logo, a forma secreta e escrita do processo encontravam-se, em consonância com o fato de que, matéria criminal, o “estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juízes um direito absoluto e um poder exclusivo.”

A confissão toma lugar de destaque, pois o acusado se compromete em relação ao processo e confirma a verdade de uma informação. Não é sem motivo que a tortura passa a se tornar um mecanismo regulamentado de prova, permitindo sua utilização como uma maneira de fazer aparecer um indício, o mais grave de todos – a confissão do culpado.

Diante de tais considerações, foi necessária a criação de um novo inquérito, baseado no exercício da razão comum, despojando-se do antigo modelo inquisitorial para acolher o outro muito menos rígido.

Mais uma vez, vejamos a lição de Michel Foucault:

“Agora a prática penal vai se encontrar submetida a um regime comum da verdade, ou, antes a um regime em que se misturam para formar a “íntima convicção” do juiz elementos heterogêneos de demonstração científica, de evidências sensíveis e de senso comum. A justiça penal conserva formas que garantem sua equidade, pode-se abrir agora as verdades de todos os ventos, desde que sejam evidentes, bem estabelecidas, aceitáveis por todos. O ritual judiciário não é mais em si mesmo formador de uma verdade partilhada. É recolocado no campo de referência das provas comuns. Estabelece-se então, com a multiplicidade dos discursos científicos, uma relação difícil e infinita, que a justiça penal hoje ainda não está apta a controlar. O senhor de justiça não é mais senhor de sua verdade.”

Observa-se a criação de novas formas de prática e procedimentos judiciários, surgindo as figuras do procurador e a infração, bem como o soberano como parte lesada, exigindo reparação.

Daí em diante, foi ativa a reprovação ao sistema inquisitório do processo penal, pois as reformas inspiravam um processo público, oral e com a participação da defesa, plenamente compatível com a presunção de inocência.

No entanto, a mudança não foi eficiente a tal ponto que viesse a criar um sistema garantista. Isso se deu pelo fato de que na avaliação das provas, conferiu-se uma liberdade total e absoluta aos juízes e jurados, “que dispensava a indicação dos motivos de convicção, e estava a salvo, também, de quaisquer regras de exclusão, ao contrário do que ocorria com o próprio modelo inglês.”

Havia uma fase inicial da investigação de forma secreta, e segundo Michel Faucault, “mas para assegurar certa transparência à atividade inquisitiva do juiz, era prevista a participação de cidadãos indicados pela municipalidade.” A segunda parte do procedimento, era pública e contraditória, havendo a possibilidade de intervenção do defensor, além da ampla defesa.

Analisando as reformas legislativas subsequentes, nota-se uma involução caracterizada pela valorização de institutos do sistema inquisitório. Por isso, o arranjo entre os protótipos inquisitório e acusatório, implantado pelo sistema francês teve grande aquiescência, “influenciando desde logo os demais ordenamentos continentais, representando até os dias atuais o modelo inspirador da maioria das legislações.”

Praticado um fato que, aparentemente ao menos, constitui um ilícito penal, surge o conflito de interesse entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade da pessoa acusada de praticá-lo. Porém, o direito poder de punir, só, pode realizar-se através do processo penal, que irá apurar a verdade desse fato.

Diante de um moderno Estado de Direito Democrático, cujo sustentáculo encontra amparo na estrutura constitucional, vinculada à garantia mínima dos direitos fundamentais, o poder punitivo unicamente justificará sua existência se obedecida às garantias individuais do cidadão.

É totalmente inconcebível num Estado moderno e democrático que o sistema punitivo, onde se inclui as funções de prevenção da criminalidade, seja exercido em contradição aos valores individuais constitucionais.

 

3.- O PRINCIPIO DA VERDADE REAL NO PROCESSO PENAL

A verdade real que serve à decisão não é nem a verdade real, nem a verdade formal, mas a verdade possível: a verdade possível é aquela que pode ser reconstruída de acordo com os limites do devido processo legal. Há quem diga que a verdade do processo é a verdade mais próxima possível do real, é aquela que pode ser reconstruída na medida do possível.

No processo penal, criou-se a doutrina da verdade real, a partir da doutrina clássica, tendo como precursores Carnelutti e Ferrajoli. A verdade estaria no todo, mas esse todo dificilmente é alcançado pelo homem. Para solucionar esse problema busca-se a certeza, a probabilidade e a possibilidade. O juiz nessa função não assume papel passivo, mas sim ativo. Portanto, tem-se que na Justiça Penal o juiz não é mero expectador. Assim, a confissão possui valor relativo (art. 197 do CPP). Outro aspecto demonstrador da necessidade da busca da verdade real é o poder inquisitório do juiz, o qual pode determinar a realização de ofício de prova que entender necessária. Na realidade não existe uma graduação na verdade, e sim um dever de aproximação do juiz com a mesma.

Quando se aborda a fundamentação das decisões judiciais, em última análise, está-se discutindo também “que verdade” foi buscada e alcançada no ato decisório. Eis aqui a relevância de desconstruir o mito da verdade real, na medida em que é uma artimanha engendrada nos meandros da inquisição para justificar o substancialismo penal e o decisionismo processual (utilitarismo), típicos do sistema inquisitório.

Para arrematar, um exemplo prático onde o STJ reconheceu a aplicação do princípio da verdade real para que o juiz arrole a vitima para ser ouvida apesar de não ter sido arrolada pelas partes:

PENAL PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CORRUPÇÃO DE TESTEMUNHA, ART. 343 DO CP. CONDIÇÃO DE TESTEMUNHA COMO ELEMENTAR DO TIPO. REEXAME DE PROVA. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 07/STJ. ARROLAMENTO DO OFENDIDO PELAS PARTES. POSSIBILIDADE. DEVER DO MAGISTRADO PROCEDER A SUA INQUIRIÇÃO DE OFÍCIO. OBEDIÊNCIA AO PRINCÍPIO DA VERDADE REAL. Existindo a necessidade de análise de questão fática ou de provas, não há como este Tribunal examiná-las em sede de recurso especial, pela incidência da Súmula 07/STJ. Apesar da parte ofendida não ser testemunha, ela pode ser arrolada pelas partes, não só porque o art. 201 do CPP expressamente menciona que será ouvida “sempre que possível”, mas também pelo fato de que na área penal vige o Princípio da Verdade Real, daí o dever do magistrado, caso as partes não a arrolem, de ofício determinar a sua inquirição. Agravo regimental não provido 343CPO77201CPP. (445172 DF 2002/0078826-0, Relator: ministro PAULO MEDINA, Data de Julgamento: 06//06/2005, T6 – Sexta Turma, Data de Publicação: DJ 01.08.2005 p. 578)

Inobstante haver-se dito que o aspirar-se à verdade do processo, tanto quanto possível próxima da verdade dos fatos, ou do delito, constitui o patamar a que se deve visar toda persecução penal, não menos verdadeira é a presença, no seio do ordenamento jurídico, de valores outros, até de maior peso, para a concreção do sentimento de justiça humana, que o próprio alcance da verdade dos fatos, no processo.

No processo penal, a verdade real, antes de ser um dogma, é um mito; a limitação e a falibilidade, características inerentes à condição humana dos operadores jurídicos processuais, impossibilitam atingir no processo a verdade real ou absoluta. Resta, pois ao processo penal, uma verdade processual, tendente à verdade dos fatos, a cuja aproximação se volta, o mais possível, para alcançar o necessário teor de justiça.

De fato, considerando que ao Poder Judiciário cumpre aplicar o direito objetivo aos casos concretos, empregando, em síntese, a ideia de Kelsen, de que dado certo fato deve ser a respectiva consequência, entendeu-se que mesmo reconhecendo que “a verdade não constitui um fim em si mesmo, deve buscá-la enquanto condição para que se dê qualidade à justiça ofertada pelo Estado”. (Kelsen, 1979, p. 168)

A verdade é processual. São os elementos de prova que se encontram dentro dos autos que são levados em consideração pelo juiz em sua sentença. A valoração e a motivação recaem sobre tudo que se apurou nos autos do processo.

Luigi Ferrajoli ensina-nos que: “Se uma justiça penal integralmente “com verdade” constitui uma utopia, uma justiça penal completamente “sem verdade” equivale a um sistema de arbitrariedade”.

O processo penal busca é julgamento justo ao acusado, por todos. A dita verdade real é inalcançável, simplesmente, ingenuidade epistemológica.

4.- O SISTEMA ACUSATÓRIO BRASILEIRO

A origem do sistema acusatório remonta ao Direito grego, onde se desenvolve referendado pela participação direta do povo no exercício da acusação e como julgador.

Como notas características do sistema acusatório, destacamos:

a) a atuação dos juízes era passiva, no sentido de que ele se mantinha afastado da iniciativa e gestão da prova, atividade a cargo das partes;

b) as atividades de acusar e julgar estão encarregadas a pessoas distintas;

c) adoção do princípio ne procedat iudex ex officio, admitindo a denúncia anônima nem processo sem acusador legítimo e idôneo;

d) estava apenado o delito de denunciação caluniosa, como forma de punir acusações falsas e não se podia proceder contra o réu ausente (até porque as penas são corporais);

e) a acusação era por escrito e indicava as provas;

f) havia contraditório e direito de defesa;

g) o procedimento era oral;

h) os julgamentos eram públicos, com os magistrados votando ao final sem deliberar.

Mas na época do Império Grego o sistema acusatório foi se mostrando insuficiente para as novas necessidades de repressão dos delitos, ademais de possibilitar com frequência os inconvenientes de uma persecução inspirada por ânimos e intenções de vingança.

A insatisfação com o sistema acusatório vigente foi causa de que os juízes invadissem cada vez mais as atribuições dos acusadores privados, originando a reunião, em um mesmo órgão do Estado, das funções de acusar e julgar.

E se no início predominava a publicação dos atos processuais isso foi sendo gradativamente substituído pelos processos à porta fechada. As sentenças, que na época Republicana eram lidas oralmente desde o alto do Tribunal, no Império assumem a forma escrita e passam a ser lidas na audiência. Nesse momento surgem as primeiras características do que viria a ser considerado como um sistema: o inquisitório.

O sistema acusatório, antítese do inquisitivo, tem nítida separação de funções, ou seja, o juiz é órgão imparcial de aplicação da lei, que somente se manifesta quando devidamente provocado; o autor é quem faz a acusação (imputação penal + pedido), assumindo, segundo nossa posição, todo o ônus da acusação, e o réu exerce todos os direitos inerentes à sua defesa. Assim, no sistema acusatório, cria-se o actum trium personarum, ou seja, o ato de três personagens: juiz, autor e réu.

No Brasil, é correto dizer que o processo penal é acusatório puro, mas o sistema é misto, pois há uma fase inquisitiva, o inquérito policial, e outra fase acusatória pura, que é o processo penal propriamente dito. Não se podendo mais realizar a autotutela como regra, ficou claro o reconhecimento de três funções processuais distintas, realizados por órgãos distintos – a acusação, a defesa e o julgamento. Se realizadas todas essas funções por um só órgão, caracteriza o sistema inquisitivo e se realizado por órgãos distintos e independentes, estaremos diante do sistema acusatório, e é exatamente o que ocorre no processo penal brasileiro.

O Ministério Público, tão grandiosamente inserido na Constituição que chega a levar doutrinadores a considerá-lo um verdadeiro Poder, não pode intentar uma ação penal visando, única e exclusivamente, a condenação do réu, pois a ele cabe, acima de tudo, a defesa da ordem jurídica (art. 127, CF), e defende-se a ordem jurídica aplicando-se o Direito ao caso concreto, depois que descoberta a verdade real. E mais: o processo penal para a aplicação do direito de punir do Estado, é um serviço de relevância pública, e o direito de liberdade, dignidade, o princípio da presunção de inocência, são direitos assegurados na Constituição e, defendendo o serviço de relevância pública e os direitos constitucionais elencados na Carta Magna de 1988, o Ministério Público poderá promover as medidas necessárias para a sua garantia (art. 129, inciso II, CF/88), não sendo vedado recorrer em favor do réu, e muito menos impetrar a ação popular de Habeas Corpus em seu benefício.

Como diz Fernando da Costa Tourinho Filho, citando Carnelutti, pretensão é a exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio e, assim, na lide, há um interesse subordinante e um interesse subordinado. No processo penal, o Ministério Público não quer ver seu interesse subordinando o interesse do réu, como presunção antes mesmo de começar o processo, pois, na verdade, quer muito mais que isso, quer ver a verdade real descoberta, e a consequente aplicação da lei, tanto é assim que, como já foi dito, se verificar que houve um engano abominável que redundou na condenação do réu, pode – leia-se, mais corretamente: deve – recorrer em seu benefício e, se verificar que, na fase inquisitiva, está havendo prisão ilegal, pode impetrar Habeas Corpus, fazendo uso indireto da sua competência para controlar externamente a Polícia (art. 129, VII, CF), como também para zelar direitos e garantias inseridos na Constituição Federal (art. 129, II).

Diríamos que o verdadeiro interesse do Ministério Público, no sistema acusatório, é, junto com o objetivo do próprio processo, transformar a verdade real em verdade formal. O interesse na condenação surge depois que a verdade for descoberta, chegando a ficar relegado a um segundo plano o interesse na condenação.

O sistema acusatório, “implica o estabelecimento de uma relação processual, estando em pé de igualdade o autor e o réu, sobrepondo-se a eles, como órgão imparcial, o juiz.”

De tal modo, este sistema processual possui como característica “o poder de decisão da causa entregue a um órgão estatal, por sua vez distinto daquele que dispõe do poder exclusivo do processo.”

Sendo assim, o sistema acusatório possui como lema a construção da verdade mediante a obediência das normas e princípios fundamentais, sistematicamente organizados e dispostos, consistindo na “distribuição do direito de ação, do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre autor, réu (e seu defensor) e juiz.”

Sua essência reside na “tutela precípua do interesse individual lesado pelo processo.” Ao réu são estabelecidas todas as garantias processuais referentes ao contraditório e a ampla defesa.

Neste sentido é a lição de Diogo Rudge Malan:

“Em resumo, pode-se divisar dois pressupostos indispensáveis para a caracterização do sistema acusatório: 1) o princípio da ação, segundo o qual a atividade do julgador, é absolutamente inerte, a fim de resguardar efetivamente a sua imparcialidade, devendo ele se abster de quaisquer iniciativas que possam ensejar um pré-julgamento do mérito e manter, durante todo o procedimento, uma equidistância das teses lançadas pelas partes processuais; 2) a existência de uma autêntica relação processual, na qual ambas as partes possuem iguais e efetivas condições de conformar o convencimento do juiz, através da estrita observância das garantias do contraditório e da ampla defesa. Ausente qualquer um desses pressupostos, está irremediavelmente descaracterizado o sistema acusatório, a nosso sentir.”

Em face das considerações acima aduzidas, dificuldade não há em mapear as distinções entre o sistema inquisitivo e o sistema acusatório. Este último pode ser idealizado, na ótica do julgador, como um sujeito passivo arredio às partes e o juízo como uma altercação entre iguais, introduzida pela acusação, a quem cabe o ônus da prova, encarando a defesa em um juízo contraditório, oral e público e resolvida pelo juiz, movido pela liberdade de convicção.

5.- O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A LIBERDADE CONSITUCIONAL DE INFORMAÇÃO

O princípio da presunção de inocência tem seu marco principal no final do século XVIII, em pleno Iluminismo, quando, na Europa Continental, surgiu a necessidade de se insurgir contra o sistema processual penal inquisitório, de base romano-canônica, que vigia desde o século XII. Nesse período e sistema o acusado era desprovido de toda e qualquer garantia. Surgiu a necessidade de se proteger o cidadão do arbítrio do Estado que, a qualquer preço, queria sua condenação, presumindo-o, como regra, culpado. Com a eclosão da Revolução Francesa, nasce o diploma marco dos direitos e garantias fundamentais do homem: a Declaração dos direitos do Homem e do cidadão, de 1789. Nesta fica consignado, em seu art. 9º - Todo homem é considerado inocente, até o momento em que, reconhecido como culpado, se julgar indispensável a sua prisão: todo o rigor desnecessário, empregado para efetuar, deve ser severamente reprimido pela lei.

O princípio da presunção de inocência conduz, a outros princípios constitucionais, tais como, o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, que em essência emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins, condiciona a positivação jurídica e, ainda, enquanto princípio geral do direito serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico.

Para tanto, esse preceito está previsto no art. 5º, LVII, da CF: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” O réu não tem o dever de provar sua inocência; cabe ao acusador provar sua culpa. Não se admite inversão inicial do ônus da prova, com algumas exceções. É reprodução fiel do art. 11, I, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10-12-1948. O princípio da prevalência do interesse do réu (in dúbio pro reo) é complemento do princípio da presunção da inocência.

“A presunção de inocência é, ainda, decorrência da jurisdicionalidade, como explica Ferrajoli, pois, se a jurisdição é a atividade necessária para obtenção da prova de que alguém cometeu um delito, até que essa prova não se produza, mediante um processo regular, nenhum delito pode considerar-se cometido e ninguém pode ser considerado culpado nem submetido a uma pena.”

Beccaria, a seu tempo, já chamava a atenção para o fato de que “um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido ter ele violado as condições com as quais tal proteção lhe foi concedida.”

Conforme de maneira precisa anotam Bechara e Campos, “melhor denominação seria princípio da não culpabilidade. Isso porque a Constituição Federal não presume a inocência, mas declara que ninguém será considerado culpado antes de sentença condenatória transitada em julgado.”

Diante disso, o devido processo legal, tem sua abrangência na proteção ao inocente, representada pelo direito à ampla defesa e o contraditório.

Já por sua vez o direito de informação, busca desde a Grécia antiga, seu reconhecimento e proteção, mas é com a Revolução Francesa (1789), que surge como hoje é conhecido, como um direito fundamental, que tem como finalidade a troca de conhecimentos, experiências e emoções entre os indivíduos através da disseminação da informação. Esse direito divide-se em: direito de informar, direito de ser informado e liberdade de expressão. É um direito de importância, uma vez que possui interesse social, formando conceitos e valores na população, difundindo as ideias e propiciando mudanças políticas e sociais, o que o torna fundamental para a consolidação do Estado Democrático de Direito.

6.- DESCARACTERIZAÇÃO DA VERDADE REAL DIANTE DA REALIDADE PROCESSUAL E A INFLUÊNCIA DA MÍDIA

O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema inquisitório; com o “interesse público” (cláusula geral que serviu de argumento para as maiores atrocidades); com sistemas políticos autoritários; com a busca de uma “verdade” a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados momentos históricos); e com a figura do juiz ator (inquisidor).

A obsessão pela verdade não deve conduzir à assunção de um papel de investigador por parte do juiz. Ele deve dar por conclusa sua ambição de verdade apesar da existência de lacunas, o que deve implicar obrigatoriamente na absolvição do réu, de acordo com o princípio constitucional da presunção de inocência.

Por outro lado, a distorção a que o sistema acusatório é submetido não se restringe ao protagonismo do juiz, em busca da “verdade real”. Talvez o maior dos flagelos que o processo penal brasileiro experimenta hoje (e que expressa exatamente o quanto há um comprometimento de sua estrutura democrática e dos princípios da necessidade e proporcionalidade) seja o fenômeno cada vez maior de prisões cautelares, que são o perfeito exemplo de exceção tornada regra. O grande problema brasileiro é a quantidade de presos provisórios (sem sentença transitada em julgado), em franca violação ao princípio da presunção de inocência. A estatística oficial aponta quarenta por cento de presos provisórios enquanto a extraoficial aponta sessenta por cento, prova de que o inquisitorialismo, ainda sobrevive, manifestado na necessidade de ter o corpo do herege à disposição, apesar da disposição constitucional em contrário. Tudo em nome do mito da verdade real, da eficácia das investigações, enfim.

O que poderia ser então um modelo de produção da verdade adequado, que efetivamente atendesse aos postulados de um sistema que possa ser reconhecido como verdadeiramente acusatório? Como refere Aury Lopes Jr., “o objetivo justificador do processo penal é a garantia das liberdades dos cidadãos, através da garantia da verdade, não uma verdade caída dos céus, tampouco uma tal verdade real, mas sim aquela obtida mediante provas licitas, refutáveis e no devido processo.”

Percebe-se que tanto no sistema acusatório e quanto na teoria do garantismo penal, o fato de serem designadas funções para cada parte do processo e para todos os seus sujeitos, determina-se que será este o papel a ser cumprido por cada um. Como está atribuído à acusação o poder de provar a culpa do réu, não cabe ao juiz intervir no ônus exclusivo (ou pelo menos deveria ser) do acusador.

A abordagem da verdade real não se faz possível num Estado Democrático de Direito cujas bases doutrinárias fundam-se no garantismo e na acusatoriedade do processo. A persecução penal cabe legitimadamente apenas ao Ministério Público como órgão representante da acusação e não ao juiz que se apropria de uma imagem justiceira e perseguidora da justiça, buscando na possibilidade de requerimento de provas e diligências o seu meio de punir.

A posição adotada pelo juiz no processo deverá ser a de um expectador, jamais se tornar um ator, prezando pelo respeito às garantias constitucionais na função de juiz-garante, de forma a alcançar a igualdade das partes no processo.

E a igualdade, nas palavras de Pacelli, só será alcançada quando não se permitir mais ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado.

Ensina Pacelli que: “além do fato de não existir nenhuma verdade judicial que não seja uma verdade processual, o princípio da verdade real, na realidade, na extensão que se lhe dá, pode ser - e muitas vezes foi e ainda é – manipulado para justificar a substituição do Ministério Público pelo juiz, no que se refere ao ônus probatório que se reserva àquele.”

Além de todos esses fatores, a imprensa que tem o dever de somente nos prestar informações, passa a atuar como se julgadores fossem, criando entendimentos na mente social prematuro e colocando em risco não só a veracidade dos fatos, mas também prejudicando imensuravelmente a busca da verdade real, como também fragilizando mecanismos existentes em nossa lei maior.

Até quando a imprensa irá interferir no processo, pois a sociedade seduzida e estimulada pelos fatos transcorridos a todos os instantes, vê-se a favor da mídia, que tem por escopo decidir, em nome do Judiciário, se o réu é culpado ou inocente, sem o devido processo legal, violando o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.

Como exemplo cita-se os casos Suzana Von Richthofen, Nardoni e por último o caso Eloá, que foram de grande repercussão, mas existem muitos outros espalhados pelo Brasil, que infelizmente a influência avassaladora da mídia e o pré-julgamento social em face dos acusados, bem como, o desrespeito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório.

Em todos esses casos houve uma grande influência da mídia, tanto antes ou mesmo durante o julgamento.

O caso Eloá (Lindenberg) faz parte de um rol de crimes que mexeram com o imaginário popular, como a morte da menina Isabella Nardoni e o assassinato do casal Richthofen. A diferença é que, ao contrário desses casos, assassino e vítima não pertenciam a mesma família. O caso Eloá não rompeu um daqueles tabus primordiais que proíbem o infanticídio ou o parricídio. Na essência, não é diferente de centenas de crimes passionais que ocorrem todos os dias.

Dois elementos deram destaque à morte de Eloá: o envolvimento de certo tipo de imprensa que, de seu papel observador, passou a uma espécie de protagonismo, e a ação desastrada da polícia. Mas, ao contrário do que sustentou a defesa de Lindemberg, ninguém é culpado – a não ser o próprio assassino, quando puxa o gatilho.

A responsabilidade pela morte da jovem, portanto, não é da sociedade, nem da imprensa – embora, resssalte-se, quanto menos protagonista, mais precisa em seu papel de informar será a imprensa.

O julgamento de Lindemberg Alves durou 4 dias, de 13 a 16 de fevereiro de 2012, e ele foi considerado culpado pelos 12 crimes de que foi acusado (um homicídio, duas tentativas de homicídio, cinco cárceres privado e quatro disparos de arma de fogo) e condenado a 98 anos e 10 meses de prisão pela Juíza Milena Dias. Sua sentença foi transmitida ao vivo por diversas redes televisivas. O Código Penal, entretanto, previne que um cidadão permaneça preso por mais de 30 anos.

Após o julgamento a advogada de Lindemberg, Ana Lúcia Alves Assad, entrou com um pedido de anulação do julgamento. As alegações, (para o pedido de anulação) são irregularidades e cerceamento de defesa. Ana Lucia também solicitou a redução de pena de Lindemberg, “a pena foi totalmente desproporcional, já que houve um crime continuado”, disse. Cabe a juíza aceitar ou não os recursos interpostos.

Fica evidente que nos casos em questão, todos os réus foram condenados, assim, como também, fica evidente a participação da mídia, através de seu direito à informação, apresentou ao público a notícia do fato e, também, um pré-julgamento dos fatos, influenciando, de certa forma na condenação dos réus.

A Constituição do Estado do Paraná preceitua de forma contundente: “Ninguém pode ser submetido a uma prévia condenação pública, sem que tenha se sujeitado ao devido processo legal, respeitando-se o direito de ampla defesa (inciso LV, art. 5º, CF); sendo que a divulgação pelos órgãos de comunicação, da imagem de pessoas tidas como suspeitas pode redundar em prévia condenação pública.”

Em matéria publicada o jurista Cândido Furtado Maia Neto, diz: “Não se pode expor ao escárnio e humilhação a intimidade dos seres humanos envolvidos em inquérito policial ou em processo penal, posto que ficam sujeitos ao sensacionalismo da imprensa ou até dos agentes oficiais do Estado encarregados de promover justiça e segurança pública.”

Devemos nos recordar o fato ocorrido na escola de base em que os acusados foram execrados publicamente, condenados sumariamente pela opinião pública, com suas vidas completamente arruinadas e ao final constatou-se a inocência dos mesmos.

Agora, nesses casos em que tais delitos são cometidos contra a vida e são submetidos ao rito do júri popular, com a influência da mídia e da sociedade, os jurados, sem sombra de dúvidas chegaram ao Tribunal com opinião antecipadamente formada pela culpabilidade e propugnarão pela condenação sem antes ocorrer as oitivas e debates necessários e previstos para a busca da verdade real.

Há o princípio da presunção de inocência que nem sempre prevalece no júri. E mais prejudicada ainda resta a descoberta da verdade real princípio basilar do processo penal.

A teoria das verdades no processo foi diversas vezes questionada e foi por Foucault construída uma tese de que a verdade é composta por diversas versões e por isso, diversas verdades. O autor assim entende, pois para o mesmo, cada um que tenha presenciado o fato em comum terá, particularmente, a sua perspectiva do que é verdadeiro.

Assim, na utópica busca pela dita verdade real, muitas vezes age-se em sentido contrário a constituição e, atinge-se a dignidade física e moral do acusado, numa flagrante inconstitucionalidade prevista num Estado Democrático de Direito, inclusive descaracterizando o verdadeiro sentido dessa busca.

7.- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme Carnelutti: “A verdade real é inalcançável, até porque a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós. Além de inalcançável, tampouco existem verdades absolutas, como a própria ciência encarregou-se de demonstrar. A verdade jamais pode ser alcançada pelo homem.”

Diante dessa realidade, pode-se afirmar que em um processo penal deve-se buscar a verdade dos fatos e que as provas, testemunhos, e demais elementos que compõem o processo, servem como meio para buscar essa verdade.

Constará nos autos do processo, a verdade de cada uma das partes, a qual deve ser comprovada, para que a sentença seja a mais justa possível.

Observa-se que toda a criação dos teóricos juristas tem seus pontos fracos, (princípios são meras criações teóricas e alguns autores inventam como forma de resumir em uma expressão algo que tomaria longo tempo), e muitos pela importância que tem acabam entrando na lei.

O processo penal determina que os fatos devam ser realmente comprovados, não deixando espaços para dúvidas, no entanto, a verdade que existe é a verdade formal, ou seja, é aquela verdade que está nos autos (no papel), podendo ou não encontrar correspondência com a realidade dos fatos.

Deve também, considerar a atuação da imprensa que, em busca da informação e da verdade real, em situações de conflito, é necessário que interprete e aplique os preceitos constitucionais, ressalvando a proteção da dignidade humana, que se deve dar através da ponderação de princípios como: razoabilidade, proporcionalidade, necessidade e adequação.

A liberdade de informação possui como limitador de seu exercício o direito de terceiro e a proteção aos direitos da personalidade, tendo como limite a preservação da dignidade pessoal do acusado.

A verdade real definida como princípio informador do processo penal, que venha assegurar ao magistrado superação da iniciativa das partes na colheita do material probatório, conduz o processo ao sistema inquisitivo, evidenciado pela ampla discricionariedade concedida ao juiz para investigar toda e qualquer circunstância, extrapolando o interesse das partes e contaminando de parcialidade o provimento jurisdicional.

Neste sentido, Diogo Rudge Malan reconhece a inviabilidade da ocorrência da verdade real na relação processual, definindo-a como um mito, esclarecendo que num sistema acusatório, “somente poderá ocorrer uma verdade processual válida, buscada com a cabal observância da garantia da imparcialidade do juiz, que é quebrada pela iniciativa instrutória deste último.”

Logo, procede a preocupação de que os poderes públicos, sob o ensejo da busca da verdade real venham legitimar diversas práticas autoritárias e abusivas, tão peculiar no sistema inquisitivo.

A utilização dos critérios assegurados no processo penal, a verdade desvendada, judicialmente será sempre uma verdade construída, submissa à variabilidade do grau de colaboração das partes, e por vezes do juiz, quanto à decisão de sua certeza.

Utilizando como base Michel Faucault de que: “a verdade é composta de diversas versões e por isso, diversas verdades”.

Diante dessa tese de Faucaul, concluímos com uma poesia de Carlos Drummond de Andrade, cujo título é: Verdade:

A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil

e os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus focos.

Era dividida em metades

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela.

E carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

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Osório, MAIO/2012

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Data de elaboração: maio/2012

 

Como citar o texto:

MELO, Marciano Almeida..A descaracterização do princípio individual da busca da verdade real frente ao interesse coletivo de informação constitucionalmente válido. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1001. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/2543/a-descaracterizacao-principio-individual-busca-verdade-real-frente-ao-interesse-coletivo-informacao-constitucionalmente-valido. Acesso em 30 jul. 2012.

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