SUMÁRIO:

1. Considerações introdutórias.

2. Tutela de urgência e tutela da evidência.

3. Classificação tradicional das espécies de tutela jurisdicional.

4. A Tutela diferenciada na experiência brasileira recente.

5. Provimentos liminares.

6. Antecipação de tutela com e sem nota de liminar.

7. Cautela e antecipação de tutela "declarativa".

 

1. Considerações introdutórias.

Desde o despertar do mundo jurídico nacional para o problema da tutela de urgência, determinado em grande medida pelo tratamento que o CPC de 1973 dedicou ao processo cautelar, vem crescendo de ponto em alguns círculos da doutrina a preocupação com o tratamento nem sempre sistemático e ordenado que os operadores do processo têm dedicado ao tema, particularmente no que atine à necessária e importante distinção entre a tutela propriamente cautelar e a antecipação da tutela que ordinariamente se conteria na sentença de mérito a ser proferida em processo de conhecimento.

É fato conhecido o de que os especialistas não se vêm entendendo quanto a essa fundamental e necessária distinção. Diferentes concepções do próprio fenômeno da cautelaridade conduzem a conclusões distintas sobre os traços discretivos entre a chamada tutela assecuratória e as demais, ou mesmo sobre a existência deles, pois é conhecida a opinião segundo a qual sequer se pode identificar a tutela cautelar como um tertium genus defluente do mesmo critério classificatório do qual emergem a de conhecimento e a de execução.

O fenômeno mais preocupante, porém, não se passa na esfera doutrinária, onde as dissonâncias, à primeira vista, poderiam circunscrever-se ao plano acadêmico, sem repercussões mais importantes no dia-a-dia da atividade jurisdicional. O que de mais sério se passa é que a tutela genericamente dita diferenciada vem sendo usualmente tratada no Foro com a mais completa despreocupação relativamente ao correto enquadramento das medidas que ela comporta na sua exata categoria, como se nada importasse a diferença entre cautela, liminar e tutela antecipada, ou como se essa diferenciação fosse destituída de reflexos práticos.

Na labuta forense, constata-se diuturnamente a ocorrência de distorções dignas do nome que alhures lhe apusemos de patologia da tutela de urgência - sem exagero algum, pois talvez coubesse até falar-se de teratologia. Com grande desenvoltura, têm sido requeridos e deferidos em juízo, sob a invocação absolutamente imprópria de medida cautelar, provimentos jurisdicionais claramente satisfativos, no sentido de que esgotam completamente a lide, sem deixar resíduo algum capaz de servir de objeto a outro processo. Logo veremos que essa despreocupação pode conduzir, e por vezes tem conduzido, a resultados catastróficos, entre eles a inocultável e completa supressão da garantia constitucional do contraditório. É que, não satisfeitos em confundir cautelaridade com transitoriedade, os operadores do processo freqüentemente perdem a perspectiva até mesmo da provisoriedade dos provimentos conceitualmente destinados a uma duração limitada no tempo. Daí advém a preocupação antiga, renovada agora e mais do que nunca aguda em face da adoção pelo vigente CPC, em seu novo art. 273, de um mecanismo de antecipação de tutela para o processo de conhecimento, até então infenso, com raras exceções, a essa modalidade de tutela diferenciada.

Este escrito não carrega qualquer veleidade de erudição nem aspira à disputa de lugar entre as lições dos mestres. É sobretudo o resultado da observação e das preocupações de um homem do Foro. Tem o exclusivo sentido de uma provocação aos especialistas para que repensem o tema e procurem uma definição mais clara dos lindes entre a cautela e a tutela antecipada, não em termos meramente doutrinários, mas nos que sejam capazes de solucionar o problema concreto com o qual se depara e se aflige o profissional do Direito. Estamos a fazer uma pública exposição de nossa perplexidade, na esperança de que a renovada meditação dos doutos possa clarear melhor as questões envolvidas, o que se torna mais necessário e mais urgente no momento em que se incorpora ao procedimento ordinário do processo de conhecimento o mecanismo de antecipação de tutela do novo art. 273 do CPC. Bem por isso, e como pretensão maior do que essa não nos inspira, abstemo-nos, propositadamente, de citar lições alheias, por demais conhecidas, que são as dos grandes processualistas que, aqui e alhures, têm cuidado do tema. Atrevemo-nos, ainda assim, a oferecer uma proposta de critério discretivo - sem ignorar que ela desagradará certamente a algum setor da doutrina, pois temos três grandes especialistas com obra importante dedicada ao processo cautelar, e igual número de posições contrastantes quanto ao tema que nos ocupa.

2. Tutela de urgência e tutela da evidência.

A celeridade na entrega da prestação jurisdicional corresponde a um dos mais ardorosos e insistentes reclamos dos processualistas e dos profissionais do Direito em nossos dias, como valor geral a ser perseguido em toda a atividade judiciária. A preocupação com brevidade é universal e quase obsessiva. Dentre todas, porém, algumas situações são especialmente necessitadas dessa rapidez na solução do litígio mediante alguma modalidade de "tutela diferenciada", ou porque o provimento judicial na espécie só será efetivo se for rápido, ou porque a singeleza do litígio dispensa e até desaconselha o caminho longo e talvez tortuoso do trâmite mais solene. Essa não é uma realidade nova: nela se inspiravam os interdita romanos. Daí a popularidade dos procedimentos abreviados (sumários formais), dos juízos especiais simplificados, das ações de modelo monitório e até mesmo dos chamados sucedâneos jurisdicionais, expedientes com os quais se busca, a todo custo e por vezes com demasiada sofreguidão, fugir à lenta, complexa e pesada tramitação do processo "comum".

De outra banda, outras vias de encurtamento do tempo consumido entre o ajuizamento da demanda e a obtenção de um resultado efetivo podem consistir na introdução de mecanismos diferenciados no seio do mesmo procedimento ordinário. Na impossibilidade de conciliar por completo os interesses da celeridade e da segurança jurídica, separam-se em dois momentos do processo o provimento jurisdicional provisório e o definitivo, com graus de celeridade e de certeza evidentemente diferentes, porque os níveis de aprofundamento da cognição judicial são necessariamente diversos, como distintos são, por razões de lógica inelutável, os meios de convencimento disponíveis para o Juiz. Se a demora na entrega da prestação jurisdicional cria o risco de sua inutilidade prática quando ao fim sobrevier, ou de sua reduzida efetividade prática, podem-se instituir mecanismos assecuratórios tendentes a preservar o bem da vida em disputa, colocando-se sob custódia judicial a fim de que ele se conserve com o mínimo de desgaste ou deterioração até que se decida de sua titularidade. Se, por outro lado, a alta probabilidade de ter razão o autor desde logo se impõe ao espírito do Juiz, razoável é, por igual, que àquele se outorgue, mesmo provisoriamente, a fruição desse bem durante o curso do processo ou, quando menos, a subtração desse desfrute ao réu. Tem-se, no primeiro caso, a tutela da urgência e, no segundo, a tutela da evidência. Muito freqüentemente, esses dois requisitos são cumulativamente exigidos para que algum tipo de medida se possa antecipar à sentença final de conhecimento: a especial periclitação do resultado útil do processo e a particular plausibilidade das alegações do requerente. Têm-se de conjugar, então, o periculum in mora e o fumus boni iuris.

É perfeitamente correto afirmar-se, pois, que a tutela diferenciada se pode orientar ora pelo valor urgência, ora pelo valor evidência, assim como pode contemplar simultaneamente a ambos - como, aliás, é o mais freqüente. Quando o Juiz concede uma antecipação de produção de prova, está privilegiando a urgência em detrimento de qualquer outro interesse, sem se precisar cogitar da maior ou menor probabilidade de ter razão o requerente. Também assim quando autoriza o embargo liminar de obra nova. De outra banda, para deferir uma liminar possessória, basta-lhe uma presunção de veracidade do alegado, baseada em um dado objetivo, independentemente de qualquer idéia de urgência, assim como também ocorre na outorga da tutela antecipada com fundamento no abuso do direito de defesa por parte do réu (art. 273, inc. II, do CPC, com a redação resultante da Lei nº 8.952). Já no autorizar um seqüestro, terá de indagar da presença de cada um desses dois pressupostos. Essa primeira distinção seria certamente insuficiente para delimitar os campos da cautela e da antecipação da tutela "principal" mas, a par de outras considerações a serem logo desenvolvidas, poderá contribuir para o deslinde.

3. Classificação tradicional das espécies de tutela jurisdicional.

Quando se vai a juízo em busca da declaração do direito que se pensa ter (quanto à sua existência, sua configuração, seu alcance, seu modo de ser), fazemos instaurar um processo de conhecimento, essencialmente (quando não exclusivamente) declaratório, no sentido de que se busca espancar dúvida ou incerteza quanto à pertinência subjetiva de um determinado bem da vida juridicamente protegido. Aí se exerce, em regra, o máximo de cognição possível, dado que se trata de apurar se, o que e quanto alguém deve a outrem, ou a quem pertence a posse ou o domínio de alguma coisa, ou como e em que medida determinados fatos produzem certas conseqüências jurídicas, e assim por diante. Em linguagem carneluttiana, a lide que se contém no processo consiste em uma pretensão resistida: o autor se atribui uma posição de supremacia jurídica que o réu se recusa a admitir. Do ângulo de vista do Juiz, o ponto de partida é uma completa insciência, e portanto uma total neutralidade relativamente às posições sustentadas por cada um dos litigantes; seu espírito está inteiramente livre de inclinação ou tendência, pronto a ser convencido a qualquer dos sentidos possíveis. À formação desse convencimento é que se há de orientar todo o esforço processual dele mesmo e das partes. Os meios postos à disposição de todos para a busca desse objetivo hão que ser os mais amplos; o debate o mais aberto; as vias de impugnação as mais variadas. Trata-se de conhecer, isto é, de apreender a realidade fática e jurídica do litígio para solvê-lo segundo o Direito, atribuindo a cada qual dos desavindos o que lhe corresponda. A declaração (o accertamento, como talvez mais expressivamente dizem os italianos) é o produto final por excelência do trabalho jurisdicional, embora se possa apresentar acrescida do elemento condenatório ou do constitutivo (elementos que, segundo algumas opiniões cuja análise aqui não vem a pêlo, já não pertencem ao âmbito do processo de conhecimento no mais estrito sentido).

Em contraposição, quando o socorro judicial é procurado com o fim de tornar efetivo e concreto no mundo dos fatos o comando contido na sentença (ou em documento outro ao qual a lei atribui equivalente poder de submeter o sujeito passivo), já não se cuida de declarar ou conhecer. De antemão se sabe, ex hypothesi, qual é o direito do caso concreto, e tudo o que se quer é realizar esse direito, estabelecendo correspondência entre o estado jurídico previamente definido e o estado fático. As técnicas adequadas à busca desse objetivo são profundamente diversas daquelas pertinentes à atividade jurisdicional de conhecimento: apreendem-se valores ou bens e transferem-se de um para outro patrimônio; exercem-se pressões psicológicas e até físicas sobre a pessoa do executado para que se submeta ao comando; utiliza-se a atividade de terceiros para produzir a situação fática que o executado deveria ter produzido. O promovente da ação acha-se ex ante em posição sobranceira àquela do demandado; a situação inicial relativa não é de igualdade ou equilíbrio, mas de superioridade e submissão. A lide se traduz em pretensão já definida como induvidosa, mas ainda assim insatisfeita. O órgão jurisdicional não parte de uma condição de incerteza e neutralidade dialética, mas do pressuposto de que o exeqüente deve ser satisfeito em seu reclamo. O processo é de execução.

Uma terceira possibilidade é a da formação de processo cautelar, onde não se busca nem o acertamento do direito, nem a realização prática de um direito que já é certo, mas a tutela da segurança como um valor em si mesma. O ofício judicial é invocado para prover no sentido de garantir que o resultado útil de um processo (de conhecimento ou de execução; em andamento ou a instaurar-se) seja assegurado contra os riscos decorrentes da demora na sua ultimação ou das alterações que se possam introduzir, maliciosamente, ou não, no estado de fato sobre o qual a futura prestação jurisdicional deverá influir. O processo assim instaurado supõe, ao menos hipoteticamente, um outro processo, cujo resultado se trata de resguardar. (Pode suceder que este processo, dito principal, sequer venha a ter existência efetiva, ou porque as partes entrementes se compõem, ou por desinteresse do sujeito ativo ou por qualquer outra razão; entretanto, isso não afasta a realidade de que, ao instaurar-se o processo cautelar, isso só se admitiu em contemplação de processo principal que se esperava sobrevir). A lide, supondo-se que haja, consiste na pretensão à segurança manifestada pelo interessado na garantia, à qual se opõe a resistência do outro interessado. O Juiz também aí parte de uma situação de incerteza quanto ao cabimento, ou não, do provimento acautelador, devendo aquilatar da sua necessidade e conveniência; para esse efeito, necessariamente terá de lançar os olhos sobre a "lide principal", mas não para decidir dela, sim, e somente para verificar, em termos de probabilidade, se há mesmo o que acautelar (fumus boni iuris). De outra banda, terá de avaliar se o resultado prático esperado do processo principal corre efetivamente algum risco relacionado ao correspondente tempo de tramitação (periculum in mora). Não é difícil perceber que também aí se desenvolve típica atividade judicial de conhecimento, mas com a particularidade de voltar-se ela para esses aspectos particulares da plausibilidade da pretensão "principal" e do perigo na demora. A cognição exercida quanto à lide principal é imprescindível, mas superficial e não-exauriente, já que o juízo a emitir-se será de probabilidade e não de certeza.

Como em quase todas as classificações, o critério há que ser o de predominância de um desses três componentes, nunca o de sua exclusividade. O processo de conhecimento pode agregar elementos de cautela (como o embargo liminar nas ações de nunciação de obra nova) e de execução (ações executivas lato sensu: despejo, reintegração de posse, etc.). No processo executório há cognição, mesmo que rarefeita e punctualizada: basta lembrar a chamada exceção de pré-executividade e o exame que se faz da solvência, ou não, do devedor; elementos cautelares também nele se intrometem, como a caução exigível na execução provisória. De resto, incontáveis situações existem em que se adotam, seja no processo de conhecimento, seja no de execução, medidas cautelares sem processo cautelar. Nem falta, aliás, quem negue a autonomia do processo cautelar, exatamente a partir da idéia de serem os provimentos acauteladores passíveis de emissão no âmbito de qualquer processo não-cautelar. Essa é outra discussão em que não nos embrenharemos, sobretudo porque nossa referência é o Direito nacional legislado, no qual se acha consagrado o processo cautelar como tertium genus.

Por motivo similar, abster-nos-emos de questionar a exatidão científica da classificação tripartida que vem de ser mui sucintamente exposta. Fica apenas registrado que também no particular há vozes dissonantes, a sustentar a heterogeneidade de um critério classificatório que adita às funções de conhecimento e de execução um modo de exercício da atividade jurisdicional que tanto pode estar presente em uma quanto na outra.

4. A tutela diferenciada na experiência brasileira recente.

As ações cautelares, como regra, admitiram sempre a antecipação de tutela pela via do mandado liminar (em estrito sentido ou após justificação com oitiva do requerido). Aliás, é fato bem conhecido, relevante para os propósitos do presente estudo, que em grande número de casos a cautela só interessa ao requerente se lhe for deferida in limine litis. Ao revés, até o advento da Lei nº 8.952/94 e a redação por ela emprestada ao art. 273 do CPC, a norma sempre fora o descabimento de tal medida no processo de conhecimento, com exceções raras e casuisticamente delimitadas na legislação processual.

Ora, como os trabalhadores do processo, particularmente os advogados, dificilmente aceitam com resignação a perspectiva de uma demora imprevisível, mas certamente longa na obtenção dos resultados que a sentença há que produzir, passou-se a utilizar com notável freqüência o falso processo cautelar como artificioso caminho para alcançar, contra a vontade da lei, um provimento judicial initio litis sobre matéria que deveria pertencer ao processo de conhecimento e, antes da Lei nº 8.952/94, só se poderia conter no seu julgamento final. Construiu-se, à margem da lei, um dispositivo de abreviação da entrega da prestação jurisdicional, ainda que em detrimento da segurança e qualidade dessa mesma prestação. Trata-se de fenômeno semelhante ao que está na base de outras tentativas de encurtamento do tempo gasto no processo, como a sumarização formal (sem prejuízo da plenitude da cognição), a multiplicação dos títulos executivos, a adoção de procedimentos de modelo monitório e assim por diante - com uma importante diferença: no caso de que nos ocupamos, não se quis esperar pelo legislador.

Como igualmente é de geral sabença, de outra banda, não é rara uma certa ligeireza no deferir essas falsas cautelas em caráter liminar e inaudita altera parte, por vezes como simples e brevíssima referência, à guisa de fundamentação, às razões do pedido - ou nem mesmo isso. Liminares supostamente cautelares, mas envolvendo o fundo mesmo do litígio e, bastas vezes, profundamente invasivas da esfera jurídica do demandado, têm sido concedidas por Juízes assoberbados e pressionados por uma carga esmagadora de trabalho, sem oitiva do requerido e sem qualquer fundamentação digna desse nome.

Paralelamente, vicejou entre nós a ominosa doutrina segundo a qual os provimentos cautelares podem ser "satisfativos", de sorte que até nas classificações correntes dessas medidas aparece a categoria correspondente, como se a locução cautela satisfativa não envolvesse uma evidente e pasmosa contradição em termos. Pelo que nos diz respeito, falar-se de cautela satisfativa é tão desarrazoado e inaceitável quanto à idéia de gelo quente. Ou bem se fica com o substantivo ou com o adjetivo; ou se trata de cautela e não satisfaz, ou é medida satisfativa e não pertence ao universo das cautelas. Mas não parece ser esse o pensamento dominante, que aceita sem maiores reservas a esdrúxula simbiose - o que, aliás, é suficiente para evidenciar a falta de uma conceituação segura da tutela cautelar.

Tanto não bastasse, consolidou-se a praxe - apoiada, aliás, em doutrina da melhor qualidade - de reunir nos mesmos autos o processamento da ação cautelar e o da principal. Ou, o que é pior, apensar aos autos da ação principal aqueles da cautelar, logo após o deferimento da liminar nesta, ignorando-se por inteiro, desde então, a sua existência, processando-se a ação principal como se fosse a única, a ponto de, em alguns casos, sequer ser lembrada a necessidade de, ao final, julgar-se também a ação de cautela, mesmo que seja nos autos da outra.

Combinados e reciprocamente potencializados esses virulentos ingredientes, o resultado pode ser assustador. Concedida uma dessas liminares a título de cautela, mas em realidade envolvendo o fundo do direito, sem audiência da parte contrária e em termos tais que, por ser "satisfativa" a medida, decorre o completo e total atendimento da pretensão do autor relativamente àquela lide, vale dizer, a irreversível atribuição a ele do bem da vida sob disputa - resulta esgotada por inteiro toda a jurisdição possível no caso concreto. E tudo isso com profundidade quase nula de cognição e, o que é mais, sem ter havido contraditório algum! É isso a negação dos próprios objetivos do processo e de sua estrutura necessariamente dialética; é, mais imediatamente, a postergação inocultável de uma garantia constitucional expressa das mais importantes.

Não se trata de situação imaginada ad terrorem ou de criação cerebrina; nem mesmo se há que dizer que seja ocorrência rara. A experiência do Foro é riquíssima em ocorrências da espécie. De resto, sendo esse o caso extremo e particularmente preocupante, é apenas um pouco menos grave aquele outro em que, mesmo remanescendo um resíduo a ser apreciado no chamado processo principal, tudo começa pelo deferimento de uma medida extremamente gravosa para o demandado, desorganizadora de sua vida econômica e jurídica, sem que ele haja tido em tempo útil oportunidade de a ela opor-se. A partir da repulsa a uma excessiva preocupação com proteção ao demandado (reus sacra res), inspiradora das soluções processuais tradicionais, salta-se ao extremo oposto da desgarantia e do sacrifício da idéia de processo como actum tria personarum.

5. Provimentos liminares.

A fim de se poder desde logo desembaraçar o raciocínio de um fator de perturbação, importa deixar registrado a esta altura que o adjetivo liminar não designa uma categoria pertencente à mesma ordem de idéias das expressões cautela e antecipação de tutela. Embora pareça comum a todas essas denominações a idéia de provisoriedade, nem mesmo isso é verdade, pois pode haver provimento judicial liminar sem esse caráter transitório, como é o caso do indeferimento da petição inicial in limine litis: se irrecorrida ou confirmada, a correspondente sentença exaure a jurisdição possível no processo em questão e, sem embargo do que reza o art. 267, inc. I, do CPC, pode ser inclusive definitiva do mérito (baste, para não falar de hipóteses mais complexas, comparar o disposto no art. 295, IV, com o teor do art. 269, IV, do mesmo Código).

Como no sentido comum dos dicionários leigos, liminar é tudo aquilo que se situa no início, na porta, no limiar. Em linguagem processual, a palavra designa o provimento judicial emitido in limine litis, no momento mesmo em que o processo se instaura. A identificação da categoria não se faz pelo conteúdo, função ou natureza, mas somente pelo momento da prolação. Nada importa se a manifestação judicial expressa juízo de conhecimento, executório ou cautelar; também não releva indagar se diz, ou não, com o meritum causae nem se contém alguma forma de antecipação de tutela. O critério é exclusivamente topológico.

Rigorosamente, liminar é só o provimento que se emite inaudita altera parte, antes de qualquer manifestação do demandado e até mesmo antes de sua citação. Não é outra a constatação que se extrai dos próprios textos legais, que, em numerosas passagens, autorizam o Juiz a decidir liminarmente ou após justificação. Assim formulada alternativamente, a proposição já sugere que, na segunda hipótese, não se trata de liminar, pelo menos em estrito sentido. Certo é, entretanto, que se tem usado, sem maiores inconvenientes e sem prejuízo da clareza das idéias, a designação de liminar também para os provimentos judiciais proferidos após justificação, na qual se tenha inclusive ouvido o demandado. O que se não pode tolerar é o alargamento do conceito até o ponto de confundir com liminar toda e qualquer providência judicial antecipatória, isto é, anterior à sentença.

A maior parte das antecipações de tutela a cujo manejo estamos habituados guarda essa característica de situar-se no limiar do procedimento. Assim, a liminar cautelar, a liminar possessória, a liminar em mandado de segurança, etc. Por aí talvez se possa explicar a tendência a crer que antecipação e liminar sejam noções correlatas e inseparáveis. Basta, porém, que se examine mesmo superficialmente a inovação introduzida pelo atual art. 273 do CPC para perceber-se a erronia dessa suposição. A antecipação de tutela da qual se cuida aí pode tomar a forma de uma liminar (vale dizer, conter-se em decisão proferida no liminar do procedimento), mas de modo algum é obrigatória essa localização, ou inerente à natureza da antecipação. Tenha-se em conta que um dos fundamentos possíveis da decisão antecipatória regulada por esse texto normativo é o abuso do direito de defesa, que evidentemente pressupõe já havê-lo exercitado o réu e, portanto, achar-se o processo em fase mais adiantada do que aquela onde podem ter lugar as verdadeiras liminares.

6. Antecipação de tutela com e sem nota de liminar.

Ficou visto, pois, que (a) toda liminar é antecipatória de tutela; (b) nem toda antecipação de tutela é liminar, e (c) a antecipação de tutela pode ser, ou não, cautelar. Esclarecido também que o conceito de liminar é estritamente topológico, dizendo respeito à cronologia do processo, e não à sua substância ou função, resta dizer duas palavras ainda sobre cautela e tutela antecipada. (Sim, antecipada, e não antecipatória: antecipatório é o provimento judicial correspondente).

Anotação cuja rememoração se faz oportuna é a de que no processo cautelar, mais do que em outros, abre-se margem à emissão de provimentos liminares. Processo particularmente impregnado da preocupação com a urgência, abre espaço necessariamente maior à antecipação dos efeitos do provimento buscado, vale dizer, antecipação da cautela. É possível que essa realidade tenha contribuído para a tendência errônea a supor-se que toda liminar é cautelar, quando em realidade essas duas qualificações correspondem a diferentes critérios classificatórios. Trata-se de uma antecipação de tutela (cautelar) que coincide ser, outrossim, dispensada em caráter liminar.

Considerem-se agora dois momentos do processo cautelar: o de sua instauração, quando o Juiz apenas recebeu a petição inicial, e o outro extremo temporal, quando o processamento já se completou e os autos estão em condições de receber sentença final. Se o Juiz examina os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, convencendo-se de sua presença, no primeiro daqueles momentos deferirá a cautela em caráter liminar (e provisório). Se apenas ao final os constata, só então prestará a tutela no momento "normal", como definitiva. A eficácia prática do provimento é a mesma em um e outro caso; variam apenas o momento e a definitividade.

Se o sistema jurídico não o exclui para a espécie, pode também suceder que o deferimento venha a ocorrer em outro momento qualquer da tramitação do processo. Também nessa hipótese ocorre antecipação da tutela, porque o ato judicial faz recuar para um momento anterior ao ordinário a eficácia que, em regra, seria da sentença apenas. Vale dizer, a sentença do processo cautelar ainda não existe, mas sua eficácia já se opera como se ela existisse. Esse é o sentido da antecipação.

O mesmo pode suceder relativamente ao processo de conhecimento, nos casos em que a lei autoriza decisão antecipatória. Liminarmente, ou não (i. é, no momento inicial do processo ou em qualquer outro anterior ao da sentença final), constatando a presença dos requisitos legais e do correspondente requerimento do interessado, o Juiz entrega ao autor prestação antecipa a da proteção por ele pretendida a seu invocado direito, necessariamente a título provisional. Tal como na hipótese antes considerada, de antecipação da cautela, o provimento destina-se a duração limitada no tempo, não maior que a do próprio processo.

Daí se vê que, com ou sem a condição de liminar, seja em processo cautelar ou no de conhecimento, a tutela antecipada, sem ser substancialmente diversa da definitiva, dela se distingue pelas notas da provisoriedade e do adiantamento temporal em relação ao momento ordinário da prestação jurisdicional. Mais uma vez, pode-se dizer que a questão é apenas de momento processual.

7. Cautela e antecipação da tutela "declarativa".

Retornemos, pois, à questão central, a saber, a de distinguir com segurança o provimento cautelar (sem importar se antecipado, ou não) daquele outro em que a prestação jurisdicional adiantada é satisfativa e, pois, "declarativa", no sentido de que pertence ao campo do processo de conhecimento. Daquilo que até aqui se veio exposto, parece resultar claro que os pressupostos da concessão de uma e outra medida, na legislação e na doutrina, são fundamentalmente os mesmos. Alhures se tem de buscar, portanto, a referência para a distinção.

Embora se costume dizer, sem erro, que o processo cautelar é duplamente instrumental, ou "instrumental ao quadrado", por ser instrumento de outro instrumento (o processo "principal"), essa realidade não é suficiente nem adequada para a identificação da função cautelar. Com efeito, a assertiva só é verdadeira quando realmente exista um processo separado em cujo bojo a tutela jurisdicional cautelar seja exercida. Mas, como já ficou registrado, isso nem sempre ocorre, pois provimentos tipicamente cautelares podem emanar dos autos do processo de conhecimento e menos freqüentemente daquele de execução. Mais: há quem negue no plano ontológico a entidade chamada processo cautelar, que seria criação cerebrina do legislador - tese em certa medida reforçada pela notória resistência dos profissionais do Foro ao tratamento da ação cautelar como algo autônomo e independente da ação dita principal. Também não há que ser nesse critério formal, portanto, que se irá encontrar base satisfatória para a distinção.

Para esse efeito, pensamos que a mais segura base está na própria função do provimento jurisdicional. Ao passo que a função cautelar se exaure na asseguração do resultado prático de outro pedido, sem solucionar sequer provisoriamente as questões pertinentes ao mérito deste, a antecipação de tutela supõe necessariamente uma tal solução, no sentido de tomada de posição do Juiz, ainda que sem compromisso definitivo, relativamente à postulação do autor no que se costuma denominar "processo principal" (no caso, o único existente). Em sede cautelar, certamente se faz algum exame dessa pretensão, mas com o fito único de apurar se ela é plausível (presença do fumus boni iuris) e se a demora inerente à atividade processual pode pôr em risco o seu resultado prático (periculum in mora). Não assim na hipótese de antecipação da tutela: aí, o sopeso da probabilidade de sucesso da postulação "principal" (e única) se faz para outorgar desde logo ao postulante o bem da vida que, a não ser assim, só lhe poderia ser atribuído pela sentença final. Na expressão de Pontes de Miranda, no particular insuperável, cuida-se de adiantamento da eficácia da sentença. É uma das tantas situações nas quais o Direito, desavindo com o tempo, busca ludibriá-lo mediante artifício: aquilo que ainda não existe (a sentença) produz efeitos como se já fosse presente. Nada disso é verdade com relação à tutela cautelar (salvo, é claro, se com respeito a ela mesma ocorre antecipação): em processo específico, cujo objeto se esgota na prestação de segurança, ou no próprio processo "principal", o provimento garante ao interessado não o próprio bem da vida primariamente posto em liça, mas a certeza de

 

Como citar o texto:

FABRÍCIO, Adroaldo Furtado..Breves Notas sobre Provimentos Antecipatórios, Cautelares e Liminares. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/114/breves-notas-provimentos-antecipatorios-cautelares-liminares. Acesso em 1 abr. 1999.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.