O atual Código de Trânsito Brasileiro - CTB acaba de completar seis anos de vigência. Substituiu o Código promulgado em 1966, que envelhecera rapidamente, com a mesma velocidade com que transitamos em nossas ruas e estradas. Ninguém pode negar a necessidade de um controle jurídico mais eficaz, racional e moderno do trânsito brasileiro, responsável por mais 33.000 mortos a cada ano, nas estradas brasileiras (números divulgados pelo Conselho Nacional de Trânsito - CONTRAN.

O CTB tem objetivos louváveis, porém difíceis de serem alcançados: disciplinar, ordenar e humanizar o trânsito brasileiro. Os resultados - bons ou ruins - resultantes da eficácia ou ineficácia de suas principais regras controladoras do trânsito ainda são difíceis de serem percebidos com a necessária clareza .

Há muita dúvida no ar ou nas ruas e estradas deste país, acerca das questões mais importantes: velocidade, imprudência, negligência, embriaguez ao volante. O número certo de vítimas fatais - informação das mais relevantes - tem sido objeto de graves divergências. O próprio CONTRAN, num documento (Diretrizes da Política Nacional de Trânsito), refere-se a "mais de 33 mil pessoas mortas" a cada ano; noutro, menciona o número de 18.877 mortos, em 2002 (Anuário Estatístico de Acidentes de Trânsito - DENATRAN.

Enfim, não sabemos, com certeza se avançamos no sentido de realizar o objetivo maior e desejado por todos: garantir aos brasileiros um trânsito em condições de segurança.

Logo que promulgado, em 1997, o CTB foi denominado, de forma altamente positiva, de Código-Cidadão, por sua preocupação com a educação para o trânsito (art. 74). Isto representou um avanço, em termos de filosofia de trânsito, porque firmou o compromisso da lei com a idéia, de todo válida, de se investir na educação para o trânsito das novas gerações.

No entanto, o Código de Trânsito preservou algumas proibições e posições conservadoras que, a meu ver, poderiam ter sido descartadas. Entre estas, o Código-Cidadão manteve a proibição expressa do analfabeto conduzir veículo automotor. Exige a lei que o candidato à habilitação saiba ler e escrever (art. 140, II).

Os que defendem a proibição, argumentam que o condutor precisa ler os sinais de trânsito para dirigir com segurança. Mais, ainda, que toda pessoa deve se esforçar para saber ler e escrever ("dever cívico" do bom cidadão). Assim, quem não tem interesse em se alfabetizar não merece ser motorista. Além disso, com analfabetos conduzindo veículos automotorizados, o trânsito seria ainda mais inseguro e perigoso.

Quanto ao primeiro argumento, é preciso lembrar que, via de regra, as normas (= sinais) de trânsito utilizam-se de signos e símbolos cuja compreensão dispensa a linguagem escrita. Não precisamos saber ler para entender a linguagem de trânsito, cuja comunicação se faz basicamente por meio da semiótica. É claro que o analfabeto pode não saber o significado de semiótica e nem lhe interessa saber. Porém, qualquer motorista cauteloso, mesmo analfabeto, entende a ordem contida numa placa PARE ou Estacionamento Proibido. A ordem ou comando normativo ali contido dispensa a linguagem escrita e sua respectiva leitura.

Quanto ao segundo argumento, parece-me que o analfabetismo é muito mais um produto da estrutura socioeconômica e político-cultural do que de uma simples e abstrata vontade marcada pela negligência do cidadão-analfabeto. Ninguém é analfabeto por que quer ou por prazer.

A questão fundamental, no entanto, é esta: é justo proibir o cidadão-analfabeto de dirigir veículo automotor? Entendemos que não. Se o mesmo é cidadão para votar, para trabalhar, para casar e constituir família, e, agora como pedestre, para cumprir as normas de trânsito na travessia das ruas, deve também ter o direito de conduzir veículo automotor.

O avanço tecnológico simplificou a operação do automóvel e banalizou o seu uso nas ruas e estradas deste imenso país. Hoje, dirigir um automóvel é atividade que dispensa maior nível de conhecimento técnico e inteletivo. Isto permite afirmar que o analfabeto, em regra, possui as condições psicoculturais e a habilidade técnica mínimas para conduzir um veículo automotor. Em nome da segurança mais cautelosa, poderiam ser ressalvados os veículos de carga pesada e os de transporte coletivo. Para estes veículos a lei exige habilidades especiais, mesmo para os que sabem ler e escrever.

Na verdade, o rigor da restrição feita ao analfabeto poderia ser atenuado, permitindo-lhe conduzir pequenos veículos de até mil cilindradas ou, ao menos, motonetas e motocicletas de até cem cilindradas. Nem este pequeno veículo, o Código-Cidadão lhe permite conduzir.

Parece-me que os autores do CTB não foram felizes ao excluir o analfabeto da categoria dos cidadãos com direito de conduzir veículo automotor. Talvez a maioria dos analfabetos deste enorme país nem esteja preocupada com este direito que lhes é negado. Afinal, já fazem eles parte da grande massa de pobres e marginalizados do processo social. Para eles, o automóvel parece um sonho inatingível; um objeto do qual só se aproximam para trabalhos de mecânica, abastecimento, vigilância em "estacionamentos" das vias públicas ou para entrega de folhetos de propaganda nos cruzamentos com sinal fechado.

No entanto, é preciso lembrar dos muitos cidadãos que não sabem ler e escrever, mas que precisam de um automóvel usado, uma caminhoneta ou uma motocicleta para trabalhar e estão legalmente impedidos de obter a necessária habilitação.

Estes, mesmo analfabetos, mais do que uma simples preocupação, devem carregar consigo um profundo sentimento de indignação diante de uma lei que discrimina cidadãos e, de forma contraditória, garante que "o trânsito é um direito de todos".

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Como citar o texto:

LEAL, João José.O Código de Trânsito Brasileiro e o Analfabeto. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 116. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-do-transito/515/o-codigo-transito-brasileiro-analfabeto. Acesso em 28 fev. 2005.

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