Resumo

 

A sociedade é o habitat do ser humano. Entretanto, se a cada um fosse autorizado a fazer aquilo que lhe aprouvesse, a vida em sociedade seria impossível. Com fim de regular a vida social foi criado o Direito. Para aqueles fatos que interessam ao direito e geraram conflitos entre os homens foi criada a jurisdição. Dentro destes conflitos, a Constituição emerge com os direitos fundamentais da igualdade, de justiça e do devido processo legal. No controle de constitucionalidade do direito brasileiro o Poder Judiciário atua no controle difuso ou concentrado. No controle concentrado, a decisão do Poder Judiciário tem efeito erga omnes; no controle difuso o efeito da decisão é limitada entre as partes. Para as decisões do Poder Judiciário gerarem efeito erga omnes no controle difuso é preciso aguardar o Senado suspender a execução da lei. Ocorre que todas as decisões judiciais são um ato de comunicação geral à sociedade, eis que a sociedade é formada por pessoas livres e iguais. A ideia de que uma decisão que julga uma lei inconstitucional vincula apenas as partes é injustificável dentro da coerência de um sistema. Assim agindo, torna o sistema jurídico enigmático, mais condizente com o direito antigo e não com um estado democrático de direito. Portanto, o Poder Judiciário poderá dar efeito erga omnes nas decisões do controle difuso, sem aguardar pelo ato da suspensão da execução das leis pelo Senado toda a vez que a causa envolver interesse público, coerência do sistema e o direito fundamental à igualdade.

Abstract

 

The society is the habitat of the human being. However, if each one would be allowed to do what they want, life in society would be impossible. With the goal to regulate the social life was created the Law. For some facts that interests the Law and generated conflicts was created the jurisdiction. Inside these conflicts, the Constitution emerges with fundamental rights of equality, justice and due process of law. The control of constitutionality in Brazilian legal system can be made in the concentrated control or in difuse control. In the concentrated control the decision reaches only erga omnes. However when the Judicial Power acts in difuse control the decision reaches only the parts envolved in the process. In Brazilian judicial system difuse control erga omnes effect only will be reached after Senate suspends the execution of the law declared inconstitucional. However, every judicial decision is a general act of communication for the society which is formed by equal and free people. The idea that a judicial decision which declares inconstitucional a law only reaches only the parts envolved in the process is injustifiable inside the consistency of  the judicial system. Acting in this way become the system enigmatic, more coherent with the ancient law and not commited with the democracy. Thus, the Judicial Power can give erga omnes effect in the decisions when acting in difuse control of constitutionality without waits for the Senate suspends the execution of the law everytime the process envolves public interest, coherence of the system and the constitutional right for equality.  

Introdução

A vida do homem em sociedade precisa ser regulada pela comunidade com o objetivo de que essa convivência seja a mais harmônica possível. Ao longo de sua vida o ser humano adquire uma série de aptidões para a sobrevivência na comunidade. É através da aquisição destas aptidões que o homem sobreviverá dentro da sociedade sendo que algumas delas adquirirá espontaneamente, outras de forma consciente, até contra sua vontade, pelos ensinamentos que a comunidade concede ou impõe.

Considerando que o ambiente social é o habitat do homem por natureza, ele é influenciado em sua psique desde seu nascimento. A partir do seu nascimento o homem começa a ter moldadas suas potencialidades. No desenvolvimento de sua existência do homem são ampliados gradativamente seus círculos sociais e aumenta proporcionalmente a influência da sociedade em sua formação. Assim, consequentemente crescem os condicionantes no desenvolvimento de sua formação, conforme os padrões da sociedade.

Neste sentido, há diversos processos de adaptação social, tal como a religião, a moral, a política, a educação, a economia, a ciência, a moda, a etiqueta, o direito, que são os instrumentos que a sociedade se utiliza para agir sobre o homem.

Portanto, o homem não é um simples produto da natureza, mas sim uma resultante do convívio com outros homens. Em que pese o caráter social do homem, sempre haverá nele algo próprio, que não se apagará no social nem se tornará comum. Assim, todo o aparato da estrutura social que visam adaptar o homem não conseguem reduzir totalmente seu livre arbítrio nas suas escolhas.

Contudo, é indiscutível que se a cada um fosse autorizado a fazer aquilo que lhe aprouvesse, guiado por instintos puramente egoístas, calculando como medida de ação a fraqueza alheia, a vida na sociedade seria intolerável e impossível seria o progresso da civilização (Mello M. 2003, p 3-5).

Diante disto, o jugo social representado pela atuação com o fim de adaptação do homem é aceito como uma imposição necessária à vida social. Trata-se de uma reação social à rebeldia do homem aos padrões impostos pela sociedade. Evidencia-se, assim, uma imperiosa exigência da sociedade em traçar regras obrigatórias de conduta ao homem, que independa de sua adesão. Essas regras são normas jurídicas que consubstanciam o direito da comunidade em que elas são vigentes.

1 A necessidade do direito

A vida social não pode prescindir da adaptação do homem, sendo a razão pela qual os instrumentos de adaptação social, em especial o direito, são indispensáveis à vida em sociedade.

As regras jurídicas, entendidas como obrigatórias e impostas pela sociedade ao homem, são indispensáveis para sua sobrevivência dentro do grupo social. O direito é essencial ao homem como um ser social, quando integrado à sociedade. Por outro lado, o homem sozinho não precisa do direito ou qualquer outra regra de conduta. A necessidade do direito surge quando o homem se vê diante de outro homem ou da comunidade e nas condutas que se relacionam é que surge a necessidade das normas jurídicas, diante dos inevitáveis conflitos de interesses. Resulta então a imperiosa necessidade da sociedade de controlar o comportamento de seus membros traçando normas obrigatórias de conduta, com o fim de impor uma certa ordem capaz de obter coexistência pacífica no meio social.

Portanto, a sociedade humana, organização complexa que interage entre si de diversas maneiras e registra inúmeras possibilidades de conflitos, não pode prescindir do direito. Resulta daí o brocardo ubi societas, ibi ius, que realça o caráter obrigatório da sociedade jurídica. É de se notar que inclusive o Estado nem sempre existiu e ainda hoje há sociedades que vivem sem esta instituição. Povos primitivos, por exemplo, desconhecem as instituições estatais, mas não abrem mão de normas para convivência, mesmo tratando-se de normas costumeiras, orais, religiosas. O grau de sofisticação das normas jurídicas, contudo, dependerá do nível de desenvolvimento da sociedade. Com o desenvolvimento da sociedade é que as normas jurídicas irão se aperfeiçoar a medida que a comunidade tornará cada vez mais complexa.

Contudo, seja como for, as normas jurídicas são indispensáveis e insubstituíveis, porque são o único meio eficaz de evitar o caos social e garantir uma coexistência pacífica entre os seres humanos (2003, p. 4).

Portanto, onde há sociedade há conflito de interesses, desta tendência inexorável, a sociedade engendrará meios para a resolução destes conflitos, razão pela qual surgirá o direito.

2 Mundo fático e mundo jurídico

A vida é uma sucessão de fatos, desde o nascimento até a morte. É o caso de uma estrela cadente, as ondas do mar, tudo que vive em nosso redor, física ou psiquicamente, são fatos. Entretanto, nem todos os fatos interessam ao direito. Aqueles fatos que ou por fugirem do controle do homem, não lhe resultarem em vantagem ou não lhes provocarem interesse são tidos como irrelevantes (MELLO, 2003, p. 3-8).

Com efeito, o mundo jurídico não é mais do que o mundo dos fatos jurídicos, ou seja, daqueles suportes fáticos que logram entrar no mundo jurídico. Portanto, segundo Pontes de Miranda, “a soma, tecido ou aglomerado de suportes fáticos que passaram à dimensão jurídica, ao jurídico, é o mundo jurídico (1977, p. 183)”.

Marcos Bernardes de Mello explica a entrada de um fato no mundo jurídico (2003, p. 8):

Quando, no entanto, o fato interfere, direta ou indiretamente, no relacionamento inter-humano, afetando, de algum modo, o equilíbrio de posição do homem diante dos outros homens, a comunidade jurídica sobre ele edita norma que passa a regulá-lo, imputando-lhe efeitos que repercutem no plano da convivência social. Parece claro, daí, que a norma jurídica atua sobre os fatos que compõem o mundo atribuindo-lhes consequências específicas (efeitos jurídicos) em relação aos homens, os quais constituem um plus quanto à natureza do fato em si. A norma jurídica, desse modo, adjetiva os fatos do mundo, conferindo-lhes uma característica que os torna espécies distinta dentre os demais fatos – o ser fato jurídico.

 

Por sua vez, Pontes de Miranda cita os Estatutos da Universidade de Coimbra, que condicionam o verdadeiro e legítimo à sólida e exata aplicação das leis às causas na boa aplicação das regras e princípios aos fatos (1977, p. 184):

O verdadeiro e legítimo meio da sólida e exata aplicação das leis às causas forenses consiste, precisamente, na boa aplicação das regras e princípios do direito aos fatos, - depois de se terem bem explorado, e compreendido todas as específicas circunstâncias dele; depois de se haverem confrontado com as circunstâncias das ditas regras e das leis, de que elas foram deduzidas, e com todas as determinações das leis e dos fatos, por meio de um bom e exato raciocínio.

Portanto, há fatos relevantes que o direito impõe efeitos nas relações sociais, ao passo que existem fatos que são considerados irrelevantes para as normas jurídicas e assim permanecem sem regulação. Assim, somente os fatos previstos na norma jurídica podem ser considerados fatos jurídicos e constituírem um fato gerador de direitos, deveres, obrigações ou qualquer outro efeito jurídico. Este critério deixa de fora, por exemplo, normas de cortesia. Assim, é uma norma de cortesia cumprimentar o vizinho toda pela manhã. Mas se o não fizer, não poderá o vizinho ofendido acionar o aparato estatal com o fim de compeli-lo a tanto. Em suma, apenas o fato regulado pela norma jurídica interessa ao direito e se considera um fato jurídico. Os demais, não regulados pela norma jurídica, não são fatos jurídicos, embora possam pertencer ao interesse de outro ramo do saber (MELLO, 2003, p. 9).

Assim, certos fatos da vida, diante da valoração dada pelo legislador, integrarão ao mundo do direito e gerarão efeitos jurídicos. Outros fatos sociais, o legislador entende que não compensará acionar o aparato estatal para resolver o conflito, inobstante poderão interessar a outros segmentos sociais, de ordem moral, religiosa etc.

           

3 Jurisdição e Estado de Direito

Vimos acima que a sociedade não pode prescindir de normas jurídicas, por mais rudimentares que sejam. O ser humano, uma vez vivendo em sociedade, necessita de normas que regulem sua conduta em relação aos outros homens. O grau de sofisticação destas normas será diretamente relacionado com o grau de desenvolvimento da sociedade. Quanto maior o desenvolvimento de uma sociedade, maior será a necessidade de uma ordem jurídica complexa, ao contrário senso, sociedades pouco evoluídas, que inclusive antecederam ao Estado, podem se contentar com uma ordem jurídica mais rudimentar, cujas normas são transmitidas pelos usos e costumes. De acordo com Pontes de Miranda: “seria erro crer-se que a organização judiciária é consequência necessária do direito objetivo” (1972, p. 233)”.  Realmente, a justiça numa sociedade rudimentar pode fundar-se na tradição oral, nos usos e costumes e ser aplicada pelo chefe da tribo ou sacerdote.

Com efeito, segundo Pontes de Miranda, a forma primitiva de solução dos conflitos entre os homens diante dos bens da vida foi a luta material. Assim, era o próprio interessado que aplicava a regra jurídica. Progressivamente, o Direito se substituiu à força e passou a punir quem faz justiça com as próprias mãos (1972, p. 230). Atualmente, o proprietário da casa alugada não mais pode desalojar o inquilino, o credor não pode se apropriar no patrimônio do devedor aquilo que se pague, igualmente no direito pátrio não se permite o arresto e a penhora de mãos próprias (MIRANDA, P. 1977, p. 312).  Hoje, raramente há situações em que se observa a justiça de mão própria, como é o caso do desforço possessório.

Atualmente, com o fim de solucionar os conflitos o Estado utiliza o poder da jurisdição. Portanto, jurisdição é o poder que toca ao Estado, dentre suas atividades soberanas, de formular e fazer atuar praticamente a regra jurídica concreta que, por força do direito vigente, disciplina determinada situação jurídica (THEODORO JÚNIOR, H. 2007, p. 249).

Dessarte, juízes e tribunais possuem o dever de administrar a justiça e são obrigados a tanto desde que os interessados, com pretensão à tutela jurídica a exerçam. A pretensão à tutela jurídica nasce deste exercício, que corresponde à obrigação de prestar ou justiça. Todo o exercício da pretensão à tutela jurídica pressupõe o dever do Estado de realizar a prestação jurisdicional, seja declaratória, constitutiva, condenatória mandamental. Há o dever de prestar a decisão, de acordo com as regras jurídico-processuais. (MIRANDA, P. 1972, p. 237).

Portanto, segundo Pontes de Miranda, “jurisdição é a atividade do Estado para aplicar as leis, como função específica. O Poder Legislativo, o Poder Executivo e os próprios particulares aplicam a lei, porém falta a todos a especificidade da função” MIRANDA, P. 1972, p. 237). A especificidade da função de julgar, atribuída ao Estado teve por objetivo impedir a desordem, os excessos (isto é, as injustiças) da justiça de mão própria aplicada pelo próprio interessado e assegurar a realização menos imperfeita possível das normas jurídicas (1972, p. 237).

Por outro lado, a atual noção de Estado Democrático de Direito consagrou a ideia da divisão das funções atribuídas ao Estado. As funções legislativa, executiva e judiciária estão relacionadas com o fim do próprio Estado e estão dispostas de forma a assegurar o equilíbrio no exercício do poder do Estado. Se assim não fosse, isto é, a atividade do poder executivo, legislativo e judicial fossem concentradas numa só pessoa, teríamos um regime autoritário. Assim, é através da atuação equilibrada dos três poderes com a previsão legal de sua forma de atuação é que é assegurada a existência de um Estado de Direito.

Portanto, a função jurisdicional tem por finalidade resolver os conflitos apresentados pelos interessados e atingir a paz social. Para atingir este objetivo, no nosso país o Estado possui o monopólio da jurisdição e deve observar uma série de garantias previstas na Constituição Federal, que são princípios que autorizam o legislador infraconstitucional a construir o sistema processual. Estas garantias são o devido processo legal, do juiz natural, da indelegabilidade e indeclinabilidade da jurisdição, da ampla defesa, do contraditório, da fundamentação das decisões judiciais, que garantem aos cidadãos do Estado e às pessoas em geral o direito de acesso às decisões judiciais (WAMBIER, L.; ALMEIDA, F., TALAMINI, E.  2003, p. 40).   .

Assim, a resolução dos conflitos da sociedade pelo Estado representa um estágio jurídico cultural ideal na atualidade. Para tanto, o Estado utiliza-se da jurisdição, que num Estado Democrático de Direito, deve observar uma série de garantias constitucionais sob pena de desrespeitar o devido processo legal e o acesso à justiça.

4 Lide e processo

A função jurisdicional do estado só atua diante de casos concretos de conflitos de interesses. A jurisdição estatal não foi engendrada para um debate hipotético ou acadêmico. Mas não é qualquer conflito concreto de interesses em que atua a jurisdição do estado. Basta verificarmos que há situações em que o conflito de interesses é solucionado sem precisar a atuação da jurisdição do estado, como é o caso da transação.

Todavia, há conflitos que se transformam em lides, conceituado na lição clássica de Carnelluti como o “conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida (THEODORO JÚNIOR, H. 2007, p. 41)”. Trata-se de situações em que as partes não encontram uma autocomposição, cujo conflito permanece latente no meio social. Assim, havendo lide, a jurisdição estatal utiliza-se do processo com o fim de resolvê-la. Conforme Pontes de Miranda, existe um direito público de pretensão à tutela jurídica. Ela é dirigida contra o Estado, quer exerça o autor, quer exerça o réu (MIRANDA, P.  1972, p. 232). Neste sentido, o cidadão tem o direito público subjetivo à justiça, resultado da regra jurídica de direito pré-processual. Assim, o remédio jurídico processual é “meio, é expediente, é instrumento” (1972, p. 271). Caso o direito subjetivo tenha se realizado sem conflito, não foi preciso o cidadão utilizar o remédio jurídico processual. Contudo, se o direito não foi realizado, usa-se do meio para chegar ao fim  (1972. p. 273).

Portanto, o processo é o método, ou o meio, pelo qual a jurisdição estatal compõe a lide em juízo. Calamandrei, citado por Humberto Theodoro Júnior, afirma que processo é “a série de atos coordenados regulados pelo direito processual, através dos quais se leva a cabo o exercício da jurisdição (2007, p. 52)”.

Por sua vez, Pontes de Miranda ensina que “o processo não é mais do que o corretivo da imperfeita realização automática do direito objetivo (MIRANDA, P. 1972, p. 233). 

Conforme Pontes de Miranda:

No momento em que alguém se sente ferido em algum direito, o que é fato puramente psicológico, o Estado tem interesse em acudir à sua revolta, em por algum meio ao alcance do lesado, ainda que tenha havido erro de apreciação por parte do que se diz ofendido. A Justiça vai recebê-lo, não porque tenha direito subjetivo, de direito material, nem, tampouco, ação: recebe-o como a alguém que vem prestar perante os órgãos diferenciados do Estado a sua declaração de vontade, exercendo a sua pretensão à tutela jurídica. A petitio não é mais do que ato jurídico processual, como existem os atos jurídicos de direito civil, de direito comercial, de direito administrativo, de direito das gentes (1972, p. 234).         

O exercício da jurisdição é levado a cabo através da sentença, que se trata do ato processual em que o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa. Após a sentença, o Estado cumpre seu ofício de entregar a prestação jurisdicional. “O juiz entrega a prestação, e o seu ofício acaba: functus officium (1972. p. 156).

5 A superioridade da Constituição, seus fundamentos e objetivos

A Constituição é a lei maior de um país e assim todas as normas infraconstitucionais devem se amoldar aos seus princípios. A Carta Magna inclui dentre seus fundamentos a cidadania (art. 1º, II) e constitui como objetivos fundamentais da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (CF, art. 3º, I).

Por sua vez, os direitos fundamentais integram um dos elementos nucleares da Constituição material, ao lado da definição da forma de estado, do sistema de governo e da organização dos poderes. Portanto, consagra-se a íntima vinculação entre as ideias de Constituição, Estado de Direito e direitos fundamentais. Assim, segundo a doutrina alemã, pode-se dizer que o Estado constitucional é o Estado ideal, cujo objetivo da concretização passou a ser permanente.

Neste sentido, o Estado constitucional pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada dos órgãos estatais, constitui condição de existência das liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos fundamentais somente poderão aspirar à eficácia no âmbito de um autêntico estado constitucional (SARLET, I. 2010. p. 58-59)

Nosso país adotou uma Constituição escrita, rígida quanto a possibilidade de alteração e dogmática como resultado de um processo constituinte a partir de princípios e ideias fundamentais da teoria política do direito dominante. Com o fim de assegurar a supremacia da Constituição nosso país adotou o controle prévio (preventivo) ou posterior (repressivo) das leis e atos normativos.

O controle preventivo “refere-se às comissões permanentes de constituição e justiça cuja função precípua é analisar a compatibilidade do projeto de lei ou proposta de emenda constitucional apresentados com o texto da Constituição Federal” (MORAES, A. 2008 p. 708).

Por outro lado, o controle repressivo diz respeito à possibilidade do Poder Judiciário declarar a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo. Anote-se que neste aspecto o Brasil adotou o critério jurisdicional misto (difuso e concentrado) do controle repressivo.

Assim, no direito pátrio, o controle da constitucionalidade pode ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal (controle concentrado e difuso) ou pelo juiz singular (apenas controle difuso).

As decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal quando exerce o controle concentrado, isto é, naquele em que é atacada a constitucionalidade da lei em tese, fora do exame de um caso concreto, em sede de ação direta de inconstitucionalidade tem efeito retroativo e vinculante contra todos (eficácia erga omnes, efeito ex tunc e ex nunc).

Contudo, quando o Poder Judiciário atua no exercício do controle difuso, ou seja, a constitucionalidade é atacada no caso concreto, a regra geral é de que seus efeitos vinculam apenas as partes envolvidas na lide. Apenas depois de o Senado Federal suspender a execução da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva e por maioria absoluta do Supremo Tribunal Federal em sede de recurso extraordinário é que a decisão vinculará terceiros ((CF, art. 52, X). No controle difuso, a eficácia das decisões vinculam apenas as partes e seu efeito é apenas ex tunc.

Portanto, a doutrina tradicional sustenta que se a declaração de inconstitucionalidade ocorre incidentalmente através do acolhimento da questão prejudicial que é fundamento do pedido, a decisão não se projeta para fora do processo no qual foi proferida.

6 A importância do princípio da igualdade numa sociedade que deve ter regras uniformes 

            Conforme exposto supra, de acordo com a Constituição, é da competência privativa do Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal” (CF, art. 52, X).

            Anote-se que a ordem jurídica não pode se limitar a garantir que toda pessoa seja reconhecida em seus direitos por todas as outras pessoas, sem antes de tudo, apoiar-se em leis legítimas que garantam a cada um liberdades iguais, de maneira que “a liberdade do arbítrio de cada um possa manter-se junto com a liberdade de todos”. (HABERMAS, 2012, p. 52). No sistema jurídico, o processo da legislação constitui o local ideal da integração social. Portanto, o direito moderno é absorvido o pensamento democrático segundo o qual “a pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica construída com direitos subjetivos só pode ser resgatada através da força socialmente integradora da ‘vontade unida e coincidente de todos’ os cidadãos livres e iguais (2012, p. 53).

            Nesta mesma linha, conforme nos ensinou Rawls, a justiça é uma opção política de uma sociedade formada por homens livres e iguais. Sendo assim, diante de uma sociedade formada por homens livres e iguais, seria um ideal de justiça entender que uma lei declarada inconstitucional possa se limitar a um caso concreto apenas entre as partes? A ideia de que uma lei seja considerada inconstitucional para uns e não para outros não fere o princípio da igualdade?

Se todas as pessoas são iguais e se o direito à igualdade é um direito fundamental, a ideia de que uma lei possa ser considerada inconstitucional no controle difuso apenas entre as partes do processo fere a lógica de um sistema que visa a integração social. Uma lei não pode subsistir dentro de um sistema jurídico, que deve primar pela razão, quando é declarada inconstitucional, mesmo se a decisão ocorreu no controle difuso. Todo o ato jurídico é uno acto, engatado em dois discursos sociais distintos, isto é, no discurso jurídico especializado, institucionalizado e numa comunicação geral difusa (2012, p. 79), isto é, uma comunicação que atinge a todos. Portanto, o ato jurídico da declaração da inconstitucionalidade, como regra geral, deve atingir a todos, independentemente se participaram da relação processual ou não.

            Anote-se que a prática jurídica se exerce por meio do argumento. Habermas entende que o sistema do argumento jurídico possui um valor central na teoria discursiva do direito, tratando-se de uma forma especial de comunicação, onde se supera as diferenças de opinião que surgem no momento da atribuição dos códigos “jurídico” e “não jurídico” através da troca de argumentos. Uma decisão jurídica só pode ser legitimada por meio do argumento, eis que eles são meios pelos quais o sistema jurídico se convence de suas decisões. Por outro lado, se os argumentos não dispõem da força intrínseca da motivação racional, isto é, quando os argumentos não se deixam mais fundamentar, a cultura argumentacional, formada a muito custo, transforma-se em enigma (2012, p. 75).

            Dessarte, a ideia da declaração de inconstitucionalidade trata-se de uma comunicação estatal, destinada a homens livres e iguais, dentro de um sistema que tem por objetivo que deve observar a coerência, se assim não for, os argumentos tornam-se um enigma, um sistema muito mais condizente com o direito da sociedade antiga do que o moderno Estado Democrático de Direito.

7 Teoria da transcendência dos motivos determinantes da sentença no controle difuso

A jurisprudência vem evoluindo para atribuir efeito vinculante erga omnes às decisões do Supremo Tribunal Federal também no exercício do controle de constitucionalidade difuso quando profere decisões definitivas de mérito em sede de recurso extraordinário. Este novo posicionamento da jurisprudência é justificado pela “teoria da transcendência dos motivos determinantes da sentença no controle difuso”.

A teoria defende a ideia de que as decisões do Supremo Tribunal Federal, mesmo no controle difuso e incidental possui eficácia contra todos, tal como ocorre no controle concentrado.

Com efeito, há situações em que o interesse público, a ordem social, a lógica do sistema, a integração social e o princípio da igualdade exigem que as decisões no controle difuso sejam estendidas para todos que estejam em situação jurídica análoga. A ideia de uma lei ser inconstitucional “inter pars”, mas constitucional e válida ainda “erga omnes” fere a ideia de justiça e o princípio constitucional da igualdade, em especial em decisões que julgam violação de direitos fundamentais e organização do Estado.  Como exemplo, cite-se parte da ementa do REsp 828106-SP, que declarou a ilegalidade da base de cálculo das contribuições para o PIS/PASEP e COFINS:

A inconstitucionalidade é vício que acarreta a nulidade ex tunc do ato normativo, que, por isso mesmo, já não pode ser considerado para qualquer efeito. Embora tomada em controle difuso, a decisão do STF tem natural vocação expansiva, com eficácia imediatamente vinculante para os demais tribunais, inclusive para o STJ (CPC, art. 481, § único), e com a força de inibir a execução de sentenças judiciais contrárias (CPC, art. 741, § único; art. 475-L, § 1º, redação da Lei 11.232?05).

Com efeito, conclui-se que o acórdão reconheceu que inobstante a decisão do REsp 828106-SP ter sido em sede de controle difuso, adotou no decisum a “eficácia imediatamente vinculante para os demais tribunais”. O Relator do acórdão, Ministro Albino Zavascki, citando lição do Ministro Gilmar Mendes, aduziu que as resoluções do Senado previstas no art. 52, X da Constituição visam apenas dar efeito de publicidade. Assim, ao Poder Judiciário não é necessário aguardar a publicação da resolução do Senado para dar efeito contra todos nas decisões do Supremo Tribunal no controle difuso.

Dessarte, os principais argumentos que fundamentam este novo entendimento da jurisprudência fundam-se: força normativa da Constituição, princípio da supremacia da Constituição e sua aplicação uniforme a todos os destinatários, o STF enquanto guardião da Constituição e seu intérprete máximo e a dimensão política das decisões do STF.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a teoria da transcendência dos motivos determinantes da sentença no controle difuso foi adotado no RE nº 197917 (Caso Mira Estrela-SP). O leading case, relatado pelo Ministro Maurício Correa, discutia o número de vereadores no município de Mira Estrela-SP, sendo decidido pela inconstitucionalidade da Lei Orgânica municipal, que estabelecia o número de vereadores.

Apesar da decisão tratar-se de controle difuso, foi dado efeito erga omnes, embora modulados ex nunc, pois foi admitida a mitigação dos seus efeitos, considerando a repercussão que eventual efeito retroativo teria sobre todo o sistema atual, como fixação de número de vereadores, fixação do número de candidatos, definição do quociente eleitoral e mesmo a validade de projetos e leis aprovadas.    

Conclusão

A Constituição Federal encontra-se no ápice do ordenamento jurídico e vincula o Estado e o cidadão. Nossa Constituição fez uma opção política por uma República que tem como fundamento a cidadania, constituem objetivos fundamentais a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Opções políticas, ao contrário das opções morais e religiosas, obrigam a todos, sem distinção. A Carta Maior ainda elegeu o direito fundamental da igualdade, ao assegurar que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a inviolabilidade do direito à igualdade.

Por sua vez, a ordem jurídica deve ser assentada num sistema de comunicação que em seus enunciados devem observar não só os direitos fundamentais do indivíduo mas também os de outras pessoas, igualmente livres e iguais, dentro deste espaço de convivência, visto que uma das funções da ordem jurídica é a integração social. O ato jurídico é um só, composto por dois momentos: no discurso jurídico especializado e institucionalizado e no outro momento, consiste numa comunicação geral difusa.

Portanto, diante da generalidade do discurso jurídico, que deve ser válido para todas as pessoas, fere a motivação racional um sistema em que uma lei julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal limite seus efeitos entre as partes, beneficiando apenas àqueles que têm o privilégio de ter acesso ao Poder Judiciário, contrariando o princípio da igualdade e o objetivo de construir uma sociedade justa.

Mesmo reconhecendo que as decisões da base de cálculo das contribuições para o PIS/PASEP e COFINS e do Caso Mira Estrela foram situações excepcionais, é de inteira justiça a evolução da jurisprudência, pois o Supremo Tribunal Federal na sua missão de ser o guardião da Constituição, deve decidir sempre para a sociedade e não apenas vincular-se ao interesse das partes, levando-se em conta a importância dos valores tutelados pela Carta Magna.

Portanto, o Poder Judiciário poderá dar efeito erga omnes nas decisões do controle difuso, sem aguardar pelo ato da suspensão da execução das leis pelo Senado toda a vez que a causa envolver interesse público, coerência do sistema e o direito fundamental à igualdade.

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MELLO, M. Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2003.

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SARLET, I. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

THEODORO JÚNIOR, H. Curso de Direito Processual Civil.  Vol. I. 48ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

 WAMBIER,   L.; ALMEIDA, F., TALAMINI, E. Curso Avançado de Processo Civil. Vol. I. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

 

 

Elaborado em janeiro/2015

 

Como citar o texto:

FLORES, Rodrigo Gomes..Por que o efeito erga omnes deve também ser aplicado no controle difuso de constitucionalidade sem aguardar a suspensão da execução da lei pelo Senado. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1244. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/3583/por-efeito-erga-omnes-deve-tambem-ser-aplicado-controle-difuso-constitucionalidade-sem-aguardar-suspensao-execucao-lei-pelo-senado. Acesso em 31 mar. 2015.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.