O art. 20 do Código Civil, em sua redação atual, encontra-se vazado nos seguintes termos:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Por sua vez, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, em 06 de maio de 2014, o Projeto de Lei da Câmara nº 393/2011, que altera o art. 20 do Código Civil. O referido o PLC nº 393/2011 foi apresentado em 15 de fevereiro de 2011, sendo que a ele foram apensados os PLC’s 395/2011 e 1422/2011.

Na tentativa de definir condutas, o PLC nº 393/2011 foi aprovado com a seguinte redação final:

Art. 1º Esta lei altera o artigo 20 do Código Civil, para garantir a liberdade de expressão, informação e acesso à cultura na hipótese de divulgação de informações biográficas de pessoa de notoriedade pública ou cujos atos sejam de interesse da coletividade.

 

Art. 2º O artigo 20 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 2º e 3º, renumerando-se o atual parágrafo único para § 1º:

“Art. 20.......................................................................................

§ 2° A ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou que esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade.

§ 3º Na hipótese do § 2º, a pessoa que se sentir atingida em sua honra, boa fama ou respeitabilidade poderá requerer, mediante o procedimento previsto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, a exclusão de trecho que lhe for ofensivo em edição futura da obra, sem prejuízo da indenização e da ação penal pertinentes, sujeitas essas ao procedimento próprio.”(NR)

 

Art. 3° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Todavia, ainda que o esforço pela definição de comportamentos seja louvável, a questão é que o aludido Projeto de Lei traz consigo algumas impropriedades técnicas e até mesmo algumas inconstitucionalidades, que ora serão analisadas.

O art. 1º do PLC nº 393/2011 indica a sua finalidade: “divulgação de informações biográficas”. Igualmente, o art. 20, § 2º, do Código Civil, na redação aprovada, indica a hipótese em que poderá ser aplicado o novo regramento, ou seja, poderá ser dispensada a autorização do biografado nos casos de “divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica”.

Porquanto, somente será dispensada a autorização do indivíduo no caso de a divulgação ter como meta a produção de uma biografia. Daí, a contrario sensu, para outras finalidades, que não sejam as “necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública” ou a “divulgação de informações biográficas”, a autorização permanece indispensável, como já estatui o caput do art. 20 do Código Civil.

No art. 1º do PLC nº 393/2011, outra questão que merece destaque é a existência de uma cláusula geral, consistente nas expressões “pessoa de notoriedade pública ou cujos atos sejam de interesse da coletividade”.

Na mesma esteira, a redação proposta do art. 20, § 2º, do Código Civil define quais as pessoas que poderão ser biografadas sem necessidade de suas respectivas autorizações, isto é, a “pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”. Porquanto, o Projeto de Lei em tela estabelece a existência de duas classes de pessoas cujas autorizações são dispensadas na hipótese de divulgação de seus dados biográficos.

Como visto, a redação aprovada do art. 20, § 2º, do Código Civil repete as cláusulas gerais do art. 1º do PL nº 393/2011, conceituando as duas classes de biografados. Assim, a “pessoa de notoriedade pública” é aquela “pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública”. De outro lado, a pessoa “cujos atos sejam de interesse da coletividade” é a que “esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”.

Essas cláusulas gerais presentes na nova redação do art. 20, como é comum nesse modelo de redação jurídica, ensejarão, porém, amplo debate sobre a caracterização de quem pode ser ou não enquadrado em um daqueles conceitos, o que refletirá na dispensa ou não de autorização do biografado.

Merece maior atenção o texto aprovado do § 3º do art. 20 do Código Civil, que disporá que “a pessoa que se sentir atingida em sua honra, boa fama ou respeitabilidade” poderá pleitear medidas judiciais para salvaguarda de seus direitos alegadamente violados.

Contudo, não só nos casos em que a “honra, boa fama ou respeitabilidade” forem pretensamente malferidas é que o biografado estará legitimado a pleitear medidas judiciais para proteção daqueles direitos. Ora, qualquer outro direito da personalidade que possa ter sido violado merecerá a proteção, inclusive por meio do Poder Judiciário. Uma biografia pode também ferir o nome, a identidade, a imagem, a intimidade etc.

Porquanto, deve-se admitir que aquele é um rol meramente ilustrativo, e não numerus clausus, podendo-se, evidentemente, manejar a demanda judicial cabível para proteção de qualquer um dos direitos da personalidade do biografado.

Outro ponto sobre o qual se deve jogar luz é a parte do eventual futuro § 3º do art. 20 que estabelece que o biografado “poderá requerer, mediante o procedimento previsto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”, a proteção aos seus direitos.

Entretanto, mais uma vez deve-se considerar que não apenas por meio do “procedimento previsto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995” é que o biografado poderá manejar sua demanda. É evidente que o indivíduo que reputar terem sido violados seus direitos poderá utilizar de todos os demais meios de impugnação cabíveis previstos na ordem jurídica pátria vigente.

Destarte, poderão igualmente ser manejadas ações pelo rito comum ordinário ou sumário, além de medidas cautelares ou pedidos de antecipação dos efeitos da tutela.

Mais uma vez o caso é de se entender que o § 3º do art. 20, na redação aprovada, confere ao biografado uma possibilidade de utilização do rito da Lei nº 9.0995/95, mas não a obrigatoriedade de adoção exclusiva deste procedimento.

Por derradeiro, insta salientar que o texto aprovado do § 3º do art. 20 cuida apenas da possibilidade de “exclusão de trecho que lhe for ofensivo em edição futura da obra, sem prejuízo da indenização e da ação penal pertinentes, sujeitas estas ao procedimento próprio”.

Como se vê, o dispositivo não trata da possibilidade de impedir a publicação nem de recolher eventuais publicações, como é muito comum atualmente.

Data venia, mas o inciso XXXV, do art. 5º, da Constituição Federal estatui como direito fundamental que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ora, pela expressa disposição constitucional, deve-se permitir ao indivíduo a proteção também contra a ameaça de lesão a direito.

Assim, não se pode permitir ao biografado a possibilidade de exclusão do trecho ofensivo apenas nas eventuais novas edições da obra. Isso contraria o direito à tutela judicial para os casos de ameaça a direito.

De outro lado, a previsão de “exclusão de trecho que lhe for ofensivo em edição futura da obra” igualmente fere o inciso XXXV, do art. 5º, da Carta Política mas quanto à garantia de o cidadão poder acionar o Judiciário em face da própria lesão a direito seu. Desta feita, não se pode descartar medidas repressivas, como o recolhimento das obras que contenham ofensas aos direitos da personalidade do biografado.

Ora, se de fato a obra contém trecho ofensivo, não se pode deixar que a reparação se faça apenas nas eventuais edições vindouras, o que é um contrassenso: reconhece-se a ofensa ao direito da personalidade, mas a sanção só se aplicação para trabalhos futuros, e não para o próprio trabalho que causou e contém a ofensa. Nesta parte há igual contrariedade ao inciso XXXV, do art. 5º, da CF, ao não permitir a reparação da efetiva lesão a direito, além de contrariedade aos incisos V e X, do art. 5º da Carta Magna e de vulneração ao próprio princípio da reparação integral, que norteia o tema da responsabilidade civil.

O próprio art. 12 do Código Civil dispõe que se pode “exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade”.

E a doutrina é uníssona em afirmar que a proteção aos direitos da personalidade pode ser preventiva ou repressiva (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013).

Carlos Alberto Bittar (1999, p. 49), por exemplo, chega a destacar que a “tutela geral dos direitos da personalidade compreende modos variados de reação [...] [inclusive] “a) cessação de práticas lesivas; b) apreensão de materiais oriundos dessas práticas”.

Diante do exposto, o § 3º do art. 20 do Código Civil, nos termos da redação final do PLC nº 393/2011 aprovada pelo Plenário da Câmara dos Deputados, não escapa à pecha de inconstitucional.

Logo, devem ser sempre admitidas amplamente todas as medidas necessárias e adequadas a impedir que se tenha lesão aos direitos da personalidade do biografado, ou seja, as medidas judiciais para afastar a ameaça a esses direitos. Cabíveis, porquanto, os pedidos de tutela de urgência (art. 300 e seguintes do CPC) e a tutela inibitória (fulcrada no art. 497 do CPC).

Ademais, devem ser admitidas todas as medidas cabíveis à reparação integral das ofensas aos direitos da personalidade do biografado contidas na biografia, inclusive o recolhimento das obras que contenham tais ofensas.

Foi exatamente o que decidiu o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.815, impetrada em 2012 pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL). A relatora, Ministra Cármen Lúcia, na conclusão de seu voto, fez constar:

Pelo exposto, julgo procedente a presente ação direta de inconstitucionalidade para dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para,

a) em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas);

b) reafirmar o direito à inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa, nos termos do inc. X do art. 5º da Constituição da República, cuja transgressão haverá de se reparar mediante indenização.

Tendo aportado no Senado Federal, houve a numeração como Projeto de Lei da Câmara nº 42/2014. Após regular tramitação, houve apresentação de Relatório do Senador Ricardo Ferraço, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, com voto pela prejudicialidade do Projeto, sob o fundamento de que, quanto “à juridicidade, o PLC nº 42, de 2014, não se afigura de todo correto, porquanto [...] parte da matéria não inova o ordenamento jurídico”. E bem destacou o Relatório:

Assim, diante desse fato novo, e ainda que se observe a emenda aprovada na CE, mais do que desnecessária, a aprovação do PLC nº 42/2014 não se afigura recomendável, na medida em que poderá gerar novas controvérsias sobre o tema, comprometendo a segurança jurídica de que necessitam autores e editores para a publicação desse gênero literário, colocando em cheque a fiel construção e preservação da cultura e da história nacionais.

Pelo que se observa, com a decisão na ADI nº 4.815 haverá uma diminuição radical de demandas discutindo o assunto. Contudo, não faltará quem queira ajuizar seus processos com outros fundamentos, como o direito ao esquecimento, que já foi inclusive reconhecido pela jurisprudência. Permanecerá o eterno conflito entre o direito à intimidade e à informação, casuisticamente, mas com parâmetros decisórios muito melhor estabelecidos

O que uma biografia pode fazer é revelar ao grande público fatos da vida do biografado que eram de conhecimento de um pequeno grupo, talvez. Isso porque, em verdade, a biografia da pessoa pública, em boa parte, já é de conhecimento e domínio público.

Jamais se poderá veicular mentiras, criar dados, fatos, frases, imagens ou similares. Para todos esses excessos e para todas essas falsidades haverá sempre o inafastável direito de ação (CF, art. 5º, XXXV), para proteção da intimidade e da vida privada (CF, art. 5º, V e X).

O que não se pode mesmo ter é a necessidade de prévia autorização. Ora, parece mesmo um comportamento de todo contraditório o do indivíduo que explora sua intimidade, inclusive como fonte de renda, mas, na iminência de ter fatos de sua vida levados a público, pretende proibir a divulgação, sob a pecha de que isso feriria sua intimidade ou a vida privada.

É ao menos pouco compreensível que uma pessoa que exponha diante de câmeras seu próprio corpo (maior recôndito da intimidade) venha posteriormente a se indignar com uma publicação, por exemplo, de uma fotografia sua saindo de uma casa de festas, ou acompanhado de determinada pessoa.

A proteção à intimidade e à vida privada merece sempre muito cuidado e atenção, mas para as pessoas públicas e para fatos verdadeiros, há um interesse da coletividade em melhor conhecer suas biografias, e a Constituição Federal permite o exercício desse interesse, permitindo inclusive a liberdade de pensamento, criação, expressão e informação.

E a norma infraconstitucional, por óbvio, não pode restringir para além dos contornos desenhados pelo texto constitucional, de modo que não há como se admitir uma censura particular para proibir o que o ordenamento jurídico permite.

Data da conclusão/última revisão: 2017-08-05

 

Como citar o texto:

GONÇALVES, Tarcisio Vieira..Biografias não autorizadas: quando a lei permite o que o indivíduo queria proibir. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1461. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/3697/biografias-nao-autorizadas-quando-lei-permite-individuo-queria-proibir. Acesso em 14 ago. 2017.

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