O assunto pode parecer ultrapassado em face do referendo de outubro de 2005, pois que não houve mais prorrogação de prazo referente aos arts. 29/32, da Lei nº 10.826/03. Contudo, existem centenas de feitos em andamento e outros a se realizarem, vez que ainda não inaugurados, porém jungidos a fatos anteriores ao mês referido. Assim, pertinente se mostra ainda a questão, mesmo porque, funciona também como alerta para situações por acaso vindouras.

É incabível se legislar penalmente por medidas provisórias (art. 62, §1º, letra b, da Const. Federal), e assim, todas as mps editadas não têm qualquer eficácia legislativa, sendo, quanto ao Direito Penal, totalmente desconsideradas.[1]  E veja-se que a prorrogação ou alteração de prazos dos arts. 29 a 32, da Lei nº 10.826/03, como novamente o foi em junho passado, reveste-se de caráter plenamente penal, pois a inobservância desses prazos implica, diretamente, na tipicidade da conduta. 

Essa impossibilidade legislativa não é recente e nem mesmo genuína do Brasil.

Modernas democracias européias já adotavam,  ex ante, a impossibilidade de lei não estrita ser escoramento para edição de normas penais.

Assim é que consoante Jescheck, na Alemanha, “em todo caso, como base de uma pena privativa de liberdade somente cabe se considerar, de acordo com o art. 103, II, GG (Const. Alemã), uma lei  formal.” [2]

Do mesmo modo Maurach e Zipf, ao  alinhavarem comentários acerca do princípio fundamental da legalidade. [3]

Enrique Bacigalupo  faz o seguinte comentário sobre a questão junto ao Direito espanhol: “Vinculada à questão da lei como única fonte do direito penal se encontra o problema da hierarquia normativa  que se requer para as leis penais na Constituição espanhola. Com a STC (sentença do Tribunal Constitucional)140/86, ficou decidido  que leis penais que impunham penas privativas de liberdade devem possuir o caráter de leis orgânicas [4] (art. 81.1, Const. espanhola), pois esta matéria constitui um desenvolvimento de direitos fundamentais, concretamente do direito à liberdade (art. 17.1 CE).” [5]

E não desafina desse solfejo Mir Puig: “Sem embargo, pode se entender que o art. 81 da Constituição vem assegurar o nível de  lei orgânica- e não somente de lei formal- para o estabelecimento de, pelo menos, a maioria das penas. O art. 81 não se refere, expressamente, ao Direito penal, mas  alcança a este sua declaração de que ‘são leis orgânicas as relativas ao desenvolvimento dos direitos fundamentais  e das liberdades públicas...’. Segundo o art. 81, II, a aprovação, modificação ou derrogação das leis orgânicas exigirá maioria absoluta do Congresso, em votação final sobre o conjunto do projeto.” [6]

E no Brasil, ainda na vigência do art. 62, da Const. Federal, sem a roupagem da Emenda 32, vozes aclamaram a impossibilidade de medida provisória legislar sobre matéria penal.

Exemplo disso foi Silva Franco ao escrever que  “a circunstância do texto constitucional omitir toda e qualquer referência sobre as matérias atingíveis pela medida provisória não quer dizer que possa ela apresentar-se como instrumento adequado à abordagem da disciplina penal... Se a medida provisória, não convertida em lei, perde sua eficácia  desde sua edição, é evidente que, no momento de sua publicação, estava subordinada a uma condição temporal: a da sua aprovação no prazo de 30 dias, pelo Congresso Nacional. Rejeitada ou não tendo havido deliberação a respeito, no prazo já mencionado, a condição não se realiza e a medida provisória  é algo inexistente no mundo jurídico.Como tal conceituação, seria possível  harmonizá-la com os princípios que regem o Direito Penal? Seria cabível um tipo penal tão efêmero, um tipo que poderia ser natimorto no seu ato  criador?  Tal como o decreto-lei e, por razões ainda mais ponderáveis, a medida provisória não é lei e, por isso, não poderá ter por objeto a matéria penal.” [7]

Outra não foi a irresignação, no ano de 1990, de Luiz F. Gomes quanto à caudalosa  edição de  medidas provisórias com matiz penal. Assim se expressou esse jurista, entre outras palavras: “A  medida provisória surgiu na Constituição brasileira como sucedâneo do decreto-lei. Pode-se dizer que é o antigo decreto-lei com roupagem um pouco diferente. Competente para emiti-la é o presidente da República, em caso de relevância e urgência (CF,art. 62). A moderna doutrina européia tem procurado demonstrar a total incompatibilidade do decreto-lei para a criação de crimes e penas...Quanto à doutrina italiana, vale lembrar  a opinião de Fiandaca e Musco: ‘As garantias inerentes ao princípio da reserva de lei se eliminam ou se atenuam no caso de expedição de normas penais mediante decreto-lei: não só o direito de controle das minorias é desconsiderado, mas as mesmas razões de necessidade e urgência que justificam o recurso ao decreto-lei contrariam aquelas exigências de ponderação que não podem ser eliminadas em sede de criminalização das condutas humanas.’ Para a criação de crimes e penas ou medidas de segurança ou para restrição de qualquer dos direitos fundamentais nunca estará presente o requisito  urgência assinalado no art. 62 da CF. Não que não haja, às vezes, urgência na criminalização de uma determinada conduta humana, não; o fundamental é que toda norma com caráter penal  tem que seguir rigorosamente o procedimento legislativo previsto na Constituição para as leis ordinárias (CF, arts. 61 e ss), isto é, projeto tem que ser apresentado, discutido, votado, aprovado, promulgado, sancionado e publicado, ensejando-se a possibilidade de ampla discussão, inclusive pelas minorias. Para restrição de direitos fundamentais, estabelecidos democraticamente pelo legislador constituinte, só esta via é possível. Como se sabe, historicamente, esses direitos foram reconhecidos e passaram a integrar as Cartas Magnas der todos os países civilizados, para evitar o abuso do Estado absoluto, de todo-poderoso chefe da Nação...Devemos falar em monopólio da lei, mas não qualquer lei, pois só é válida a  lei formal do Legislativo.” [8]

E novamente se alude a Manoel G. Ferreira Filho quanto á condição de constitucionalidade legal. Expõe oeste insigne jurista: “Não faz dúvida que a lei está sujeita à condição de constitucionalidade. Só é válida se se coaduna formal e materialmente com o preceituado pela Constituição. Assim, a validade da lei depende, por um lado, de um condicionamento formal. Este resulta das normas que regem o processo de sua elaboração (competência,prazos, etc.). Mas igualmente de um condicionamento material. De fato, o conteúdo da lei tem de estar sintonizado comas regras materiais que edite a constituição. Isto quer dizer que, havendo a Constituição preordenado o conteúdo da lei, esta não pode contradizê-lo sob pena de invalidade. Este último ponto concerne aos direitos fundamentais. Com efeito, para preservá-los é que mais freqüentemente a Constituição pré-orienta a lei. Ademais, quanto a eles são estipulados garantias específicas, cuja violação importa inconstitucionalidade.” [9]

Como diz Francisco A. Toledo, “ora, a medida provisória, por não ser lei, antes de sua aprovação pelo Congresso, não pode instituir crime ou pena criminal (inciso XXXIX). Se o faz choca-se com o princípio da reserva legal, apresentando vício de origem que não se convalece pela sua eventual aprovação posterior, já que pode provocar situações e males irreparáveis.” [10]

                           À sirga, ainda sobre a égide de decreto-lei, o HC 55191/AL–ALAGOAS.HABEAS CORPUS Relator(a): Min.MOREIRA ALVES Julgamento:  05/10/1977 Órgão Julgador:  TRIBUNAL PLENO Publicação:  DJ 18-11-1977 PG- RTJ VOL-00086-02 PP-00408, do qual se reproduz reduzido trecho:   “...Por outro lado, e ainda partindo da premissa que partiu o impetrante, não se pode afastar o vício de incompetência para legislar sobre direito penal por meio de Decreto-Lei, sob o fundamento de que o Diploma impugnado foi aprovado pelo Congresso Nacional... A  aprovação do Congresso Nacional  não tem o condão de mudar a natureza do Decreto-Lei, transformando o em Lei, e permitindo-lhe, portanto,extravasar do âmbito estreito em que é admitido. Portanto, se correta estivesse para mim a premissa assentada pelo impetrante - art. 2º,  caput, do Decreto-Lei 326/67 criou modalidade nova de apropriação indébita-  não teria dúvida em considerá-lo inconstitucional.”

E hoje, com a redação atual do art. 62, atuais são os textos adrede mencionados, pelo que, sem temor algum, medida provisória para lei penal sancionadora não é, senão,  um indiferente legal.[11]

E assim se pode concluir com José Afonso da Silva: “As normas da ordem jurídica, consoante temos visto, fundamentam sua validade na constituição (no Brasil, Constituição Federal), sob dois aspectos:  a) formalmente, enquanto devem ser formadas por autoridades criadas de acordo com ela, dentro da esfera de competência conforme o procedimento por ela estabelecido; b) formalmente, enquanto o conteúdo  de tais normas devem ajustar-se aos preceitos da constituição. Nisso se manifesta o princípio da supremacia das normas constitucionais na ordem jurídica nacional- de todas as normas constitucionais, devemos frisar bem- e, isso é o primeiro sinal de sua eficácia, quer em relação às normas que lhe precedem, quer quanto às que se lhes seguem.” [12]

A uma ou duas. Ou o Brasil é um estado democrático de direito ou não passa de disfarçado e hipócrita Estado totalitário e absolutista!

Notas:

 

 

[1] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. Malheiros: SP,2001.  Também antes mesmo da EC 32/01, já assim dizia  FERREIRA FILHO, M.G. Comentários à constituição Brasileira de 1988. Saraiva: SP, 2000. De igual modo: PRADO, Luiz R..  Comentários ao Código Penal. RT:SP, 2003. MIRABETE, J. F.  Manual de Direito Penal. Atlas: SP, 2005.

[2] Tratado de Derecho Penal.  P. General. Comares: Granada, 1993.

[3]  Derecho Penal. P. General. Astrea: B. Aires, 1994.

[4] Correspondem de certo modo, às leis complementares brasileiras. Segundo o art. 81, da Const. Federal  da Espanha diz: “1. São leis orgânicas as relativas ao desenvolvimento dos direitos fundamentais e as liberdades públicas, as que aprovem os Estatutos de Autonomia e o regime eleitoral geral e as demais previstas na Constituição. 2.A aprovação, modificação ou derrogação das leis orgânicas exigirá maioria absoluta do Congresso, em votação final sobre o conjunto do projeto.” Também as STC 25/84; 160/86.

[5]  Principios de derecho penal. P.General. Akal/Iure: Madrid, 1998. De igual modo VALLEJO, Manuel J.  Los Princípios Superiores del Derecho Penal. Dickinson:Madrid, 1999.

[6] Derecho Penal. P.General. Reppertor: Barcelona, 1996.

[7] A medida provisória e o princípio da legalidade. RT, ano 78, out.1989- 648/367/369.

[8] A lei formal  como fonte única do direito penal (incriminador).  RT, ano 79, jun.1990- 656/257/268.

[9] Direitos Humanos fundamentais. Saraiva:SP, 2000.

[10] Princípios Básicos de Direito Penal. Saraiva: SP, 1994.

[11] "O HC nº 888.849-3/3-SP, de 20/01/06, rel. Des. Vico Mañas, decidiu  pela

impossibilidade de medida provisória legislar penalmente, inclusive de modo

mais favorável ao réu."

[12]  Aplicabilidade das normas constitucionais. Malheiros: SP, 2001.

 

Como citar o texto:

PAGLIUCA, José Carlos Gobbis.Medidas provisórias e Direito Penal (em particular o estatuto do desarmamento). Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 170. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/1115/medidas-provisorias-direito-penal-particular-estatuto-desarmamento-. Acesso em 20 mar. 2006.

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