Para o exercício do direito de participação e voto em Assembléias deve o condômino estar quite. Deve-se considerar quite apenas o condômino em dia com suas contribuições ou também aquele que fez acordo de parcelamento de débitos anteriores e vem pagando as parcelas regularmente?

O presente questionamento tem causado várias inquietações a síndicos, condôminos e juristas militantes do setor imobiliário, pois, afinal, teria ou não o condômino que parcelou dívida perante o condomínio o direito de participar das deliberações do condomínio e nelas votar?

Toda problemática está centrada sobre a interpretação e aplicação da norma insculpida no inc. III do art. 1.335 do Código Civil de 2002, que prevê:

Art. 1.335. São direitos do condômino:

(..)

III - votar nas deliberações da assembléia e delas participar, estando quite.

Para a aplicação da norma, como se definiria, portanto, a situação “estando quite”? De fato, por mais clara que seja a norma jurídica, ela requer sempre interpretação[1]. Isso devido às inúmeras possibilidades interpretativas que pode assumir a norma de acordo com o caso concreto, inclusive as absurdas.

A ciência do direito, nesse processo, cuidou-se da missão de orientar diretrizes capazes de auxiliar o jurista na missão interpretativa – hermenêutica. Dentre essas diretrizes, de natureza técnica, podem-se enumerar a técnica gramatical, o processo lógico, o processo sistemático, a técnica interpretativa histórica e processo sociológico ou teleológico[2].

Tais diretrizes não operam isoladamente, de forma que a interpretação da norma se dá através dos elementos e subsídios contidos nos diversos processos. Assim, para interpretação do termo “estando quite” deve-se buscar amplo substrato, pautando-se sobre as diversas técnicas específicas.

Impõe-se a análise do dispositivo em comento sob a técnica gramatical, em primeiro momento. Desse modo, indispensável é a demonstração do sentido literal do texto normativo, no caso a definição do termo quite. Segundo Aurélio Buarque de Holanda[3] o termo significa:

Quite. Part. irreg. de quitar. Adj. 2 g.

1. Que saldou as suas contas; livre de dívida; desobrigado, quitado:

2. Livre, desembaraçado:

3. Igualmente pago; igualado:

Vê-se, portanto, que o significado do termo quite equivale à inexistência de obrigação, ou seja, desobrigado, livre, cujas contas estejam saldadas.

Conforme Justiniano[4], “a obrigação é um vínculo jurídico que nos obriga a pagar alguma coisa, ou seja, a fazer ou deixar de fazer alguma coisa” [5].

Ora, quando o condômino realiza um acordo para pagar as taxas de condomínio em atraso, ele assume uma obrigação – que segundo a doutrina civilista se classifica como obrigação de dar[6]. Essa obrigação, portanto, consiste no fato de que o condômino se obriga a pagar o correspondente à dívida vencida, no valor e forma estipulada na pactuação, sempre com vencimento futuro, através de uma ou várias prestações periódicas.

O Desembargador fluminense Sylvio Capanema reconhece a clareza literal do texto. Mas, arrisca prever, em contrapartida, que a jurisprudência poderá vir a admitir a participação, “se o condômino estiver cumprindo os termos do acordo” [7].

Todavia, data maxima venia, impossível concluir-se que o fato de ter o condômino realizado acordo sobre dívida vencida corresponda a ter saldado suas contas, estar livre, desobrigado, sob pena de violação ao texto legal. Isso porque, enquanto não adimplidas todas as parcelas relativas ao acordo celebrado, persiste uma obrigação. Logo, existindo obrigação inexiste quitação.

A mesma situação de emprego do termo quite se dá, popularmente, quando se pergunta se dado imóvel está quitado (ou quite). É prática comum a aquisição de imóveis através de financiamento ou contratos de promessa de compra e venda. Mas o simples fato de estar o mutuário ou promitente comprador em dia com suas obrigações periódicas (prestações) não implica dizer que está quite. Quitado, nessa situação, seria o imóvel sobre o qual não pesasse nenhum ônus, nenhuma obrigação.

Para o caso não existem duas acepções para o termo quite, como bem se assevera. Considerar que o condômino que realizou acordo sobre dívida relativa aos rateios das taxas de condomínio e ainda não liquidou a obrigação esteja quite é ignorar absurdamente o próprio significado do termo.

De qualquer modo, a interpretação da norma expressa pelo inc. III do art. 1.335 não pode abandonar também a análise do fim a que ela se destina – processo teleológico. Daí perquirir-se sobre qual a razão de impedir-se que o condômino que não esteja quite participe das deliberações nas assembléias e nelas manifeste seu voto.

Dentre as regras norteadoras desse processo, destaca-se, no caso, a segundo a qual “deve-se conferir ao texto normativo um sentido que resulte haver a norma regulado a espécie a favor e não em prejuízo de quem ela visa proteger” [8]. Portanto, a quem se destinaria a proteção da norma proibitiva em comento? A resposta é simples: o condômino quite com suas obrigações perante o condomínio.

Observe-se que a proibição não é apenas de votar nas deliberações, mas também a de delas participar. Com isso, não pode também o condômino que não estiver quite se candidatar a cargo eletivo previsto na convenção do condomínio.

Imagine-se o caso em que o condômino não quite assume a administração do condomínio. Tal circunstância pode não trazer a devida segurança aos demais condôminos quites com suas obrigações. Do mesmo modo, permitir-se ao condômino não quite votar poderia acarretar na desvirtuação da finalidade comum das deliberações, em detrimento de interesse particular influenciado pela sua situação de devedor perante o condomínio.

Ressalte-se que o fato de o condômino que tenha celebrado acordo para pagamento de seu débito estar adimplente com as obrigações assumidas não significa que esteja ele quite. Isso porque, enquanto persistir a existência de uma obrigação inexiste quitação, como dito.

É justamente pela possibilidade de ocorrência de situações similares que o legislador inseriu no ordenamento a exigência de estar o condômino quite para que possa participar das deliberações e nelas votar. Nesse trilhar, a interpretação da norma segundo o fim a que ela se destina trata-se de mera aplicação de disposição legal prevista pelo art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Notas:

[1] Cf. Maria Helena Diniz, in Compêndio de Introdução ao ciência do direito, 7ª ed., atual., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 381.

[2] Idem. p. 388-393.

[3] in Dicionário Aurélio Eletrônico Séc. XXI, versão 3.0, Ed. Nova Fronteira: 1999.

[4] Apud Sílvio de Salvo Venosa, in Direito Civil: teoria geral. v. 2. Obrigações, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 1999, p. 28.

[5]obligatio est juris vinculum, quo necessitate adstringimur alicujus solvendae rei, secundum nostrae civitatis jura”.

[6] Cf. Silvio de Salvo Venosa, op. cit. p. 82.

[7] in Revista SECOVI-RJ Hoje, Debate Virtual: Desembargador analisa novo Código Civil. Disponível em , acessado em 30 de junho de 2005.

[8] Cf. Carlos Maximiliano apud Maria Helena Diniz, op. cit., p. 392.

(Elaborado em junho de 2005)

 

Como citar o texto:

OLIVEIRA, Cássio Leite de..Condômino sem quitação não vota em Assembléia. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 142. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/768/condomino-sem-quitacao-nao-vota-assembleia. Acesso em 7 set. 2005.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.