Sumário: 1. Introdução; 2. Soberania; 3. Soberania e Globalização; 4. Conclusão; 6. Bibliografia

1. Introdução

Falar de soberania não parece ser das missões mais fáceis, haja vista a dificuldade de conceituá-la, no entanto, trata-se de tema extremamente relevante diante do cenário em que se encontra o mundo atual com o advento da globalização.

Tal fenômeno econômico, comercial, político e cultural, ao propagar a queda de barreiras entre os países, está levando muita gente a refletir sobre a violação ou não do que até então entendemos por soberania.

Ademais, se existe um conceito de soberania, resta saber se estamos falando da mitigação desse conceito, ou se estamos diante de um momento em que se justifica a revisão do que entendemos por soberania.

Para tanto, necessário se faz viajarmos pelo conceito de soberania ao longo da história para compreendermos o seu alcance nos dias de hoje, permitindo então, a análise do tema segundo a contextualização anteriormente proposta.

2. Soberania

Quando falamos da dificuldade de se estabelecer um conceito de soberania, tal proposição se funda no fato de que a pluralidade de ciências interessadas em sua definição leva a possibilidade de distorção conceitual, atendendo às vezes, inclusive, a conveniência política de quem a conceitua, como bem afirma Dalmo Dallari: "o conceito de soberania, claramente afirmado e teoricamente definido desde o século XVI, é um dos que mais têm atraído a atenção dos teóricos do Estado, filósofos do direito, cientistas políticos, internacionalistas, historiadores das doutrinas políticas, e de todos quantos se dedicam ao estudo das teorias e dos fenômenos jurídicos e políticos" (...) "dando margem a todas as distorções ditadas pela conveniência. Essas distorções têm sido uma conseqüência, sobretudo, da significação política do conceito, que se encontra na base de seu nascimento e que é inseparável dele, apesar de todo o esforço, relativamente bem sucedido, para discipliná-lo juridicamente"(1) .

E no tocante aos campos de estudo afetados pelo tema soberania, além dos campos jurídicos e políticos citados pelo Professor Dallari, há de se incluir aí obrigatoriamente, o campo da economia, haja vista tratar-se de fator preponderante para explicá-la nos dias atuais como veremos oportunamente.

O citado professor acrescenta ainda, que "o conceito de soberania é uma das bases da idéia de Estado Moderno, tendo sido de excepcional importância para que se definisse, exercendo grande influência prática nos últimos séculos, sendo ainda uma característica fundamental do Estado"(2) .

Mas sendo uma característica essencial do Estado Moderno como vimos do relato anterior, na história a sua evolução é lenta, aparecendo apenas na Idade Média quando se falava de segurança e tributação, ou seja, estava ligada especificamente ao exercício de poder.

Já no século XIII com a ascensão da monarquia, ela passa ainda que de forma indefinida a estar mais presente, pois era comum a afirmação da soberania do monarca, o que, logo a seguir, ou seja, no século XVI, levaria Jean Bodin a conceituá-la: "soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os negócios de estado de uma República"(3) .

Temos ai então, o ponto de partida para análise do conceito de soberania, considerando que Bodin atribuiria esse poder a seu titular e que Rousseau quando da publicação de "O Contrato Social" afirmaria que a titularidade do poder estaria no povo e não em seu governante.

Da premissa fornecida por Bodin, os teóricos passaram a se preocupar muito mais com as características necessárias ao exercício da soberania do que propriamente com seu conceito, assentando-se que a soberania deveria ser essencial, inalienável e indivisível. Essencial no sentido de outorgar poder de unificação do povo de um estado, inalienável por ser o exercício de vontade geral e indivisível porque a vontade só é geral se houver a participação do todo. Já Marco Túlio Zanzucchi(4) , acrescentaria a estas características três formas de poder originário por nascer junto com o Estado, incondicionado porque só o Estado é que pode limitá-la e coativo porque o Estado dispõe de meios para fazer cumprir suas ordens.

Disso tudo, percebesse que a soberania, que no passado esteve umbilicalmente jungida à figura do monarca, hoje se apresenta de outra forma. Está diretamente ligada à figura do Estado e nele concentra sua legitimidade, afastando a idéia de soberania como forma de poder do governante.

Ocorre, que a soberania não se restringe mais apenas à mera questão doutrinária, uma vez que está sendo invocada constantemente nos dias de hoje para justificar vários atos do Poder Público e às vezes até dos entes privados, tudo isso porque, com a sua positivação jurídica, passou de poder a instrumento.

No Direito brasileiro temos o exemplo disso, a Constituição Federal estabelece em seu artigo 1º que "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - (...)" legitimando assim, não só o seu uso pelo Estado brasileiro, como por qualquer operador do Poder Público. Além disso, os entes privados também têm a disposição o mesmo instrumento, haja vista que no artigo 170 da mesma carta, dispõe o legislador que "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - (...)".

Ou seja, parece que temos estabelecido aí uma crise de soberania, seja pela forma como ela vem sendo utilizada (instrumento), seja pelo momento atual do cenário internacional que a seguir passaremos a discorrer.

3. A soberania e a globalização

Muitos atribuem a crise atual da soberania ao fato do fenômeno da globalização estar fragilizando as fronteiras dos Estados-Nação, como afirma Paulo Luiz Netto Lobo: "a globalização econômica procura transformar o globo terrestre em um imenso e único mercado, sem contemplação de fronteiras e diferenças nacionais e locais. Tende a uma padronização e uniformização de condutas, procedimentos e relevâncias relativamente aos objetivos de maximização econômica e de lucros, a partir dos interesses das nações centrais e empresas transnacionais que, efetivamente, controlam o poder econômico mundial, sem precedentes na história"(5) .

Já em pensamento contrário, Marx e Engels quando falavam do caráter integracionista das nações, o que para muitos justifica o processo hoje denominado de globalização, afirmavam que "No lugar da tradicional auto-suficiência e do isolamento das nações surge uma circulação universal, uma interdependência geral entre países(6) ".

No mesmo sentido, Juscelino F. Colares explica que de fato existe uma harmonia entre nações com a globalização e ocorre em razão das relações de comércio, como se vê: "O aprofundamento na interdependência das relações de comércio entre os países tende a contribuir para a criação de um ambiente de estabilidade nas relações internacionais"(7) . Acrescente-se aí, que essa harmonia se dá inclusive, para a administração do poder que acabou por gerar uma responsabilidade solidária entre as nações relativo a tudo aquilo que acontece no globo, como cita Josef Thesing: "Atualmente, o poder econômico internacional está dividido entre um grande número de países. Isso implica uma responsabilidade correspondente"(8) .

No entanto, se a perda de soberania por conta da globalização é apontada por muitos, como o principal efeito negativo, neste ponto coadunamos com o entendimento de Rodrigo Fernandes More: "Somente uma composição política, legislativa e jurídica, interna e externa, pode levar à realização do ideal integracionalista. Esta composição é resultado do mais puro exercício de soberania interna. Donde se conclui que nestes processos, do mais simples modelo (zona de livre comércio) aos mais avançados (integração econômica total) é impróprio falar-se em mitigação ou alienação de soberania. Insistir nesta afirmativa significa retornar no tempo, aos primórdios do Direito Internacional Clássico, é deter-se somente sob o aspecto interno da soberania que privilegia as relações internas do Estado, criando barreiras teóricas intransponíveis para a realização dos modernos processos econômicos(9) ".

Talvez como entremeio as duas posições anteriormente abordadas, fica a lição de Josef Thesing que assim expôs: "Antes de tudo, essa é uma experiência geral. Ela precisa ser entendida no contexto de uma fase da história na qual o mundo se transforma de maneira muito dinâmica e desordenada. O global não é apenas um estado, o global é também, para a política, a economia, a ciência e a cultura, um desafio que exige ação ordenadora"(10) .

Antonio Negri quando estabeleceu as três teses para elaboração de sua obra Império, enumerou na segunda, que de fato a crise da soberania existe, e sua existência está ligada à migração desse poder: "a segunda tese é a de que a soberania dos Estados-nação está em crise. Crise significa que a soberania se transfere do Estado-nação e vai para algum outro lugar", e acrescenta ainda "aquilo de que temos certeza é que existe uma efetiva transferência da soberania do Estado-nação para formas diferentes das tradicionais"(11) .

A partir dessa tese de migração da soberania é que o autor vai escrever sobre o título em capítulo próprio, texto este que seria apresentado à Associação Americana de Antropologia em dezembro de 2001(12) , e daí remontamos a questão inicialmente proposta como problematização do presente artigo sobre a mitigação do conceito de soberania ou da necessidade de sua revisão.

A resposta caminha, segundo Negri, para sua revisão. É que a obra Império defende a posição de que não existe mais a figura intocável do Estado-nação e sim de um sistema global de relações, como se vê: "poder-se-ia afirmar que o dia 11 de setembro definitivamente demonstrou que os Estados Unidos são parte do mundo ou, na verdade, que o governo estadunidense não é uma fonte autônoma de soberania, mas integrou-se a um sistema global de relações que definem a forma atual de soberania"(13) .

O filósofo italiano nos conduz então, para a redefinição do conceito de soberania até então existente, e que frise-se, nunca foi pacífico.

A proposta de Negri, ainda que de imediato não nos permita refletir sobre suas conseqüências, no tocante ao seu alcance propõe um sistema que ele denomina "dual" de soberania, ou seja, uma soberania seria a que aqui me atrevo a denominar de "interna", já conhecida por todas e largamente discutida no presente trabalho, a própria do Estado-nação. A segunda, para então completar o sistema dual, que o próprio autor denomina de "soberania imperial" é aquela que não tem limites, assim colocada: "em certo sentido, poder-se-ia dizer que esta soberania imperial é externamente ilimitada, porque envolve, por assim dizer, o globo todo. A soberania imperial não tem exterior, não tem um fora"(14) .

Ao nosso ver, sem aqui querer utilizar qualquer condão de crítica, até porque a observação que colocamos tende mais para as interações jurídicas do que aos seus aspectos políticos, o aperfeiçoamento dessa "soberania imperial" careceria não necessariamente de um ordenamento jurídico internacional, mas do estabelecimento de princípios normativos a serem adotados mundialmente para realinhamento dos ordenamentos jurídicos nacionais de forma a permitir uma harmonização jurídica capaz de permitir a fluidez legítima da proposta de Negri. Nesse mesmo sentido Rodrigo Fernandes More conceituou o processo de integração mundial sob a ótica jurídica(15) : "(...), no esforço de uma conceituação jurídica do fenômeno, integração significa a harmonização ou a uniformização dos sistemas legais internos dos Estados, viabilizando a integração política e econômica".

Porém, é de se acrescentar também, que essa "soberania imperial" aparentemente tem reserva de utilização e talvez justamente nesse sentido é que se encontra a sua importância, é que Negri acrescenta do constante aumento das guerras civis entre um e outro Estado-nação, e como bem sabemos, acabam por trazer repercussão no mundo todo (vide conflito entre Estados Unidos e Iraque), e se assim o é, a utilização dessa soberania viria principalmente para coibir a ocorrência de tais eventos indesejados mundialmente: "no império, a guerra civil - juntamente com a ação da polícia constantemente empenhada em evitar que ela aconteça - constitui a única expressão adequada da natureza dupla da soberania"(16) .

Com isso, só nos resta acentuar que de fato o mundo vive uma nova ordem jurídica, no momento consuetudinária, mas que em alguns aspectos prima pelo estabelecimento de regras formais, talvez não de caráter geral, mas de caráter interno alinhadas por princípios de caráter geral que poderiam, então, contribuir com a "soberania imperial".

4. Conclusão

Desde o acontecimento do 11 de setembro e de todos os fatos com repercussões internacionais daquele momento em diante, levou o mundo a se questionar sobre o papel e a importância que cada Estado-nação tem em relação a essa revolução que estamos vivendo.

Talvez essa revolução não tenha se iniciado no 11 de setembro, talvez tenha sido essa apenas a marca que provocou esse esforço de reflexão de algo que já tomava proporções mundiais, nem tanto pela participação direta dos Estados-nações, mas principalmente pela incursão dos atores que dinamizam a atividade econômica mundial.

O capitalismo vem tomando dimensão global, e impulsionado por ele, vários Estados-nações, eu arriscaria em dizer - a maioria, vem correndo nesta mesma direção na busca de desenvolvimento econômico e, por conta disto, talvez estivéssemos cegos a outras fatores que já estavam ocorrendo mas que foram passando a latere como se de menor importância fossem.

Chegou o momento então de rediscutirmos estas questões de interesse global na busca de consenso político, cultural, jurídico e econômico, isso tudo, sem desrespeitarmos as peculiaridades internas de cada membro (Estado-nação). Surge aí então a proposta apresentada por Antonio Negri, bastante incerta, porém, indisprezível, no sentido de que estamos caminhando para um sistema "dual" de soberania, a interna (de cada país) e a "do império" de dimensões globais e sem limite territorial.

Tal proposta tem consistência mas necessita de suportes de toda ordem, em especial ressaltamos aqui a de natureza jurídica, capaz então de permitir a construção dessa nova ordem, hoje ordem social, e que amanhã necessita ser reconhecida também, como ordem jurídica.

Ressaltamos que a criação dessa ordem jurídica nacional será inviável se partimos de matizes positivadas de aplicação internacional, mas triunfará se estabelecermos internacionalmente princípios balizadores da ordem jurídica a ser aplicada nacionalmente para construir um todo harmônico. Factível ? Ilusão ? Não, apenas uma proposta colocada em discussão.

NOTAS:

(1) Elementos de Teoria Geral do Estado, SP: Saraiva, 23ª edição, 2002, p. 74.

(2) Obra citada, p. 75.

(3) In Dallari, obra citada, p. 77.

(4) In Dallari, obra citada, p. 81.

(5) Direito do Estado Federado ante a Globalização Econômica, artigo publicado no site Jus Navigandi, disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2243>.

(6) In "Manifesto Abolicionista Penal", artigo de autoria Luciano Nascimento Silva, publicado no site Jus Navigandi em novembro de 2002, disponível em .

(7) Uma Visão Geral do Comércio Internacional, Estudos Econômicos nº 23 do CENER, p. 9.

(8) In Pesquisa Adenauer nº 13, 1998, p. 6.

(9) Artigo citado, p. 11.

(10) In Pesquisa Adenauer nº 13, 1998, p. 4.

(11) Império, Império, RJ: DP & A editora, 2003, p. 12.

(12) Obra citada, p. 73.

(13) Obra citada, p. 73.

(14) Obra citada, p. 74.

(15) Integração Econômica Internacional, artigo publicado no site Jus Navigandi em outubro de 2002, disponível em .

(16) Obra citada, p. 74.

5. Bibliografia

_______, A Globalização Entre o Imaginário e a Realidade, São Paulo: Centro de Estudos Konrad Adenauer, Pesquisa nº 13, 1998.

_______, Constituição da República Federativa do Brasil, SP: Editora Saraiva, 2004.

COLARES, Juscelino F.. Uma Visão Geral do Comércio Internacional, Fortaleza: Estudos Econômicos nº 23 do Centro de Estudos de Economia Regional da Universidade Federal do Ceará, julho/2000.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, SP: Saraiva, 2002.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito do Estado Federado ante a Globalização Econômica, Jus Navigandi, Teresina, outubro/2001. Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2243>. Acessado em 07/09/2004.

MORE, Rodrigo Fernandes. Integração Econômica Internacional, Jus Navigandi, Teresina, outubro/2002. Disponível em . Acessado em 10/09/2004.

NEGRI, Antonio. Império, RJ: DP & A editora, 2003.

SILVA, Luciano Nascimento. Manifesto Abolicionista Penal, Jus Navigandi, Teresina, novembro/2002. Disponível em . Acessado em 10/09/2004.

SPINOZA, Benedictus de. Tratado Político, SP: Ícone, 1994.

(Artigo elaborado em 16 de março de 2005)

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Como citar o texto:

GABRIEL, Sérgio..Soberania e a Globalização: premissas para a discussão de uma ordem jurídica internacional . Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 121. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-internacional/543/soberania-globalizacao-premissas-discussao-ordem-juridica-internacional. Acesso em 4 abr. 2005.

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