A Câmara Federal acaba de aprovar um projeto de lei proibindo castigos físicos em pessoas menores de idade. O objetivo do projeto, já encaminhado ao Senado, é o de que bater em crianças e adolescentes, mesmo que como forma de repreensão,  venha a ser uma prática terminantemente proibida nos lares. O curioso do projeto, motivo de destaque nos meios de comunicação, é que ele trata de regras morais simples que deveriam ser respeitadas sem necessidade de um imperativo legal.

Primeiro, porque os pais têm um poder imenso sobre os filhos, e suas ações podem fazer enorme diferença para a felicidade deles. Criar filhos é acima de tudo um ato de amor e uma responsabilidade ética. Não estão absolutamente certo os pais baterem, humilharem, permitirem que os filhos sofram privações ou serem tratados com negligência, pois é horrível uma pessoa grande e forte fazer coisas assim com uma pessoa pequena e indefesa. Podemos não ter o amanhã de nossos filhos em nossas mãos, mas certamente temos o hoje, e temos o poder  de fazer esse hoje extremamente infeliz.

Segundo, pais e filhos têm um relacionamento humano. Ninguém pergunta: “Então você está dizendo que não importa como trato um amigo?”, muito embora ninguém além dos recém-casados acredite que pode mudar a personalidade de outra pessoa. Amigos são bons uns com os outros (ou tendem a ser) não para moldar a personalidade do companheiro em uma forma desejável, mas para construir um relacionamento profundo e satisfatório. Assim ocorre com pais e filhos: o comportamento de uma pessoa para com outra tem conseqüências para a qualidade do relacionamento entre elas. No decorrer de uma vida o equilíbrio de poder muda, e os filhos, munidos das lembranças do modo como foram tratados, vão adquirindo cada vez mais poder nas interações com os pais.

Se alguém  não acha que o imperativo moral é uma razão suficientemente boa para ser bom para seu filho, deveria tentar isto: seja bom para seu filho quando ele é jovem para que ele seja bom para você quando você for velho. Existem adultos equilibrados e sensatos  que ainda tremem de raiva quando lembram as crueldades que seus pais lhes infligiram na infância. Outros ficam de olhos marejados de enternecimento em momentos íntimos quando recordam a bondade ou sacrifício feitos em nome de sua felicidade, talvez coisas de que a mãe ou o pai já tenham se esquecido há muito tempo. Se não for por outra razão, os pais devem tratar bem e não maltratar os filhos para permitir-lhes crescer com essas boas lembranças (palmadas e castigo não educam: machucam e magoam). De fato, grande parte da tragédia humana reside nos conflitos de interesses  inerentes aos relacionamentos humanos e não devidamente superados.

E percebemos que, quando as pessoas ouvem explicações como essas, baixam a cabeça e dizem, sempre muito seguras do excesso de bom senso que crêem ter: “Sim, eu sei disso”. O fato de que as pessoas podem esquecer essas verdades simples quando intelectualizam sobre o tema “crianças” mostra como algumas idéias modernas nos levaram tão longe. São idéias que facilitam pensar nas crianças como massinhas a ser moldadas em vez de parceiras em um relacionamento humano.

O meritório sentido e valor do projeto de lei em defender o direito da criança a ser tratada e respeitada como in-divíduo é, portanto, reflexo do imperativo moral de que compreender o ser humano, como valor primeiro, somente se afirma a partir do respeito incondicional por sua dignidade: não somente da criança como expressão da capacidade para aprender por qualquer meio que seja, mas de um ser humano com plena aptidão para sentir, reagir, amar, eleger, cooperar, dialogar e de ser, em última instância, capaz de autodeterminar-se livremente no âmbito de sua peculiar existência.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly..Criança e castigo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 163. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-da-infancia-e-juventude/1017/crianca-castigo. Acesso em 30 jan. 2006.

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