Resumo

Este trabalho objetiva a compreensão do instituto da coisa julgada como garantia fundamental não apenas do contribuinte, mas também da União, a fim de definir se ela subsiste frente à orientação administrativa posterior favorável ao contribuinte quando a relação jurídica não é de trato sucessivo.

Palavras-chave: Coisa julgada. Relação jurídica de trato não sucessivo. Matéria tributária. Orientação administrativa posterior.

1 INTRODUÇÃO

                        A problemática do presente artigo diz respeito à seguinte questão: tendo em vista a existência de orientação administrativa da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – PGFN e da Advocacia-Geral da União – AGU que, em tese, seja favorável ao contribuinte, deve ou não haver a subsistência de coisa julgada material em favor da União, em uma relação jurídico-tributária de trato não sucessivo, que se formou anteriormente à determinada orientação?

2 COISA JULGADA: GARANTIA CONSTITUCIONAL[i]

                        Apesar da literalidade do art. 467[ii] do Código de Processo Civil, existem na doutrina três correntes quanto à natureza jurídica da coisa julgada, a saber: i) a coisa julgada é efeito da sentença; ii) a coisa julgada é a qualidade dos efeitos da sentença, ou seja, sua imutabilidade; iii) a coisa julgada é uma situação jurídica do conteúdo da sentença.

                        A crítica que se faz à primeira corrente é que a imutabilidade da sentença não lhe é conatural, considerando que somente ocorre quando o referido ato judicial não mais se sujeita a recurso, sendo esse um critério de escolha política do legislador.

                        Também não se pode sustentar, com coerência, que a coisa julgada é a qualidade de imutabilidade dos efeitos da sentença, uma vez que esses efeitos podem cessar, como na hipótese em que são modificados por vontade das partes, como na renúncia a um direito nela reconhecido, por exemplo.

                        Entendo que a terceira corrente, defendida por Barbosa Moreira, é a que compreende a coisa julgada com maior propriedade. Como os efeitos da sentença podem ser modificados ao longo do tempo, é evidente que a coisa julgada acoberta, na verdade, o conteúdo do ato judicial.

                        Desse modo, é perfeitamente possível que os efeitos de uma decisão judicial acobertada pela coisa soberanamente julgada (aquela que se forma pelo transcurso do prazo decadencial da ação rescisória) cessem, de modo a ensejar um novo regime jurídico entre as partes envolvidas acerca de determinado objeto. Assim sendo, a cessação ou modificação desses efeitos podem advir: i) das alterações fático-jurídicas em relações de trato sucessivo; ii) de ato unilateral ou bilateral das partes envolvidas (renúncia ou novação, por exemplo); e iii) retroação dos efeitos da lei.

                        No entanto, como a problemática envolve relações de trato não sucessivo, de pronto já é possível descartar a análise da questão sob a ótica das alterações fático-jurídicas em relações continuativas, restando, portanto, duas possibilidades de cessação dos efeitos da coisa julgada: ato unilateral ou bilateral das partes envolvidas; e retroação dos efeitos da lei.

                        Em relação à primeira possibilidade remanescente, sabe-se que os bens e direitos titularizados pela entidade pública são indisponíveis, não sendo, em regra, admitida a transação. Há, contudo, exceções. A Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997, autoriza a realização de acordos pelos membros da Advocacia-Geral da União, desde que previamente autorizados pelas autoridades que menciona, entre elas o Advogado-Geral da União.

                        Não há, até o presente momento, lei que autorize a celebração de transação entre as partes, ou seja, por ato jurídico bilateral, para a modificação de decisões judiciais já transitadas em julgado e acobertadas pela coisa julgada. A transação, quando possível, refere-se a processos pendentes.

                        Não havendo espaço para a celebração de atos jurídicos bilaterais, cabe avaliar se há permissivo legal para atos jurídicos unilaterais, por parte da Administração, que possam sobrepujar a coisa julgada. A Lei nº 10.522, de 2002, dispõe o seguinte:

            Art. 19. Fica a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional autorizada a não contestar, a não interpor recurso ou a desistir do que tenha sido interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese de a decisão versar sobre:

I - matérias de que trata o art. 18;

II - matérias que, em virtude de jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, ou do Superior Tribunal de Justiça, sejam objeto de ato declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda.

            § 1o Nas matérias de que trata este artigo, o Procurador da Fazenda Nacional que atuar no feito deverá, expressamente, reconhecer a procedência do pedido, quando citado para apresentar resposta, hipótese em que não haverá condenação em honorários, ou manifestar o seu desinteresse em recorrer, quando intimado da decisão judicial.

§ 2o A sentença, ocorrendo a hipótese do § 1o, não se subordinará ao duplo grau de jurisdição obrigatório.

§ 3o Encontrando-se o processo no Tribunal, poderá o relator da remessa negar-lhe seguimento, desde que, intimado o Procurador da Fazenda Nacional, haja manifestação de desinteresse.

                        Há entendimento interno do órgão jurídico de representação da Fazenda Nacional de que os atos declaratórios daquele órgão editados com fundamento nos citados dispositivos legais “lançam seus efeitos igualmente sobre a esfera da cobrança administrativa do crédito”. Isso porque não faria sentido proceder à sua cobrança e, posteriormente, sofrer impugnação judicial pelo contribuinte, a qual, em razão do ato de dispensa, não será contestada. Do contrário, haveria a potencialização dos prejuízos financeiros e institucionais do órgão fazendário, com a condenação em honorários de sucumbência e o comprometimento da credibilidade e da legitimidade da Procuradoria perante o Poder Judiciário.

                        Em relação ao ato declaratório, a Fazenda Nacional, quando da sua edição, não anui à tese do contribuinte. A PGFN apenas atesta, por meio de parecer, a consolidação jurisprudencial sobre o tema, reconhecendo a inviabilidade da insistência de determinada tese perante o Poder Judiciário. Com fundamento no parecer, a PGFN edita o ato, que passa a vincular a atuação de seus membros e, se também aprovado pelo Ministro da Fazenda, passa a vincular a atuação de todos os órgãos pertencentes à estrutura do Ministério da Fazenda, incluindo a Receita Federal do Brasil.

                        Entretanto, é verdade que a renúncia a direitos processuais (de contestar e de recorrer) acaba por ensejar a formação de coisa julgada material em desfavor da União (Fazenda Nacional). Mas isso é uma consequência indireta do ato declaratório que, em si, não anui à tese do contribuinte.

                        Além disso, a autorização do ato declaratório, que encontra seu lastro na Lei nº 10.522, de 2002, restringe-se à renúncia aos direitos processuais de contestar e de recorrer, ou seja, restringe-se a operar efeitos naqueles processos ainda em trâmite. Persiste, portanto, a ausência de autorização, tanto na lei, quanto no ato, para a renúncia unilateral à coisa julgada favorável à União (Fazenda Nacional). A tentativa de interpretar extensivamente e extrair da Lei nº 10.522, de 2002, e dos atos declaratórios com base nela editados, a possibilidade de se renunciar a coisa julgada é violar a sua teleologia. Sim, pois se não há anuência da tese do contribuinte por parte da União (Fazenda Nacional) e se a justificativa do ato reside na impossibilidade de sucesso da tese fazendária perante os Tribunais, qual seria a justificativa de se admitir a renúncia da coisa julgada em favor do Fisco com fundamento em tais atos declaratórios?

                        Discordo de uma justificativa fundada em princípios, como o da isonomia, ou em equidade, como a justiça fiscal. Em primeiro lugar, a justiça[iii] é o valor jurídico buscado pelo processo durante a sua tramitação. Após o trânsito em julgado da decisão, que é o ato jurídico judicial alvo do processo, deixa-se de lado o valor ‘justiça’ e passa-se a resguardar o valor ‘segurança jurídica’[iv].

                        Ademais, as entidades jurídicas de direito público, ao contrário do que prega a visão tradicional, também são titulares de direitos e garantias fundamentais. Os direitos e garantias fundamentais não se justificam apenas pelo princípio da dignidade da pessoa humana (direito à vida, liberdade etc), mas também pela sujeição de seu titular a um Poder estatal. O Juiz é um Poder estatal e a União (Fazenda Nacional) quando em juízo encontra-se sujeita a esse poder. Assim, deve necessariamente ser titular de alguns dos direitos e garantias fundamentais, mesmo que de maneira mitigada, como o direito à propriedade, ao devido processo legal, e às garantias como a da segurança jurídica, do respeito ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.

                        Em segundo lugar, havendo regras, não devem ser aplicados princípios, como o da isonomia, salvo se a regra for declarada inconstitucional, com fundamento em um princípio ou em uma regra constitucional. Não é demais lembrar as lições de Humberto Ávila[v] de que regras e princípios são espécies normativas e de que não há hierarquia entre essas espécies. Havendo a incidência normativa das regras, pela subsunção, não há espaço para a ponderação de princípios. Do contrário, a pretexto de se aplicar justiça, inobserva-se a segurança jurídica. Justiça e segurança jurídica são dois valores protegidos constitucionalmente, e não há motivo para um prevalecer soberanamente ao outro. No processo, o que ocorre é a preponderância de um ou de outro a depender do momento processual. Se o sistema jurídico permitisse a aplicação direta de princípios, mesmo ante a existência de regras específicas, tudo seria possível, tudo seria justificável. No âmbito processual, isso é reconhecido no art. 126[vi] do Código de Processo Civil, no sentido de que somente se deve recorrer aos princípios e à ponderação nos casos em que ausentes as regras e a subsunção.

                        Caso o contribuinte, com a coisa julgada contrária a si, ainda esteja insatisfeito, deve se socorrer do mecanismo processual adequado: ação rescisória, caso entenda configuradas as hipóteses do art. 485 do CPC. Não sendo isso possível, para os casos em que a relação jurídica de direito material não seja de natureza continuada, não há o que se fazer.

                        Por fim, cabe analisar a hipótese de desconstituição da coisa julgada pela retroação da lei. Evidentemente que para o contribuinte, a garantia da coisa julgada não pode ser atingida pela retroação da lei, do contrário seria ela inconstitucional. Mas para o ente político, embora seja ele titular de direitos e garantias fundamentais, entendo que há possibilidade de mitigação dessa garantia. A lei, em tese, não poderia estabelecer, sob pena de inconstitucionalidade, que as decisões favoráveis ao ente público, mesmo que transitadas em julgado, não se revestiriam da coisa julgada. Entretanto, poderia, ao meu ver sem o vício da inconstitucionalidade, retroagir de maneira a tornar sem efeito coisas julgadas já formadas e em matérias específicas, pois estaríamos, na verdade, diante de uma hipótese de renúncia à coisa julgada pelo ente político por meio de seu Poder Legislativo. Não caberia ao advogado público sustentar em juízo a inconstitucionalidade da lei, mas tão-somente adotar a vontade legislativa.

3 CONCLUSÃO

                        Pelo exposto, entendo pela subsistência da coisa julgada em favor da União (Fazenda Nacional), mesmo diante das orientações administrativas favoráveis, em tese, ao contribuinte. As orientações administrativas somente devem operar efeitos a partir de sua edição e para as hipóteses que especifica.

4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 4ª ed, Salvador: Ed. Jus Podivm, 2009, vol. 2.

ELALI, André; MAGALHÃES PEIXOTO, Marcelo. Coisa julgada em matéria tributária e sua possível relativização na ordem jurídica: colisão de princípios? In: Coisa julgada tributária. São Paulo: MP Editora, 2005.

CARVALHO, Cristiano; BICCA MACHADO, Rafael. Justiça ou segurança: crítica ao movimento de relativização da coisa julgada. In: Coisa julgada tributária. São Paulo: MP Editora, 2005.

VALVERDE, Gustavo Sampaio. Coisa julgada em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2004.

  

[i] [i] “A coisa julgada é instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, assegurado em todo Estado Democrático de Direito, encontrando consagração expressa, em nosso ordenamento, no art. 5º, XXXVI, CF. Garante ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário.” (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 4ª ed, Salvador: Ed. Jus Podivm, 2009, vol. 2, p. 407-408.

[ii] Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

[iii] “O valor justiça encontra-se positivado através de princípios fundantes como a isonomia e o devido processo legal, que também se relacionam com a segurança jurídica. Contudo, a sua operatividade só se dá, dentre outros, por meio de limites objetivos tais como o contraditório, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.” (CARVALHO, Cristiano; BICCA MACHADO, Rafael. Justiça ou segurança: crítica ao movimento de relativização da coisa julgada. In: Coisa julgada tributária. São Paulo: MP Editora, 2005, p. 61)

[iv] “Já por coisa julgada tem-se a ideia de uma decisão, contra a qual não cabe mais recurso, possuindo, pois, o atributo da irretratabilidade. Trata-se de expressão originada do latim res judicata, cujo intuito sempre foi o de evitar que uma única matéria comportasse vários julgamentos. Assim, por meio da coisa julgada, pretende-se tutelar o valor segurança jurídica, relacionado à confiabilidade do sistema jurídico.” (ELALI, André; MAGALHÃES PEIXOTO, Marcelo. Coisa julgada em matéria tributária e sua possível relativização na ordem jurídica: colisão de princípios? In: Coisa julgada tributária. São Paulo: MP Editora, 2005, p. 17).

“A coisa julgada tem um objetivo claro: implementar segurança jurídica no sistema, reforçando a sua redundância. E as auto-reflexões do sistema novamente confirmam essa assertiva. Enrico Tullio Liebman, por exemplo, anota que ‘motivos bem conhecidos de política legislativa querem que, em certo momento, se ponha fim à controvérsia’, daí que ‘a coisa julgada torna impossível ou inoperante a demonstração da injustiça da sentença, a saber, torna incondicionada a sua eficácia, e garante assim a segurança, a permanência e a imutabilidade dos efeitos produzidos’. Moacyr Amaral Santos afirma que a procura da justiça ‘não pode ser indefinida, mas deve ter um limite, por uma exigência de ordem pública, qual seja a estabilidade dos direitos, que inexistiria se não houvesse um termo além do qual a sentença se tornasse imutável’. Por isso, acrescenta o ilustre jurista, ‘não houvesse esse limite, além do qual não se possa arguir a injustiça da sentença, jamais se chegaria à certeza do direito e à segurança no gozo dos bens da vida’. É nesse mesmo sentido que Araken de Assis considera a ‘coisa julgada como instituto vocacionado antes à segurança jurídica do que a justiça’, na medida em que ‘visa manter a segurança e estabilidade da resposta do órgão jurisdicional ao pedido formulado pelo autor’. E mais. O hoje ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Sydney Sanches, afirmou, com apoio na lição de Gustav Radbruch, que ‘o instituto da coisa julgada e sua intangibilidade resultam da necessidade humana de paz e segurança. ‘As injustiças que possa acarretar determinado mecanismo de realização do Direito vêm a ser apenas o preço do bem-estar e da tranquilidade gerais’.” (VALVERDE, Gustavo Sampaio. Coisa julgada em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 123)

[v] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

[vi] Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.

 

 

Elaborado em novembro/2014

 

Como citar o texto:

SILVA, Vinicius Campos..Subsistência Da Coisa Julgada Favorável À União Frente À Orientação Administrativa Posterior Favorável Ao Contribuinte Em Relações Jurídicas De Trato Não Sucessivo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1218. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/3356/subsistencia-coisa-julgada-favoravel-uniao-frente-orientacao-administrativa-posterior-favoravel-ao-contribuinte-relacoes-juridicas-trato-nao-sucessivo. Acesso em 16 dez. 2014.

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