O que se questiona nesse artigo é a legitimidade constitucional do § 2º do art. 16 da Lei n. 8.213/1991 na redação dada pela Medida Provisória n. 1.523/1996, convertida na Lei n. 9.528/1997, que suprimiu a figura do menor sob guarda, antes equiparado a filho, do rol de dependentes de segurado do Regime Geral de Previdência Social.

           

            Para a adequada compreensão do tema, é preciso recordar o teor do dispositivo em questão antes da alteração trazida pela Medida Provisória n. 1.523/1996:

Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:

 

I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou

inválido;

[...]

§ 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação (grifos nossos).

 

 

            Editada e reeditada e, enfim, convertida a medida provisória na Lei n. 9.528/1997, o aludido § 2º passou a dispor o seguinte:

§ 2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento.

 

 

            A partir daí, a lei previdenciária, em total afronta à ordem constitucional vigente, pelo menos no que tange aos princípios da isonomia e da proteção integral, retirou das crianças e dos adolescentes sob a guarda de segurado do RGPS a condição de dependente, mesmo que não possuíssem condições suficientes para o próprio sustento e educação.

            Ocorre que, na Constituição Federal, há avançado capítulo que consagra os direitos da criança e do adolescente (e, partir da Emenda Constitucional n. 65, de 13 de julho de 2010, acrescentou-se mais um sujeito de direitos: o jovem), o que representa um dos mais amplos e profundos compromissos do país não só com o futuro, sobretudo com o presente, da criança e do adolescente. Ao proclamar o princípio da proteção integral, o constituinte incumbiu à família, à sociedade e ao Estado o dever de, solidariamente, assegurarem aos menores – com absoluta prioridade – o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Além disso, determinou que devem (a família, a sociedade e o Estado) pôr as crianças e os adolescentes a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, direitos naturais fundamentais. Segundo o texto constitucional, a proteção especial compreende, entre outros aspectos, a garantia aos direitos previdenciários e o estímulo do Poder Público ao acolhimento, sob a forma de guarda, dos órfãos ou abandonados.

Eis os termos em que foram expressas tais garantias originalmente:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[...]

 

§ 3º O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

[...]

II – garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;

[...]

VI – estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado (grifos nossos).

(...)

            Nessa linha de raciocínio, pode haver normas a favor da vida, o mais essencial direito do homem na sociedade, da dignidade, da assistência aos desamparados, da previdência social, assim também pode haver normas a favor da reserva do possível, do custeio da seguridade social, da contrapartida da previdência social e da capacidade contributiva. O aparente conflito decorre da natureza didática da Constituição. Haveria, então, conflito entre normas, digamos, inspiradas em valores contrapostos. Em caso que tal só há uma solução: resolve-se a favor da dignidade da pessoa humana, pois o nosso ordenamento jurídico tem esse como um dos seus fundamentos, e a nossa República também se rege pela prevalência dos direitos humanos. E mais: o sistema de seguridade social brasileiro deverá ser organizado, sempre e sempre, para proporcionar a proteção social universal da coletividade, no intuito de promover a dignidade da pessoa humana e de estabelecer o equilíbrio econômico-social no país.

Não constitui o princípio da proteção integral uma série de diretrizes, providências e incumbências dirigidas não só à família e à sociedade, mas também ao Estado, de modo que crianças e adolescentes venham a se desenvolver num ambiente sadio e promissor? E, sendo todos iguais perante a lei, poderia o legislador ordinário ter-se valido da diferença acessória entre guarda e tutela como referência para excluir certos menores do âmbito da proteção que a Constituição garante e nele incluir outros? E o princípio da reserva do possível – "cuja essência é limitar a concretização de normas programáticas e veiculadoras de direitos subjetivos em face da insuficiência de recursos do Estado" – é apto para afastar a responsabilidade do Estado? No meu entender, não. Não é lícito ao Poder Público criar obstáculo artificial que revele o censurável propósito de comprometer, de modo inaceitável, a realização de objetivos fundamentais em prol do menor.

            Havendo, pois, incompatibilidade entre princípios e princípios, deve prevalecer aqueles que garantem a integridade física, moral e social da pessoa humana, e, então, ser declarada a inconstitucionalidade do aludido parágrafo na parte em que afasta a proteção integral do interesse do menor, deixando a criança ou o adolescente sob guarda, quando dependente de segurado do Regime Geral da Previdência Social, totalmente ao desamparo da previdência estatal.

            Nem a ocorrência de abusos na concessão de guardas nem a necessidade de reverter o quadro de desequilíbrio financeiro das contas da Previdência Social fazem desaparecer a nota de incompatibilidade daquele dispositivo com a ordem constitucional. Com efeito, abusos devem ser coibidos, inclusive com medidas legislativas apropriadas. O que não se pode admitir é que tais medidas simplesmente se transformem em medidas que neguem ao menor sob guarda judicial a proteção previdenciária, especialmente quando, como no caso em tela, há efetiva prova da dependência econômica.

           

            LUIGI FERRAJOLI, professor da Universidade de Camerino ("Direito como sistema de garantias", in Revista do Ministério Público, janeiro e março de 1995, n. 61), preleciona:

 

(...)

A situação do menor sob guarda é semelhante à do menor tutelado, não se justificando diferenciação legislativa entre ambos.

(...)

 

 

            Segundo JUAREZ FREITAS, sistema jurídico "é uma rede axiológica e hierarquizada de princípios gerais e tópicos, de normas e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias, dar cumprimento aos princípios e objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição". Para o professor, as antinomias jurídicas caracterizam-se pela incompatibilidade possível ou instaurada "entre normas, valores ou princípios jurídicos, pertencentes, validamente, ao mesmo sistema jurídico, tendo de ser vencidas para a preservação da unidade interna e coerência do sistema e para que se alcance a efetividade de sua teleologia constitucional" ("A interpretação sistemática do direito". São Paulo: Malheiros, 1995, p. 40-62).

            Versando sobre as chamadas antinomias impróprias – especificamente, antinomia de princípio –, escreveu BOBBIO (“Teoria do ordenamento jurídico”, p. 90):

Fala-se de antinomia no Direito com referência ao fato de que um ordenamento jurídico pode ser inspirado em valores contrapostos (em opostas ideologias): consideram-se, por exemplo, o valor da liberdade e o da segurança como valores antinômicos, no sentido de que a garantia da liberdade causa dano, comumente, à segurança, e a garantia da segurança tende a restringir a liberdade; em conseqüência, um ordenamento inspirado em ambos os valores se diz que descansa sobre princípios antinômicos. Nesse caso, pode-se falar de antinomias de princípio. As antinomias de princípio não são antinomias jurídicas propriamente ditas, mas podem dar lugar a normas incompatíveis. É lícito supor que uma fonte de normas incompatíveis possa ser o fato de o ordenamento estar minado por antinomias de princípio.

 

 

            Nessa linha de raciocínio, pode haver normas a favor da vida, o mais essencial direito do homem na sociedade, da dignidade, da assistência aos desamparados, da previdência social, assim também pode haver normas a favor da reserva do possível, do custeio da seguridade social, da contrapartida da previdência social e da capacidade contributiva. O aparente conflito decorre da natureza didática da Constituição.

            Haveria, então, conflito entre normas, digamos, inspiradas em valores contrapostos. Em caso que tal, só há, em meu ver, uma solução: resolve-se a favor da dignidade da pessoa humana, pois o nosso ordenamento jurídico tem esse como um dos seus fundamentos, e a nossa República também se rege pela prevalência dos direitos humanos. E mais: o sistema de seguridade social brasileiro deverá ser organizado, sempre e sempre, para proporcionar a proteção social universal da coletividade, no intuito de promover a dignidade da pessoa humana e de estabelecer o equilíbrio econômico-social no país.

            Não constitui o princípio da proteção integral uma série de diretrizes, providências e incumbências dirigidas não só à família e à sociedade, mas também ao Estado, de modo que crianças e adolescentes venham a se desenvolver num ambiente sadio e promissor? E, sendo todos iguais perante a lei, poderia o legislador ordinário ter-se valido da diferença acessória entre guarda e tutela como referência para excluir certos menores do âmbito da proteção que a Constituição garante e nele incluir outros? E o princípio da reserva do possível – "cuja essência é limitar a concretização de normas programáticas e veiculadoras de direitos subjetivos em face da insuficiência de recursos do Estado" – é apto para afastar a responsabilidade do Estado? No meu entender, não. Não é lícito ao Poder Público criar obstáculo artificial que revele o censurável propósito de comprometer, de modo inaceitável, a realização de objetivos fundamentais em prol do menor.

            Além dos artigos específicos para a proteção da família, da maternidade, da criança, do adolescente, do jovem e do idoso, há proteção de cunho mais abrangente: o art. 1º, em que a Constituição Cidadã consagra o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

 

[...]

 

III - a dignidade da pessoa humana;

 

 

            Confira-se, ainda, o preâmbulo da Carta Magna, pois o enunciado deve inspirar o intérprete na busca do real sentido de suas normas, estando ali assegurado, como valores supremos do Estado Brasileiro, o bem-estar, a igualdade e a justiça:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

 

 

            Mais ainda: o art. 3º da Constituição, de alcance ímpar, deseja uma sociedade livre, justa e solidária, em que sejam eliminadas a pobreza e a marginalização, reduzidas as desigualdades sociais e promovido, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e nenhuma outra forma de discriminação, o bem de todos.

            Merece destaque, nessa linha, que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em absoluta consonância com o mandamento constitucional, fundamenta suas normas, expressamente, no princípio da dignidade da Pessoa Humana, como se confere da redação de seu art. 3º, a seguir transcrito:

 

 

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

 

 

            A situação do menor sob guarda é semelhante à do menor tutelado, não se justificando diferenciação legislativa entre ambos.

            Vejamos, por ilustrativa, a conceituação da tutela e da guarda:

“TUTELA. Do latin tutela, de tueri (proteger), vulgarmente entende-se a proteção, a assistência instituída em benefício de alguém.

Sob o ponto de vista jurídico, pois, a tutela é a instituição estabelecida por lei para a proteção dos menores órfãos, ou sem pais, que não possam, por si sós, dirigir suas pessoas e administrar os seus bens, em virtude do que se lhes dá um assistente, ou

representante legal, chamado, especificamente, de tutor (...)".

 

GUARDA. Derivado do antigo alemão warten (guarda, espera), de que proveio também o inglês warden (guarda), de que se formou o francês garde, pela substituição do w em g, é empregado, em sentido genérico, para exprimir proteção, observação, vigilância ou administração .(...)

Guarda. Em sentido especial do Direito Civil e do Direito Comercial, guarda quer exprimir a obrigação imposta a certas pessoas de ter em vigilância, zelando pela sua conservação, coisas que lhes são entregues ou confiadas, bem assim manter em vigilância e zelo, protegendo-as, certas pessoas que se encontram sob sua chefia ou direção.

No âmbito da proteção da criança e do adolescente obriga a prestação de assistência material, moral e educacional, conferindo ao detentor o poder de opor-se a terceiros, inclusive aos pais (art. 33, ECA). (...)

(in vocábulo Jurídico/atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho - Rio de Janeiro, 2005).

            De fato, da conceituação desses institutos, infere-se possuírem em comum a preocupação com o bem estar do menor, assumindo o responsável dever de proteção, de assistência material, e moral, do menor, tudo para lhe assegurar o desenvolvimento.

            Sob o aspecto do bem estar do menor, quando mais não for, existe similitude de objetivos da guarda e da tutela, circunstância que impede, por si só, tratamento diferenciado, sob pena de desobediência ao Princípio da Igualdade tratado no art. 5º, caput, da Constituição da República:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 

 

            Demais disso, que razões éticas e ontológicas justificariam tratamento tão diferenciado para menores sob tutela e menores sob guarda? Estes e aqueles, para sua sobrevivência, para seu desenvolvimento material e espiritual, carecem dos mesmos bens da vida... Só a questão orçamentária justificaria?

            Para nós não, daí a inconstitucionalidade da alteração legal.

            De mais a mais, pelo chamado efeito cliquet[1] (ou princípio da vedação do retrocesso), em se tratando de direito fundamental, a atuação do poder público deve tender à ampliação da proteção social, e não ao retrocesso para situação menos favorável ao cidadão. Uma vez atingida determinado status de segurança social, o Estado somente pode agir para ampliá-la, e não para reduzi-la.[2] Tal construção decorre da própria norma constitucional que veda a edição de emenda (a fortiori de simples lei ordinária) tendente a abolir direitos fundamentais – art. 60, § 4º, da Constituição da República.

            Ora, no caso em tela é inegável que antes da edição da Lei 9.528/97 se admitia a concessão da pensão por morte ao menor sob guarda. Portanto, a nova lei empreendeu uma restrição no acesso ao benefício e é, por isso mesmo, inconstitucional.

           

 

  

[1]    A expressão "cliquet" é utilizada pelos alpinistas e define um movimento nas cordas que só lhe permite subir, não lhe sendo possível retroceder, em seu percurso, ou seja, evita sua queda na escalada, sendo certo que ao atingir certo nível de desenvolvimento na empreitada, aquele patamar lhe está garantido pelo referido efeito.

[2]    Confira-se, a propósito, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 336.

 

 

Elaborado em novembro/2012

 

Como citar o texto:

LIMA, Valter Sarro de..Direito do menor sob guarda à pensão por morte. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1111. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-previdenciario/2730/direito-menor-sob-guarda-pensao-morte. Acesso em 15 out. 2013.

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