1. INTRODUÇÃO

 

O presente artigo tem por objetivo solucionar crise jurídica relativa ao vício administrativo no cumprimento da obrigação de fazer de sentença trabalhista, de sorte a se impor a necessidade de compreensão dos limites objetivos e temporais de eventuais decisões judiciais.

Resta claro que os percentuais reconhecidos nas sentenças trabalhistas, atinentes ao gatilho e à URP, não passavam de antecipações salariais que foram absorvidas pelo reajuste concedido na data-base subseqüente ao mês de referência.

Segundo, com supedâneo na Constituição, no Código de Processo Civil e em entendimento pacífico dos Tribunais pátrios, será levada ao tirocínio judicial a circunstância de que a sentença trabalhista não pode ter nenhuma repercussão no regime jurídico estatutário, pois este apresenta um quadro fático e jurídico diverso daquele para o qual a sentença foi elaborada, além de a Justiça do Trabalho ser absolutamente incompetente para definir situações jurídico-estatutárias de servidores públicos.

2. NATUREZA DE ANTECIPAÇÃO SALARIAL DOS ÍNDICES RECONHECIDOS EM SENTENÇA TRABALHISTA

                        Inicialmente, cumpre salientar que, de fato, o índice de 58,89% (soma dos percentuais dos planos Bresser e Verão), na maneira como foi implantado no âmbito da entidade, perdeu, ilicitamente, seu caráter de antecipação salarial, para adquirir contornos de uma verdadeira vantagem remuneratória destacada e eternizada, que passou a incidir sobre componentes vencimentais para os quais não estava previsto, uma vez que sequer existiam no contexto fático e jurídico examinado pelas decisões trabalhistas.

                        Contudo, esse pagamento ilegal e inconstitucional da parcela relativa ao índice sobredito, na forma de vantagem, que perdura, ilegitimamente, até os dias atuais, não encontra eco no que é costumeiramente certificado em decisões trabalhistas. É conseqüência unicamente de atos administrativos ilícitos, que impuseram à sentença, arbitrariamente, um alcance que não tem.

                        O art. 8º do Decreto-Lei nº 2.335/87 (preceito indicado na sentença judicial como fundamento legal da URP) não deixa dúvida quanto à sustentada feição de antecipação de reajuste salarial, já que preceituava, in verbis:

 

Art. 8º Fica assegurado aos trabalhadores, a título de antecipação, o reajuste mensal dos salários, inclusive do salário mínimo, pensões, proventos e remuneração em geral, em proporção idêntica à variação da Unidade de Referência de Preços (URP), excetuado o mês da data-base.

 

As demais normas incidentes na espécie corroboram essa tese. Confira-se (destaques acrescidos):

Decreto-Lei nº 2.284/86:

 

Art 20. Fica estabelecida a anualidade para os reajustes, pelo IPC, dos salários, vencimentos, soldos, pensões, proventos de aposentadoria e remuneração em geral, ressalvados os reajustes extraordinários instituídos no artigo subseqüente e mantidas as atuais datas-base. (Revogado pelo Decreto-lei nº 2.335, de 1987)

        Parágrafo único. O reajuste salarial na data-base será obrigatório até 60% (sessenta por cento) da variação acumulada do IPC, assegurada a negociação dos restantes 40% (quarenta por cento). (Revogado pelo Decreto-lei nº 2.335, de 1987)

        Art 21. Os salários, vencimentos, soldos, pensões, proventos e aposentadoria e remunerações serão reajustados automaticamente pela variação acumulada do IPC, toda vez que tal acumulação atingir 20% (vinte por cento) a partir da data da primeira negociação, dissídio ou data-base de reajuste. O reajuste automático será considerado antecipação salarial. (Revogado pelo Decreto-lei nº 2.335, de 1987)

 

 

Decreto-Lei nº 2.302/86:

 

Art. 1º Os salários, vencimentos, soldos, pensões, proventos de aposentadoria e remunerações serão reajustados, automaticamente, pela variação acumulada do IPC, toda vez que tal acumulação atingir 20% (vinte por cento), no curso do período de 12 (doze) meses, contados a partir da última data-base ocorrida após 28 de fevereiro de 1986.

Parágrafo único. O reajuste, de que trata este artigo, não excederá a 20% (vinte por cento), ainda que a variação acumulada do IPC, no período fixado, supere esse percentual, hipótese em que o excedente será computado nos cálculos subseqüentes.

Art. 2º Completado o período a que se refere o art. 1º e não atingida a acumulação de 20% (vinte por cento), far-se-á, na data-base, a revisão dos salários de acordo com os índices atingidos até essa ocasião, observado o disposto pelo artigo 20, parágrafo único, do Decreto-lei nº 2.284, de 10 de março de 1986.

Art. 3º A partir de cada data-base será iniciada a contagem progressiva visando à escala móvel dos salários.

Art. 4º O reajuste automático será considerado como antecipação na subseqüente revisão salarial.

 

Art. 5º Nos reajustes salariais procedidos na data-base e nos reajustes automáticos previstos no art. 1º, serão compensados, salvo acordo expresso em contrário, os aumentos salariais, espontâneos ou compulsórios, verificados no curso do período de 12 (doze) meses precedentes, exceto os resultantes de:

 

    a) término de aprendizagem;

    b) implemento de idade;

    c) promoção por antiguidade ou merecimento;

    d) transferência de cargo, função, estabelecimento ou localidade;

    e) equiparação salarial determinada por sentença transitada em julgado.

                        A leitura dos versículos legais acima não deixa suspeitas de que as URPs e “gatilhos”, por expressa disposição do texto legal, eram antecipações da data-base.  Procurava-se, mediante esses mecanismos, amenizar os efeitos da inflação alta sobre os trabalhadores, para que estes não tivessem que esperar um ano inteiro, até o advento da data-base posterior, pela reposição das perdas inflacionárias ocorridas no ano. Sobre isso, é interessante trazer à baila o texto da exposição de motivos contida no Decreto-Lei nº 2.302/86:

Considerando que a escala móvel de salários instituída pelo Decreto-lei nº 2.284, de 10 de março de 1986, é uma defesa dos assalariados contra os efeitos da inflação que se refletem sobre o seu poder aquisitivo;

 

Considerando que a manutenção do referido sistema de reajuste dos salários é medida de justiça social que se mostra aconselhável nesta oportunidade;

     Considerando a conveniência de explicitar o mecanismo de compensação das antecipações salariais concedidas pelos empregadores aos trabalhadores, previsto na Instrução Normativa nº I, do Egrégio Tribunal Superior do Trabalho,

                        Por conseguinte, a URP e o “gatilho” não eram institutos vocacionados a se incorporarem aos salários fixados na data-base, mas aumentos, de caráter efêmero, que deveriam ser absorvidos na data-base subseqüente ao mês a que se referiam. Na realidade, por esse prisma, sequer eram verdadeiros reajustes de salários.

                        Convém destacar o entendimento sedimentado na Súmula nº 302 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, assim enunciada:

Diferenças salariais. Planos econômicos. Limite Os reajustes salariais decorrentes dos chamados "gatilhos" e URPs, previstos legalmente como antecipação, são devidos tão-somente até a data-base de cada categoria.

Em conformidade com esse pensamento, em qualquer pacote econômico, seja no Plano Bresser/87 (URP de 26,06%), seja no Plano Verão/89 (URP de 26,05%), seja no Plano Collor (84,32%), os percentuais concedidos sempre mantiveram natureza de antecipação salarial, devendo ser compensados pelos posteriores reajustes.

Nessa direção, o Pretório Excelso, nos autos do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n.º 184853, reforçou a impossibilidade de reposição de tal antecipação salarial, conforme ementa a seguir, in verbis, com os nossos destaques. Nesse mesmo sentido o MS n. 21.216/DF, RE 190986/PA, ADI 2951/PE, RE 216556, RE 184.105 e outros:

EMENTA: TRABALHISTA. ACÓRDÃO QUE AFASTOU O DIREITO DE REAJUSTE SALARIAL COM BASE NO IPC DE ABRIL/90 EM PERCENTUAL DE 84,32%; NA URP DE FEVEREIRO DE 1989, EM PERCENTUAL DE 26,06%; E NO IPC DE JUNHO DE 1987 (PLANO BRESSER), COM BASE EM 26,05%. Matérias já pacificadas no STF no sentido de que não cabe a garantia prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, para a invocação dos aludidos reajustes salariais. Agravo regimental improvido (AI 184853 AgR/MG – Ag. Reg. no Agravo de Instrumento, DJ 22.11.1996, p. 45695)

Mais recentemente, decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes proferida no âmbito do MS 25.797 reafirmou a posição desta Excelsa Corte no sentido de que as parcelas relativas à URP possuem natureza de mera antecipação salarial, impossibilitando a sua incorporação nos vencimentos e proventos dos servidores, verbis:

DECISÃO: (...) No que concerne ao reajuste de 26,05% (Plano Verão) relativo à URP de fevereiro de 1989, reiteradas decisões desta Corte demonstram tratar-se de matéria infraconstitucional, também não consistindo em direito adquirido. Nesse sentido AI no 184.853 AgR-MG, Rel. Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, DJ de 22/11/1996, verbis: "EMENTA: TRABALHISTA. ACÓRDÃO QUE AFASTOU O DIREITO DE REAJUSTE SALARIAL COM BASE NO IPC DE ABRIL/90 EM PERCENTUAL DE 84, 32%; NA URP DE FEVEREIRO DE 1989, EM PERCENTUAL DE 26,06%; E NO IPC DE JUNHO DE 1987 (PLANO BRESSER), COM BASE EM 26,05%. Matérias já pacificadas no STF no sentido de que não cabe a garantia prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, para a invocação dos aludidos reajustes salariais. Agravo regimental improvido."(AI no 184.853 AgR-MG, Rel. Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, DJ de 22/11/1996) À primeira vista, o valor pleiteado não deve ser incorporado à respectiva pensão como alega a impetrante. Tal percentual possuiria, quando muito, natureza de mera antecipação salarial. No caso concreto, o indeferimento da providência cautelar quanto ao percentual de 26,05% (Plano Verão), mesmo que referente a verbas de natureza alimentar, não causaria a ineficácia do mandamus. Nesse mesmo sentido, veja-se a decisão monocrática proferida no MS no 25.432-DF, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 15/07/2005. Ademais, é pacífico neste Supremo Tribunal Federal que vantagem salarial obtida quando os servidores eram submetidos ainda ao regime celetista não estende seus efeitos a período posterior ao enquadramento no regime jurídico único, ressalvada a irredutibilidade de salários. Ressalvado melhor entendimento quando do julgamento do mérito, não vislumbro a presença dos requisitos necessários à concessão da liminar (fumus boni juris e periculum in mora). Nestes termos, indefiro o pedido de medida liminar. Dê-se vista ao Procurador-Geral da República. Publique-se. Brasília, 20 de março de 2006. Ministro GILMAR MENDES Relator”.

                        O Tribunal Superior do Trabalho, aliás, tem um importante precedente perfeitamente aplicável à hipótese sub judice:

Embargos em Recurso de Revista TST-E-RR 88034/93-8:

 

"No silêncio da sentença exeqüenda a propósito do limite temporal do reajuste com base na URP, impõe-se a limitação à data-base seguinte, nos termos do enunciado 322/TST, tendo em vista que o acerto na data-base decorre de disposição de ordem pública inserida na própria lei salarial e calcada no princípio do non bis in idem. Trata-se, assim, de norma imperativa e cogente, de inderrogabilidade absoluta, sob pena de comprometimento da -política salarial- estabelecida. Recurso de embargos de que não se conhece por ofensa ao art. 5º, inciso XXXVI, da Carta Magna (coisa julgada)." [grifado]

Dadas as razões expostas, não pode subsistir, consequentemente, qualquer vantagem a título dos 26,05% e 26,06% em rubrica destacada na composição remuneratória..

Sobressai a inconstitucionalidade e a ilegalidade do recebimento por tantos anos, de uma mera antecipação salarial como vantagem permanente incorporada aos seus vencimentos, em virtude de atos administrativos nulos de pleno direito, porquanto, sobre ferirem o princípio da legalidade, extravasam os limites objetivos da coisa julgada trabalhista. Entender de modo diferente é contrariar o disposto no art. 468 do CPC, que reza:

Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força nos limites da lide e das questões decididas.

 

A propósito, o Tribunal de Contas da União, em exame abrangente, verificou a repetição dessa ilegalidade no cumprimento de sentenças trabalhistas que reconheceram direitos a vantagens oriundas de planos econômicos. Conforme se pode aferir no Acórdão 2161/2005 os pagamentos estavam sendo feitos por rubricas parametrizadas, incidentes sobre todas parcelas salariais do servidor, em total descompasso com a natureza dos índices reconhecidos.

O modo normal de funcionamento da incidência de um reajuste ou antecipação salarial é a incidência de uma só vez, conforme preconizado pelo TCU. Deve-se registrar que sentença judicial não tem a virtualidade de alterar a natureza do ato administrativo ou de suas conseqüências jurídicas, consoante, mutatis mutandis, as ponderações do ilustre Ministro Sepúlveda Pertence, Relator do MS 22.658, lançadas nestes termos:

“O ato administrativo praticado em cumprimento de um mandado de segurança, deferido ao interessado, não muda, com isso, sua natureza, nem os limites da eficácia que teria tido, se praticado pela autoridade, independentemente da sentença que o determinou”.

Por derradeiro, importa referir que o Tribunal de Contas da União tem, em casos análogos, determinado a cessação dos pagamentos de percentuais relativos a planos econômicos, por sua inteira absorção nos reajustes subseqüentes.

Além da tese anterior, é incontestável a ineficácia da coisa julgada trabalhista vertente para as prestações posteriores à entrada em vigor da Lei nº 8.112, de 12 de dezembro de 1990, e a consequente transposição de empregados para o regime estatutário.

Isso porque as circunstâncias de fato e de direito para as quais uma sentença trabalhista é prolatada são distintas daquelas inauguradas com a sobrevinda do RJU. Realmente, a alteração do regime celetista para o regime estatutário fulminou o substrato fático fundamental para um pedido com essa causa de pedir, que foi responsável inclusive pela definição da competência da Justiça Obreira: a relação de emprego.

Impende ressaltar que o deixar de ser empregado público para ser servidor público estatutário não foi, de maneira alguma, simples modificação de nomenclatura. Implicou, indubitavelmente, mudanças jurídicas ponderosas: a) novo regime previdenciário; b) novo regime disciplinar; c) direitos, garantias, vantagens e deveres exorbitantes do regime celetista; d) estabilidade; e) novo regime remuneratório etc. Ou seja, o RJU impôs aos Réus o regime jurídico-administrativo.

A diversidade entre os dois regimes (o antigo contratual e o novo institucional) é tão palpável que autores do calibre de Celso Antônio Bandeira de Mello sustentam que o legislador não é livre para adotar indiferentemente um ou outro, mesmo após a Emenda Constitucional nº 19/98. Para esse ilustre estudioso, cada um tem seu âmbito de aplicação, sendo que o regime estatutário seria o normal, o corrente. Vale à pena conferir algumas passagens de suas importantes lições:

“Finalmente, o regime normal dos servidores públicos teria mesmo de ser o estatutário, pois este (ao contrário do regime trabalhista) é concebido para atender peculiaridades de um vínculo no qual não estão em causa tão-só interesses empregatícios, mas onde avultam interesses básicos, visto que os servidores públicos são os próprios instrumentos da atuação do Estado.

Tal regime, atributivo de proteções peculiares aos providos em cargo público, almeja, para benefício de uma ação impessoal do Estado – o que é uma garantia para todos os administrados -, ensejar aos servidores condições propícias a um desempenho técnico isento, imparcial, obediente tão-só a diretrizes político-administrativas inspiradas no interesse público, embargando, destarte, o perigo de que, por falta de segurança, os agentes administrativos possam ser manejados pelos transitórios governantes em proveito de objetivos pessoais, sectários ou político-partidários – que é, notoriamente, a inclinação habitual dos que ocupam a direção superior do País. A estabilidade para os concursados, após três anos de exercício, a reintegração (quando a demissão haja sido ilegal), a disponibilidade remunerada (no caso de extinção do cargo) e a peculiar aposentadoria que se lhes defere consistem em benefícios outorgados aos titulares de cargos, mas não para o regalo destes e sim para propiciar, em favor do interesse público e dos administrados, uma atuação impessoal do Poder Público.”[1]

As distinções entre os regimes trabalhista e estatutário também foram reconhecidas quando o Min. Marco Aurélio deferiu liminar na ADI 2310, suspendendo disposições da Lei nº 9.986/00, que previa o sistema de empregos públicos para os servidores das Agências Reguladoras.

No caso presente, quando a Justiça do Trabalho julgou a reclamação trabalhista, intentada em 29/11/1990, decidiu com base em cenário fático e jurídico que envolvia benefícios decorrentes de contratos de trabalho; abrangendo categorias estranhas e incompatíveis com o regime de cargos públicos e com o vínculo de natureza jurídico-estatutário que os ora Demandados passaram a integrar com a entrada em vigor do Regime Jurídico Único (RJU).

O art. 469, I, do CPC prescreve que os motivos não fazem coisa julgada, mas são importantes para apreender o seu alcance. Na hipótese concreta, a motivação da sentença trabalhista contém expressa menção a empregado, contrato de trabalho e salários, denotando que os limites da lide e as questões decidas (art. 468 do CPC) ficaram confinados ao período regido pela CLT.

Portanto, aqui, igualmente, por simples interpretação da sentença prolatada, se vê que os efeitos da condenação só poderiam se referir ao período anterior ao advento do regime jurídico único, ou seja, até 11.12.1990. Novamente, está nítida a ausência de afronta à coisa julgada material trabalhista no objeto litigioso da causa ora intentada, pois os limites objetivos e temporais daquela não abrangem o estado de fato e de direito posterior à vigência da Lei nº 8.112/90. Estes últimos, componentes do regime jurídico-administrativo, não integraram os pressupostos e elementos constitutivos da situação julgada.

A conclusão aventada encontra amparo ainda (além do art. 468) no art. 471, I, do CPC, que prescreve, in verbis:

Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativamente à mesma lide, salvo:

I – se, tratando-se de relação continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;

Apesar de as regras de direito mencionadas já deixarem clara a ineficácia da coisa julgada trabalhista no regime estatutário, o maior óbice para que o comando da decisão da Justiça Obreira vincule situações depois da transposição dos demandados para o regime estatutário está na Constituição Federal, em razão da qual a aludida justiça especializada é absolutamente incompetente para conhecer e julgar demandas relativas às relações jurídicas entre os servidores públicos estatutários e o Poder Público.

Com efeito, o art. 114 da Constituição da República não atribui à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar as causas relativas a relações jurídico-institucionais de servidores públicos.

Em razão da incompetência absoluta da Justiça do Trabalho para tanto, nenhuma situação jurídica relativa ao regime jurídico-estatutário dos servidores públicos pode ser definida a partir de preceito contido em sentença trabalhista, sob pena de usurpação da competência da Justiça Federal prevista no art. 109 da CR/88.

Essa questão hoje está pacificada no âmbito do Colendo Supremo Tribunal Federal, no Acórdão abaixo (já citado no Tópico IV):

                                                                                  

EMENTA: I. Embargos de declaração convertidos em agravo regimental. II. Justiça Federal: competência para o exame dos reflexos de decisão trabalhista no período posterior à transformação do regime jurídico celetista para o estatutário. Precedentes. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal que a mudança do regime jurídico celetista para o estatutário acarreta a extinção do contrato de trabalho. 2. A eventual extensão dos efeitos de decisão proferida pela Justiça do Trabalho - que é referente a questões do regime celetista - para período posterior à vigência do regime estatutário, onde não mais há relação de trabalho regida pela CLT, deve ser examinada pela Justiça Federal. 3. A competência da Justiça do Trabalho se restringe à análise do direito à percepção de vantagens trabalhistas no período anterior ao advento do regime jurídico único. III. Agravo regimental: desprovimento.

(STF, 1ª T., AI-AgR-ED 609855/RN, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 31.08.2007) – VIDE INTEIRO TEOR NO DOC. 15

 

Na realidade, não foi a primeira vez que a Corte Suprema se pronunciou sobre a questão. Antes já havia assentado que tal limitação se estende às obrigações de trato sucessivo, conforme o julgado abaixo:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. SERVIDOR PÚBLICO QUE MANTEVE VÍNCULO EMPREGATÍCIO, NOS MOLDES DA CLT, ANTERIORMENTE À PASSAGEM PARA O REGIME JURÍDICO ÚNICO, COM A EDIÇÃO DA LEI Nº 8.112/90. RECONHECIMENTO DE DIFERENÇAS SALARIAIS DECORRENTES DESSE VÍNCULO. EFEITOS DA SENTENÇA TRABALHISTA LIMITADOS PELO ADVENTO DO REGIME ESTATUTÁRIO. A superveniência da Lei nº 8.112/90 estanca a competência da Justiça do Trabalho para dirimir questões afetas ao vínculo de emprego anteriormente mantido com a Administração, ainda que se cuide do reconhecimento de parcela de trato sucessivo, nascida desse contrato, dada a impossibilidade de a Justiça Especial vir a executar o adimplemento de obrigação que se torne devida já sob a égide do regime estatutário. Logo, os efeitos da sentença trabalhista têm por limite temporal o advento do referido diploma. Agravo regimental desprovido.(STF, 1ª T., AgR 330835, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 11.02.2005)

 

Essa posição que se consolidou no Supremo Tribunal Federal adquiriu, recentemente, bastante expressividade em decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes, que limitou a condenação de decisão trabalhista em caso análogo, por considerar que sua extensão ao regime jurídico estatutário violaria o art. 114 da Constituição e a decisão prolatada na ADI 3.395-DF, assim ementada:

EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Competência. Justiça do Trabalho. Incompetência reconhecida. Causas entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Ações que não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência da Justiça Comum. Interpretação do art. 114, inc. I, da CF, introduzido pela EC 45/2004. Precedentes. Liminar deferida para excluir outra interpretação. O disposto no art. 114, I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária.

Convém, agora, transcrever a referida decisão do Min. Gilmar Mendes na Reclamação nº 5026/AM, publicada no DJ de 19.09.2007 (pp. 00036) (destaques acrescentados):

“Em análise sumária da questão apresentada pela União, entendo presentes os requisitos para a concessão da medida liminar. Nesse primeiro exame, parece-me plausível a tese de que a decisão quanto à incorporação, aos vencimentos dos interessados, dos valores relativos aos Planos Bresser, Verão e URP, referentes ao período de abril de 1992 a agosto de 1998, portanto, em período no qual os interessados já eram regidos pela Lei n° 8.112/90, afronta a decisão desta Corte na ADI n° 3.395. Como ressaltado pela reclamante, existem precedentes das duas Turmas desta Corte no sentido de que a competência da Justiça do Trabalho limita-se à data da instituição do Regime Jurídico Único, com a Lei n° 8.112/90, ainda que se cuide do reconhecimento de parcela de trato sucessivo: "EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. SERVIDOR PÚBLICO QUE MANTEVE VÍNCULO EMPREGATÍCIO, NOS MOLDES DA CLT, ANTERIORMENTE À PASSAGEM PARA O REGIME JURÍDICO ÚNICO, COM A EDIÇÃO DA LEI Nº 8.112/90. RECONHECIMENTO DE DIFERENÇAS SALARIAIS DECORRENTES DESSE VÍNCULO. EFEITOS DA SENTENÇA TRABALHISTA LIMITADOS PELO ADVENTO DO REGIME ESTATUTÁRIO. A superveniência da Lei nº 8.112/90 estanca a competência da Justiça do Trabalho para dirimir questões afetas ao vínculo de emprego anteriormente mantido com a Administração, ainda que se cuide do reconhecimento de parcela de trato sucessivo, nascida desse contrato, dada a impossibilidade de a Justiça Especial vir a executar o adimplemento de obrigação que se torne devida já sob a égide do regime estatutário. Logo, os efeitos da sentença trabalhista têm por limite temporal o advento do referido diploma. Agravo regimental desprovido." (AgR-RE n° 330.835/RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 11.2.2005) "EMENTA: COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. SERVIDOR PÚBLICO. VÍNCULO DE EMPREGO REGIDO PELA CLT EM PERÍODO ANTERIOR À INSTITUIÇÃO DO REGIME JURÍDICO ÚNICO. LEI 8.112/1990. Compete à Justiça do Trabalho dirimir as questões relativas ao vínculo empregatício de servidor público em período anterior à instituição do Regime Jurídico Único. A discussão de questões surgidas após o advento da Lei 8.112, de 11.12.1990, mesmo que acerca dos efeitos de sentença trabalhista, não são de competência da Justiça do Trabalho. Agravo regimental a que se nega provimento." (AI-AgR n° 403.342, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 3.2.2006) A presença do periculum in mora é evidente, tendo em vista o valor envolvido (R$ 5.640.316,14), para o qual não há previsão orçamentária, e a dificuldade de posterior reversão desse montante aos cofres públicos. Ante o exposto, ressalvado melhor juízo quando do julgamento do mérito, defiro a medida liminar para suspender os efeitos da decisão reclamada, até decisão final nesta reclamação.”

4. CONCLUSÃO

Ante o exposto, é possível concluir de modo inequívoco que compete à Justiça do Trabalho julgar pedidos de direitos e vantagens previstos na legislação trabalhista referente a período anterior à Lei nº 8.112/90, mesmo que a ação tenha sido ajuizada após a edição da referida lei. A superveniência de regime estatutário em substituição ao celetista, mesmo após a sentença, limita a execução ao período celetista.

Desse modo, tanto por terem sido exauridos os efeitos da sentença trabalhista, que reconheceu direito a meras antecipações de reajustes salariais, como pelo fato de tal julgado não produzir efeitos sob a vigência do regime jurídico estatutário, em face dos arts. 462, 468, 471, I, do CPC e do art. 114 da Constituição Federal, aliado à decisão vinculante prolatada na ADI nº 3.395 pelo Supremo Tribunal Federal.

  

[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 246/247.

 

 

Elaborado em maio/2014

 

Como citar o texto:

SOUSA, André Lopes de. .A Natureza De Antecipação Salarial Dos Índices Reconhecidos Em Sentença Trabalhista. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 22, nº 1187. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/3162/a-natureza-antecipacao-salarial-indices-reconhecidos-sentenca-trabalhista. Acesso em 16 ago. 2014.

Importante:

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