1. COMPLEXIDADE INTERNA DA RELAÇÃO JURÍDICA OBRIGACIONAL

 

1.1 RELAÇÃO OBRIGACIONAL SIMPLES E COMPLEXA: CONFRONTO

Independentemente da natureza que ostentar - seja pessoal, seja real - todo direito subjetivo encerra sempre a idéia de obrigação, como antítese natural. Direito e obrigação representam, de fato, verso e anverso da mesma medalha. Aliás, não é por menos que, reportando-se ao notório adágio jurídico jus et obligatio sunt correlata, houve quem poeticamente afirmasse que “as obrigações são como as sombras que os direitos projetam sobre a vasta superfície do mundo”.

No entanto, não era de se esperar que o vocábulo obligatio fosse empregado no estudo do direito das obrigações com tão ampla acepção. As obrigações retratadas e disciplinadas pelo Livro II do Código Civil brasileiro (CCB) circunscrevem-se, ao revés, a uma concepção mais estrita e técnica. Aludem, nesse particular, ao vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação, a qual, por sua vez, deve corresponder a um interesse legítimo do credor.

Com efeito, na sua acepção técnica, afigura-se possível realizar a decomposição da obrigação em duas faces: ao direito subjetivo do sujeito ativo (credor) corresponde o dever jurídico a que se vincula o sujeito passivo (devedor). O que enlaça e dá liga aos dois lados do mesmo fenômeno é o amplamente pronunciado vínculo obrigacional.

Desde Roma, a obrigação vem sendo definida como o vínculo entre o crédito e o débito, como a mera soma “do direito subjetivo de crédito e do dever jurídico estampado na dívida”. Cuida-se, é bem de ver, de concepção estática e restrita, que separa credor e devedor em dois polos opostos, estando o segundo sujeito ao poder do primeiro. Dizia-se que entre eles não existia nada além do crédito e da dívida, isto é, a relação obrigacional era compreendida apenas no seu aspecto externo, através de seus três elementos constitutivos: os sujeitos, o objeto e o vínculo.

Nesse passo, os sujeitos são os titulares de tal relação. O credor é o sujeito ativo, titular do direito subjetivo de crédito; o devedor, por outro lado, é o sujeito passivo, já que sobre ele incide o dever de prestar. A seu turno, o objeto da obrigação corresponde à prestação que deve ser realizada pelo devedor a fim de satisfazer o interesse do credor, ao passo que o vínculo representa o enlace entre esse direito à prestação e o dever de prestar.

Não se olvide que esta concepção estática e bipolar do vínculo persistiu por longo tempo, tendo sido encampada por doutrinadores e legisladores de inúmeros países. O Código Civil brasileiro (CCB), de 10 de janeiro de 2002, à guisa de ilustração, não fugiu à regra: os quatro primeiros capítulos do Livro atinente ao Direito das Obrigações retratam a relação obrigacional exatamente com essa singeleza, prestigiando o que outrora fora proclamado como “mero vínculo descarnado” que “deixa passar a realidade da mesma forma que as malhas duma rede deixam passar as águas dum rio”.

Todavia, a pré-falada noção singular da obrigação, pronunciada, inclusive, como representativa de fórmula matemática (eis que resultado de mera soma do crédito e débito), foi, paulatinamente, modelada pela história, que sempre se mostra implacável no processo de contestar os dogmas e expor suas insuficiências.

A obrigação vista sob o ângulo da linearidade expõe apenas o aspecto externo do vínculo, vale dizer, aquele compreendido por seus elementos: os sujeitos, o objeto e o liame que subordina o devedor ao credor. Não se preocupa, pois, com a estrutura dos múltiplos deveres, estados, situações e poderes que defluem da relação jurídica (aspecto interno). Negligencia-se, dessarte, o exame destes e, notadamente, da conduta concreta das partes no dinâmico processo de desenvolvimento da relação obrigacional.

É dizer que “na análise externa estes deveres se encontram ‘soltos’ no vínculo, como que atomizados, sem que se possa perceber a existência de uma gradação entre eles”.

1.2 OBRIGAÇÃO COMO “ORGANISMO” E TOTALIDADE CONCRETA

Atribui-se ao jurista alemão Heinrich Siber a mudança de tal perspectiva estática do vínculo, porquanto a ele coube a defesa e a divulgação da complexidade intraobrigacional. Recuperando uma terminologia outrora empregada por Savigny, Siber concebeu o vínculo obrigacional como um “organismo”, já que a obrigação albergaria uma “multiplicidade de pretensões, presentes ou possíveis, para o futuro, estando o todo unificado em função do conjunto orgânico formado pela relação global”.

Posteriormente, Karl Larenz, apartando-se da concepção organicista, vislumbrou a relação jurídica obrigacional por meio do conceito geral concreto, definindo, desse modo, o vínculo obrigacional como totalidade, como um conjunto de direitos, obrigações e situações jurídicas. Tal conjunto, contudo, não representa a mera soma dos elementos que o compõem; ao revés, estes se encontram intimamente relacionados, vale dizer, instrumentalmente conectados por um elemento em comum: a finalidade da obrigação.

Em razão disso, o vínculo manter-se-ia como tal ainda que alguns deveres não mais persistissem e alguns direitos não mais subsistissem devido ao seu exercício ou à prescrição. Ou, ainda, caso houvesse alteração dos integrantes da relação jurídica obrigacional ou das cláusulas contratuais, por vontade das partes ou por lei.

Compreender o vínculo obrigacional como totalidade concreta e como processo dá ensanchas à percepção de que ele é vínculo dinâmico e, assim sendo, move-se processualmente em direção a uma finalidade, que o polariza, “como a ele inerente".

Nesse passo, o alcance do fim da obrigação passa a ser muito mais relevante do que a absoluta e perfeita realização de cada um dos passos do seu percurso temporal, o que faz emergir a necessidade de que a obrigação se adapte às inevitáveis transformações concretas que ocorrem, com o escopo de atingir fielmente a sua finalidade.

É dizer que a obrigação como processo desloca-se rumo à direção ditada por seu fim. A finalidade é que confere coerência e sentido ao conteúdo obrigacional, de modo que o vínculo encerra seu ciclo de existência, extinguindo-se, se e somente se o fim é alcançado.

Assim é que frustrado o fim, pelo inadimplemento, o curso processual é redirecionado, para obtê-lo de outro modo, ou compensar a demora, incorporando-se deveres acessórios, como juros moratórios e cláusula penal, a título de exemplo.

Demonstrando a importância da ótica complexiva e dinâmica, Mário Júlio de Almeida destaca que o redesenho estrutural e finalístico da relação obrigacional enseja a

[...] integração de múltiplas faculdades e situações num direito ou relação, isto é, o seu entendimento como um organismo ou mecanismo (‘Gefüge’) que permite a consecução de fins determinados; e a conformação das relações jurídicas à evolução das circunstâncias, quer dizer, a sua compreensão como processos ou sequências teleologicamente estruturadas.

A propósito, a marcha processual acima desenhada é ilustrada com primor pelo art. 475 do Diploma Civil brasileiro, um dos poucos dispositivos nos quais o legislador civil inequivocamente sucumbe à admissão da noção de complexidade intraobrigacional, senão vejamos:

Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

Vê-se que o mencionado preceito legal contempla o aspecto processual da relação obrigacional, facultando à parte lesada pelo descumprimento optar por várias direções ou rumos, todos atraídos e polarizados pelo adimplemento obrigacional.

Dito, portanto, que a complexidade interna da obrigação traduz a noção de que a obligatio abriga, em seu seio, não um singelo dever de prestar, correlato a uma pretensão creditícia, mas, antes, vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta, incumbe-nos examinar, ainda que perfunctoriamente, essas partes do todo, a fim de aclararmos a dinâmica obrigacional até então exposta.

1.3 CONTEÚDO DA RELAÇÃO JURÍDICA OBRIGACIONAL

Os direitos subjetivos propriamente ditos consubstanciam o poder de exigir a realização da prestação creditícia, com recurso, se necessário for, a meios coercitivos de tutela jurídica. Traduzem-se, então, sempre em comportamentos exigíveis de outras pessoas, para cuja realização imprescinde-se da cooperação do sujeito a quem se dirige esse “poder da vontade”. Nesse sentido, fala-se que o sujeito ativo não tem um direito absoluto, porquanto não pode alcançar exclusivamente por sua vontade o efeito jurídico associado a seu direito; tem, então, apenas uma pretensão, vale dizer, um poder de exigir de outrem a adoção de um comportamento.

De outro giro, não se pode olvidar da importância dos chamados direitos potestativos, os quais permitem a alguém, por simples manifestação unilateral de vontade, criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica pré-existente, de seu interesse. Às pessoas sujeitas a essa espécie de direitos, resta o estado de sujeição, já que se está diante de direitos cujo exercício depende unicamente do arbítrio de seu titular.

Na seara do Direito das Obrigações, orientando-se pelo Código Civil brasileiro, é possível individualizar como significativos direitos potestativos o direito de resolução contratual pelo inadimplemento da parte adversa (art. 475), de revogação de procuração outorgada (art. 682, I), de resolução do contrato de compra e venda quando aposta a cláusula de retrovenda (art. 505) e de escolha das prestações nas obrigações genéricas (art. 244) e alternativas (art. 252).

Quadra registrar que, diferentemente dos direitos subjetivos propriamente ditos, os direitos potestativos não importam exigibilidade de conduta alheia, já que são executáveis pelo titular e, quando exercidos, produzem imediatamente os efeitos jurídicos a eles associados.

Caracterizam-se os direitos potestativos obrigacionais, no particular, por necessariamente surgirem no seio de uma relação jurídica anterior. Logo, reportando-se aos exemplos supramencionados, nota-se, ilustrativamente, que os direitos potestativos ligados à resolução face ao inadimplemento ou ao exercício do direito de retrovenda fundam-se em relação contratual pré-existente, sendo, pois, destituídos de autonomia no que concerne a sua gênese.

Aos direitos potestativos contrapõe-se o estado de sujeição, eis que ao sujeito passivo resta unicamente suportar as consequências jurídicas que derivam do efetivo exercício daqueles.

 

Há, ainda, a situação jurídica denominada ônus jurídico, que pode, em linhas gerais, ser conceituada como “uma obrigação potestativa, no sentido de que o seu titular pode realizá-lo ou não”.

Indica, nesses termos, um comportamento que a pessoa é livre para seguir ou não, mas que deve observar caso queira evitar a perda de um direito ou alcançar uma situação jurídica vantajosa. Diz-se, então, que a pessoa sujeita a um ônus jurídico não tem nem um direito nem um dever, mas tão-somente uma faculdade.

Relativamente ao direito obrigacional, aduz-se, à guisa de exemplo, como ônus jurídico, a faculdade do credor de promover a citação judicial do devedor ou mesmo providenciar outras medidas sediadas no art. 202 do CCB, caso pretenda interromper o curso do prazo prescricional em andamento. Paralelamente, cite-se, também, o ônus do devedor, caso o credor não queira receber o pagamento e dar a quitação, de consignar este em juízo, a fim de exonerar-se das despesas com juros moratórios e desresponsabilizar-se dos riscos que porventura possam futuramente recair sobre a coisa, caso esta seja objeto da relação obrigacional.

Compõem, ainda, a relação obrigacional, as expectativas jurídicas, as quais ocupam uma situação intermediária no processo de formação sucessiva do vínculo, cujo exemplo, por excelência, tomando-se por base o ordenamento brasileiro, é a posição do credor cujo crédito está sujeito à condição suspensiva.

Sob outro vértice, exsurgem do conteúdo obrigacional os deveres principais, primários ou típicos, que representam o núcleo dominante, o cerne da relação obrigacional. É com base neles que se pode classificar as obrigações em dar, fazer ou não fazer, na forma desenhada pelo Livro I, capítulos I, II e III, do CCB.

Em se tratando de obrigações contratuais, são os deveres principais que determinam a tipicidade contratual (dever de transferir a coisa e, correlativamente, de pagar o preço certo da coisa transferida, no caso do contrato de compra e venda; e dever de ceder a outrem o uso e gozo da coisa não fungível e o correspondente dever de pagar os alugueres, em se tratando de contrato de locação, v.g).

Por tal razão, afirma-se que os referidos deveres são aqueles respeitantes às prestações nucleares da obrigação, isto é, aqueles aptos a satisfazerem diretamente o interesse das partes, de sorte que a existência da relação obrigacional deles imprescinde. Propiciam ao credor determinada prestação que pode ser positiva ou negativa. Vale lembrar que, em geral, havendo o cumprimento deste dever, extingue-se a relação obrigacional, já que, a rigor, o fim da relação jurídica é alcançado com a realização do dever principal.

Em outro plano, circundando os deveres principais, estão os deveres secundários ou acidentais de prestação , os quais admitem uma subdivisão: deveres secundários meramente acessórios da prestação e deveres secundários de prestação autônoma.

Em verdade, ambos encerram prestações determinadas, autonomamente exigíveis, diversas das típicas, embora com elas estritamente relacionadas.

Os primeiros são aqueles destinados a preparar o cumprimento ou assegurar as sua perfeita realização. Ilustrativamente, pode-se citar, sob a luz do Código Civil brasileiro, como exemplos desses deveres: o dever do credor de dar a quitação regular ao devedor face ao pagamento (art. 319); o dever de conservação da coisa até a tradição, de honrar com as despesas de escritura, registro e tradição, nos contratos de compra e venda (arts. 490 e 492); e o dever do donatário de cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro ou do interesse geral (art. 553).

Por outro lado, os últimos apresentam-se como sucedâneos do dever principal de prestação (como a obrigação de indenizar resultante da impossibilidade culposa da prestação originária, consubstanciada no art. 389 do CCB ), ou mesmo simultâneos da prestação principal (a exemplo da obrigação de indenizar pela mora no cumprimento da obrigação principal, que a esta é acrescida, consoante o disposto no art. 395 também do Diploma Civil brasileiro ).

2 A EFICÁCIA “SUBVERSIVA” DA BOA-FÉ OBJETIVA NO CAMPO OBRIGACIONAL

2.1 PANORAMA DE ATUAÇÃO DOS DEVERES ANEXOS

A par dos deveres circundantes da prestação, há, também, os proclamados deveres laterais, ou também chamados instrumentais ou anexos. Cuida-se, nesse particular, de deveres que decorrem da eficácia “subversiva” que os cânones da boa-fé objetiva desencadeiam no processo obrigacional.

Não é de causar surpresa que o programa obrigacional, que transcorre no tempo e se movimenta processualmente - porquanto criado e desenvolvido à vista de uma finalidade -, seria sede, por excelência, de atuação da boa-fé objetiva.

Isso porque a variedade de elementos que compõem a relação jurídica obrigacional complexa e, notadamente, o caráter indeterminado de muitos daqueles, reclamam a aplicação de conceitos indeterminados e cláusulas gerais, permitindo, como expressa Judith Martins Costa

[...] que integrem esta relação não apenas os fatores e circunstâncias que decorrem do modelo tipificado na lei ou os que nascem da declaração de vontade, mas, por igual, fatores extravoluntarísticos, atinentes à concreção de princípios e standarts de cunho social e constitucional.

Nesse passo, o redesenho da estrutura orgânica e finalística do liame obrigacional abre caminhos para a inauguração de um novo paradigma para o direito obrigacional, não mais fundado exclusivamente no dogma da vontade, mas também na boa-fé objetiva.

A dinamicidade do vínculo e o intercâmbio de seus múltiplos elementos, atraídos e regidos pela finalidade, reclamam a atuação, a todo tempo, da boa-fé em sua função normativo-integrativa, vale dizer, na função em razão da qual se somam aos deveres principais e secundários outros que não foram ou não puderam ser contemplados pela lei ou pelas próprias partes, por força da incapacidade de se exaurir todas as hipóteses em que eles possam se manifestar.

Quer-se dizer que se toda relação obrigacional é orientada a uma finalidade específica, a boa-fé objetiva, determinando e conformando os deveres anexos de conduta, insere-se na contextualização dessa finalidade, manifestando-se seja para resguardá-la, seja para auxiliar sua persecução e, enfim, sua consecução.

Vigente no sistema jurídico brasileiro graças aos corolários da eticidade e solidarismo, e não simplesmente pela prescrição da cláusula geral no art. 422 do Código Civil brasileiro , a boa-fé objetiva informa os chamados deveres anexos de conduta, ajustando-os conforme a finalidade primordial da obrigação, a fim de se assegurar a apropriada satisfação do crédito, enfim, o bom prestar.

Os deveres anexos, também chamados de deveres de proteção ou de conduta, identificam-se como sendo aqueles deveres que devem ser adotados por contratantes honrados e leais. Recaem, como se vê, tanto sobre o sujeito ativo, quanto sobre o sujeito passivo da obrigação.

Vocacionados a prescreverem a adoção de medidas aptas a impedirem resultados lesivos aos partícipes da relação obrigacional e aos seus bens, os deveres anexos também se voltam, com igual importância, para o estabelecimento de condutas a serem seguidas com o intuito de proporcionar “o melhor adimplemento" da prestação. Nesse sentido, Mota Pinto assim os conceituou:

[...] Não estão estes deveres laterais orientados para o interesse no cumprimento do dever principal de prestação. Caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes. Servem, ao menos as suas mais típicas manifestações, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato (Erhaltungsinteresse), independentemente do interesse no cumprimento. Trata-se de deveres de adoção de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato [...], dada a relação de confiança que o contrato fundamenta.

Impende anotar que, ainda que não desejados ou não levados em conta pelos contratantes, tais deveres, inevitavelmente, estarão contidos na relação obrigacional. Destinam-se, repita-se, a coibir lesões à contraparte ou a estabelecer que o cumprimento das prestações “se dê da forma qualitativa e objetivamente mais satisfativa aos interesses do credor e de forma menos onerosa ao devedor".

Nessa vereda, constata-se que a boa-fé dilata as obrigações contratualmente assumidas, já que por meio dela, impõe-se, aos contraentes, o compromisso de fazer não apenas o prometido, mas tudo o que se revelar necessário para que o resultado do vínculo obrigacional seja vantajoso para ambas as partes.

Tais deveres fundam-se, no plano fático, no conjunto de fatos (ensejadores ou decorrentes) do acordo, independentemente do momento de formação deste, vale dizer, amparam-se no comportamento dos sujeitos da relação e no complexo de conjunturas abarcadas pelo vínculo.

Destaca-se que a incidência da boa-fé objetiva sobre o vínculo obrigacional ocorre de duas maneiras principais: a primeira guarda relação com aquela noção de correção (de neminem laedere), a qual se revela como deveres negativos de respeito e consideração pelos interesses alheios; a segunda, a seu turno, denota um sentido coativo, criando, para os contratantes, deveres positivos de cooperação, vale dizer, deveres laterais que ligam credor e devedor em uma “ordem de cooperação", atuando no sentido de que eles deixem de ser antagonistas para se transformar em colaboradores. A cooperação engloba os deveres de confiança, de compromisso, de fidelidade, de lealdade e veracidade face à outra parte contratante.

Não se pode olvidar, a propósito, de ressaltar que os deveres laterais não existem ab initio, em numerus clausus e com um conteúdo fixo. O aparecimento, a intensidade e a duração desses deveres imprescindem da verificação de pressupostos variáveis, que, à luz da finalidade da obrigação, adquirem essa eficácia.

Consequentemente, pode-se dizer que os mesmos existem, potencialmente, desde o início e são atualizados à medida que se vão verificando as situações que põem em perigo a consecução do interesse final no vínculo.

É dizer que, dependendo do tipo de relação obrigacional e das circunstâncias fáticas, esses deveres se exteriorizarão de maneiras diversas e com diferente intensidade, sendo esta, evidentemente, muito menor nas relações instantâneas do que naquelas duradouras ou com prestações diferidas no tempo.

 

Sublinha-se, também, que os deveres anexos brotam em diferentes estágios de desenvolvimento da relação obrigacional, atuando, inclusive, em momentos nos quais inexiste uma obrigação principal, como nos casos em que as partes ainda se encontram nas tratativas de um contrato, por exemplo, ou mesmo após o adimplemento da obrigação principal.

Com efeito, incidindo sobre as tratativas, a boa-fé como norma de conduta cria para os contratantes deveres de lealdade em suas negociações e, de igual forma, deveres de informação e de esclarecimento, já que omissões ou obscuridade de dados importantes para o correto desenvolvimento da relação podem, sem dúvida, gerar danos à contraparte. Caso isso ocorra, o lesado terá legitimidade para pleitear a reparação dos prejuízos sofridos, com base na responsabilidade pré-contratual, que corresponde à atuação contemporânea da culpa in contrahendo.

Objetiva-se, assim, proteger a confiança nutrida por cada uma das partes de que as negociações serão conduzidas pelo outro de acordo com a boa-fé, e, conseqüentemente, em consonância com as legítimas expectativas criadas por tal ajuste.

De igual modo, admite-se que os deveres laterais decorrentes da boa-fé possam, inclusive, manifestar sua eficácia depois de extinta a obrigação. Trata-se da pronunciada pós-eficácia dos deveres anexos, os quais podem perdurar mesmo depois de findo o contrato com o adimplemento, por aplicação da culpa post pactum finitum.

 

Destarte, cogitando-se, ilustrativamente, que um contratatantes violara o dever de omitir comportamentos susceptíveis de prejudicar a finalidade do vínculo obrigacional, não se pode negar que ao outro assiste o direito de pleitear em juízo a reparação pelos danos causados por violação de um dever a que se confere eficácia ulterior ao adimplemento.

Inúmeras são as classificações doutrinárias que têm por objeto os deveres anexos. Pelo panorama satisfatório que fornece, interessante é trazer à baila a tripartição preconizada por Menezes Cordeiro, que os subivide em: deveres de esclarecimento, de proteção e de lealdade.

Os primeiros são aqueles que obrigam as partes, na vigência do contrato que as une, a informarem-se mutuamente acerca dos vários aspectos atinentes ao vínculo, bem como de ocorrências que com ele guardem relação e, também, de todos os efeitos que da execução das prestações possam decorrer. Assumem exponencial relevância no âmbito das relações de consumo.

Os deveres de lealdade, por sua vez, obrigam as partes contratantes a, na constância do vínculo, “absterem-se de comportamentos que possam desvirtuar a finalidade do negócio entabulado ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignado”. Incluem-se, dentre eles, o dever de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor, bem como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou das negociações preliminares.

 

Derradeiramente, no que atine aos deveres de cuidado, frise-se que são aqueles que obrigam as partes, na pendência do contrato, a evitar que sejam acarretados danos mútuos, em suas pessoas ou nos seus patrimônios.

Enfim, a par da classificação retratada, importa repisar que todos os deveres dessa espécie estão afetados ao exato processamento da relação obrigacional, vale dizer, “à satisfação dos interesses globais envolvidos, em atenção a uma identidade finalística, constituindo o complexo conteúdo da relação que se unifica funcionalmente”.

2.2 TRANSFORMAÇÕES NA ANÁLISE DO (IN) ADIMPLEMENTO

Considerada como processo, a relação obrigacional, como visto, caminha para algo, encontrando nesse “algo” o fundamento de sua existência e de sua unidade. Destarte, o atingimento de sua finalidade passa a ser considerado muito mais relevante do que a perfeita e absoluta realização de cada uma das fases do percurso temporal tracejado. Esse fim, sem sombra de dúvidas, é o adimplemento.

Tradicionalmente, sob influência em especial do direito romano, o adimplemento foi definido como “a entregra da prestação devida” , ou seja, a realização pontual da prestação pelo devedor, com a consequente satisfação dos interesses objetivos do credor. E, paralelamente, o inadimplemento era concebido como a inexecução da prestação debitória, que fulmina os interesses creditícios.

Como se vê, ambas as noções afiguram-se limitadas ao exame do cumprimento ou descumprimento unicamente da prestação principal.

Contudo, tal leitura estreita do adimplemento, reduzida ao dever de prestar, não se coaduna com a moderna concepção de complexidade interna da relação jurídica obrigacional, tampouco se ajusta à eficácia subversiva provocada pela operatividade da boa-fé objetiva no campo obrigacional, sobre os quais traçamos linhas gerais no capítulo precedente a este.

Partindo-se da premissa de que o adimplemento assume o papel de finalidade ideal do vínculo (e não pura e simplesmente o momento terminal deste), pode-se, com segurança, afirmar que ele não mais se esgota nem se equipara à realização da prestação principal. Isso porque,

[...] não se está aqui a tratar exclusivamente do ato de alguém destinado à extinção de um vínculo, mas um ato (ou conjunto de atos) que possui um conteúdo finalístico não voltado exclusivamente à satisfação de uma das partes e nem vinculado exclusivamente aos interesses prestacionais.

 

O adimplemento passa, então, a ser compreendido como a realização de todos os interesses envolvidos na relação e emanados do vínculo: sejam interesses conectados direta ou indiretamente aos deveres principais, sejam interesses decorrentes da incidência da boa-fé objetiva sobre o vínculo.

Logo, eis por que Martins-Costa conceitua adimplemento como

[...] o cumprimento da prestação concretamente devida, presente a realização dos deveres derivados da boa-fé que se fizeram instrumentalmente necessários para o atendimento satisfatório do escopo da relação, em acordo ao seu fim e às suas circunstâncias concretas.

A evolução conceitual do adimplemento implica, por tal razão, uma genuína releitura temporal, funcional e consequencial do inadimplemento. Melhor dizendo, “alteram-se o momento de verificação do adimplemento (tempo), as condições para sua configuração (conceito em sentido estrito) e os efeitos que dele decorrem (consequências)”.

 

Data de elaboração: outubro/2009

 

Como citar o texto:

SILVA, Vitor Borges da..A compexidade interna da relação jurídica obrigacional e a eficácia "subversiva" da boa fé objetiva no campo obrigacional. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1013. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/2592/a-compexidade-interna-relacao-juridica-obrigacional-eficacia-subversiva-boa-fe-objetiva-campo-obrigacional. Acesso em 18 set. 2012.

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