I - INTRODUÇÃO

            O Instituto da discricionariedade administrativa é uma técnica antiga e sempre foi entendido como uma faculdade legal do poder público, imune ao controle judicial.

            Nasceu no Conselho de Estado da França e se desenvolveu por toda Europa Continental, fazendo-se presente no direito público europeu do século XVIII.

            Não resta dúvida que a construção do poder discricionário da Administração Pública surgiu após a Revolução Francesa de 1789, onde os poderes constituídos foram criados e separados para que fossem independentes e harmônicos entre si, humanizando mais a sociedade.

            Esta separação dos Poderes foi vital para a democracia, pois como a força central emanava do Rei, a criação do Poder Legislativo vinculou os súditos à lei, bem como o Poder Judiciário retirava do monarca o poder de julgar.

            Esse equilíbrio de forças foi suficiente para acabar com o Estado Absolutista, onde o poder centralizado no monarca sufragava o direito alheio.

            Com o fim do arbítrio que constituía a base do governo despótico, surgiram os princípios da legalidade, da soberania do povo e da separação de poderes  como fundamento de outras formas de governo, vinculados ao espírito e à força da lei.

            Nesse sentido, Montesquieu[1] parte do pressuposto de que a liberdade consiste no “direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem.”

            Essa liberdade normativa passou a ser a base de manutenção dos atos públicos, que passaram a ser vinculados através da lei.

            Por este fundamental princípio, o poder público começou a conviver com limites. Ou seja, o poder sendo limitado pelo próprio poder, para evitar abusos.

            Sucede que, naquela época, o Poder Executivo da França participava na elaboração das leis, quando exercia uma faculté d’empêcher através do direito de veto suspensivo. Era o Executivo escolhendo a legalidade a qual ele pretendia vincular-se através do monarca hereditário.

            Pois bem, a partir das idéias de Locke, Rousseau e Kant, dentre outros ilustres filósofos, dá-se a fixação da supremacia do Poder Legislativo, invertendo-se os conceitos anteriores, foi estabelecido que a lei era a voz do povo, pronunciada pelos seus representantes no parlamento.

            Nessa vertente, Locke[2] defendia um governo regrado pela lei, subordinando-se ao Poder Legislativo, pelo fato dele ser o responsável pelo texto legal que disciplinaria o próprio Poder Executivo.

            Locke afirmou também, que mesmo estando em um plano de superioridade, o Poder Legislativo estava sujeito a certas condições ou limites de exercícios.

            Jean-Jacques Rousseau,[3] contribuindo também para a configuração do princípio da legalidade administrativa, partiu da idéia de inalienabilidade e indivisibilidade da soberania, identificada com o exercício da vontade geral, tendo em vista o comum ou a utilidade pública, através da lei que o soberano atua e encontra os seus poderes, sendo o Poder Legislativo o coração do Estado.

            Por isto Rousseau,[4] deixou averbado que o Poder Executivo não é mais do que “a força aplicada à lei.”

            Dessa forma, contribuiu o jus-filósofo citado com a idéia de que os membros do poder executivo não possuem a faculdade de formar vontade autônoma, pois eles “não são senhores do povo, mas os seus oficiais”,[5]devendo o Poder Executivo exercer a lei.

            O terceiro percussor de uma concepção liberal do princípio da legalidade administrativa, Immanuel Kant, fundador de uma filosofia crítica que investigava as condições de objetividade do saber (a primeira versão de “Crítica da Razão Pura” é de 1781), defendia que a verdadeira expressão da soberania correspondia “a vontade coletiva do povo”.[6]

            Para Kant a racionalidade (vernunftrecht) moderna tem a missão de descobrir como a inteligência e a vontade humana podem alcançar suas finalidades supremas.

            Dentro de uma sociedade, Kant entendia que a moralidade se atém ao critério do respeito  e o direito (justiça) ao âmbito da coexistência pela lei, fruto da vontade popular.

            Dessa maneira, Kant[7] entendia:

“El ‘sujeto transcendental’ es el ‘legislador de la naturaleza’: el ‘sujeto de la filosofía práctica’ es el ‘hombre noúmeno’. La ley práctica suprema y universal de la razón es la seguinte: que la razón sea quien determine las acciones libres. (...) El mundo de la ética es el de la ‘legislación interna’ que apunta al deber como móvil de la acción; yel del Derecho, que permite otros móviles, es el mundo de la ‘legislación externa’. Derecho es ‘el conjunto de las condiciones bajo las cuales el arbitrio de cada uno puede conciliarse con el arbitrio de los demás según una ley universal de libertad.”

            Diferenciando os três poderes, Kant[8] deixou assente que eles não podem usurpar o espaço funcional alheio, devendo o Estado se manter dentro das leis da liberdade. Sendo que a lei ostenta a verdadeira autoridade natural, ficando proibido alguém opor-se à vontade do legislador.

            Essa tendência fortificada da lei como vontade suprema do povo se corporificou também nos séculos XIX e início do XX, onde os Poderes Executivo e Judiciário não podiam invadir a seara do texto legal, estabelecido pelo Poder Legislativo.

            Como se viu, em uma primeira fase da história do direito público, o rei, representante do povo e senhor das razões, passou a ser chefe do então novo Poder Executivo, limitado pela lei, criada por um também Poder (Legislativo) novo, livre e autônomo.

            A vinculação da Administração Pública à lei foi um grande passo para o direito público e para toda a humanidade, que passou a se submeter à regras legais e não à tirania do soberano.

            Dito isto, constata-se que a Administração Pública, bem como os demais Poderes legalmente constituídos para se movimentar são obrigados a elaborar atos discricionários, estabelecidos por uma outorga da lei como condição  de validade do juízo de valor, dentro de uma escolha livre de conveniência e de oportunidade.

            O chamado poder discricionário, portanto é excepcional e está vinculado à lei, que por não ter condição de prever todas as situações, com alguma objetividade e em tese, delega ao administrador público a competência de promover um juízo particular de escolha sobre determinado assunto, como será demonstrado no tópico posterior.

            Sucede, que a atual fase do direito público é voltada para a constitucionalização de suas normas, vinculadas à determinação suprema da Magna Carta.

            Aliás, no campo filosófico, Hegel,[9] já considerava a Constituição como o “espírito de um povo”, sendo “algo de incriado, embora produzido no tempo”, tendo cada povo “a constitucionalização, que lhe convém e se lhe adequa”.

            Pela constitucionalização do direito é possível penetrar na essência de atos públicos até então inexplorados por outros Poderes. O que era vedado, em homenagem aos princípios e normas da Constituição Federal, passou a ser permitido. Pois o Poder Judiciário no atual século e no final do século passado, alçou a condição, dentre outras, de fiscal de todos os atos públicos.

            Esta necessária fiscalização do Poder Judiciário sobre toda a sociedade, inclusive quanto aos atos públicos, possui o escopo de manter eficaz os princípios e as normas da Constituição, sem que se caracterize uma indevida ingerência de um poder sobre o outro.

            Assim, o que era proibido – controle do ato administrativo discricionário – controle externo (Poder Judiciário) – passou a ser permitido pela Constituição Federal.

            Apesar dessa alteração constitucional, a doutrina e a jurisprudência se encontram divididas, entendendo, sem unanimidade, que ainda é defeso a verificação do motivo, da oportunidade e conveniência do ato tido como discricionário pelo Poder Judiciário.

            Entendemos que é necessário um amplo debate sobre o assunto, pois todo e qualquer ato público não está imune ao controle de mérito pelo Poder Judiciário, guardião maior da Constituição.

            É preciso que haja a evolução total da doutrina, e que ela se desapegue da fase  arcaica do direito administrativo, onde prevalecia a concepção de que um Poder não poderia invadir a competência do outro, sob pena de quebra do princípio da independência constitucional, para se dar conta que o Poder Judiciário quando invalida o ato público, discricionário ou não, não está cometendo uma intromissão indevida, pois ele resguarda a eficácia da normatividade da Constituição, restituindo a sua força e o dever de que todos devem construir seus atos em conformidade com os preceitos Maiores.

            Assim, o rótulo do ato público pouco importa, em razão do efetivo controle judicial exercido pelo Poder Judiciário, como o responsável pela manutenção positiva da densidade da Carta Maior.

            Na atualidade, há o fim do mito da perfeição da lei (“império da lei”), por ela estar subordinada diretamente à Constituição.

            Houve uma profunda evolução do significado e do valor da Constituição, que acompanhou a radical mudança do modelo de Estado.[10] Assim a reserva da lei deu lugar à reserva de Constituição, alcançada pelo Estado-segurança (Sicherheitsstaat), que defende os interesses da sociedade através da segurança jurídica.

            Em muitos casos, a lei é “um recipiente vazio”,[11] onde o mito da sua perfeição já não vigora no direito público atual.

            Ao diminuir o efeito da lei, sendo ela a responsável pelo poder discricionário da Administração Pública, tendo em vista que a legalidade administrativa deixou de se vincular somente ao texto legal, não resta dúvida que também é deferido o controle judicial de tais atos de forma ampla.

            Isto porque os princípios e as normas da Constituição é que dão vigor à Lei e, conseqüentemente, a todo ato público, que deve guardar correlação direta com os mandamentos constitucionais, sob pena de invalidação.

            Com o fim do dogma da perfeição da lei, passou a legalidade administrativa a se vincular a um sistema aberto de regras e de princípios constitucionais.

            Devido a esta consolidação do Estado de Direito, as Constituições atuais possuem uma elaboração voltada aos direitos fundamentais do homem, invertendo-se a supremacia, visto que o Estado passou a ser controlado, para justamente proporcionar a todos o bem-estar.

            Agrega-se a este fato a transformação do Estado, que deixou de ser agressiva para consolidar-se em uma Administração prestadora e constitutiva.[12]

            Este recuo da Administração autoritária, fruto da evolução dos tempos, colocou de lado a agressividade para dar lugar à fase constitutiva de direitos, onde ela é chamada “a desempenhar uma atividade prestadora favorável aos particulares”,[13] se adaptando ao atual ambiente do Estado Democrático de Direito.

            Assim, “o acto administrativo deixou de ser visto apenas como uma agressão da esfera individual, para passar a ser igualmente um instrumento de satisfação de interesses individuais.”[14]

            O crescimento do Estado, com a expansão do Poder Executivo, trouxe em seu rastro o crescimento do seu controle pelo Poder Judiciário, inclusive quanto à conveniência, oportunidade e ao mérito dos atos administrativos.[15]

            Isto porque, a efetividade da Constituição conquistou o status pleno de normas jurídicas, através das quais se lêem e se interpretam todos os atos públicos, inclusive os legislativos, consoante lição de Luís Roberto Barroso:[16]

“E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade funcional brasileira, tornou-se uma idéia vitoriosa e incontestada.

As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente através da qual se lêem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais. A Lei Fundamental e seus princípios deram novo sentido e alcance ao direito civil, ao direito processual, ao direito penal, enfim, a todos os demais ramos jurídicos. A efetividade da Constituição é a base sobre a qual se desenvolveu no Brasil, a nova interpretação constitucional.”

            Portanto, essa idéia de nova interpretação constitucional não se limita aos atos legislativos e nem tampouco aos atos administrativos, visto que a efetividade da Constituição projeta-se por todo o sistema jurídico, criando o princípio da juridicidade, com o condicionamento da discricionariedade aos princípios constitucionais.[17]

II – CONCEITUAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO VINCULADO E DISCRICIONÁRIO

            O direito público designa ato administrativo como todo aquele praticado pelo Estado ou por delegação de poderes públicos, no exercício de funções administrativas, dirigidos aos negócios públicos, na forma da atribuição de competência.

            A Administração Pública para se movimentar necessita da tomada de posição formal dos agentes públicos responsáveis para tal fim, em conformidade com a competência legal, erigida justamente para proporcionar o interesse público.

            Lucia Valle Figueiredo,[18] utilizando-se da definição de Agustín Gordillo, estabelece como ato administrativo:

“Ato Administrativo é a norma concreta, emanada pelo Estado, ou por quem esteja no exercício da função administrativa, que tem por finalidade criar, modificar, extinguir ou declarar relações jurídicas entre este (o Estado) e o administrado, suscetível de ser controlada pelo Poder Judiciário.”

            Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto,[19] ato administrativo é:

“Ato administrativo é, assim, a manifestação unilateral de vontade da administração pública, que tem por objeto constituir, declarar, confirmar, alterar ou desconstituir uma relação jurídica, entre ela e os administradores ou entre seus próprios entes, órgãos e agentes.”

            Conceituando ato administrativo, Celso Antônio Bandeira de Mello,[20] aduna como:

“Declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.”

            Fiorini, em sua obra clássica sobre o tema, ensina:[21]

“El acto administrativo se presenta como el producto concreto de las normas que rigen al Estado en el sector que actúa, el poder administrador y también el extenso ámbito que se denomina actividad administrativa estatal. Estos actos no son creación inmediata de la voluntad natural de un sujeto que invoca la representación del Estado, pues él es un instrumento condicionado de esa parte de la actividad jurídica estatal.”

            Outro expoente do direito administrativo argentino, Manuel Maria Diez,[22] em fundamental obra sobre o ato administrativo, deixou consignado:

“Podemos decidir que el acto administrativo puro es una declaración concreta y unilateral de voluntad de un órgano de la administración activa en ejercicio de la potestad administrativa.”

            Por outro lado, pela divisão de funções entre os Três Poderes  do Estado, em sentido lato, pode-se dizer que todo o ato praticado no exercício da função é ato da Administração,[23] que possui uma maior amplitude do que a expressão ato administrativo.

            Como visto anteriormente, ato administrativo abrange apenas determinada categoria de atos praticados quando o agente público se encontra no exercício da função, ao passo que atos da administração são todas e quaisquer manifestações do Poder Público.

            Por sua vez, os atos administrativos podem ser vinculados ou discricionários.

            Os atos administrativos vinculados são aqueles em que a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização, sem nenhuma margem de liberdade de decisão para o responsável pela feitura do respectivo ato.

            Já os atos administrativos discricionários, que nos interessa no presente estudo, são os que vem despertando discordância de parte da doutrina, que ainda se aferroa à sua impenetrabilidade por parte do Poder Judiciário.

            Esta frente de discussão se dá pelo fato do ato administrativo discricionário ser aquele em que a Administração pratica com liberdade de escolha do seu conteúdo, de seu destinatário, de sua oportunidade e de como ele será realizado.[24]

            A diferença do ato administrativo vinculado para o discricionário é o grau de liberdade de decisão concedida pelo legislador, que este último possui. Sendo certo que esta liberdade é quantitativa, mas não qualitativa, pois o ente público na atual fase do direito administrativo vincula-se às normas e princípios da boa-administração, o que significa dizer que não existe mais ato imune ao controle judicial, pouco importando se ele é discricionário ou vinculado.

            O ato administrativo discricionário (motivação do objeto) também é vinculado à lei, sendo totalmente desnecessária a distinção utilizada anteriormente pela doutrina, que fazia um divisor de águas para definir o ato controlado e o ato que ficava fora do alcance do Poder Judiciário, quando instado a se pronunciar.

            Assim, a competência, a forma e a finalidade do ato administrativo discricionário são vinculados à lei, tendo uma maior dose de liberdade a decisão do administrador quanto à motivação e ao objeto. Daí a grande discussão, pois esta margem de discricionariedade quanto ao mérito (oportunidade e conveniência) ainda encontra resistência por alguns segmentos do Poder Judiciário e também por parte da doutrina.

            Entendemos que o ato administrativo é discricionário incluindo-se a sua conveniência e oportunidade, vinculado não só pela lei mas também pelos princípios constitucionais objetivos destinados à Administração Pública (art. 37, CF), de forma permanente.

            Não se concebe mais, na atual fase do direito administrativo, que um ato discricionário não priorize a eficiência, a impessoalidade, a moralidade, a razoabilidade, a legalidade, dentre outros vitais princípios constitucionais.

            Esse reconhecimento pela dogmática da “dependência constitucional do Direito Administrativo”,[25] busca a realização dos direitos fundamentais do indivíduo, que deixou de ser súdito para ser cidadão, ocupando papel central no desenvolvimento do Estado.

            O ambiente jurídico-constitucional dos modernos Estados de Direito teve o condão de abolir o conceito de inferioridade do administrado, para protege-lo como destinatário dos direitos fundamentais expressos pela Magna Carta. Passa o indivíduo a ser titular de um direito subjetivo em relação à Administração, “sempre que de uma norma jurídica que não vise apenas a satisfação do interesse público, mas também a protecção dos interesses dos particulares, resulte uma situação de vantagem objectiva, concedida de forma intencional, ou ainda quando dela resulte a concessão de um mero benefício de facto decorrente de um direito fundamental.”[26]

            Esta é a nova fase do direito administrativo constitucional, regrado pelos preceitos maiores em todos os seus segmentos para melhor servir a sociedade.

            A justificação do poder discricionário na visão de Luiz Roberto Barroso[27] é excepcional:

“A justificação do poder discricionário – sempre excepcional já que a regra geral é a estrita vinculação da Administração à Lei – decorre da incapacidade de se prever, com alguma objetividade e em tese, a solução mais adequada, mais justa, mais correta para determinadas situações. A discricionariedade é, portanto, serva do interesse público e um instrumento para melhor atender à finalidade pública estabelecida na lei que confere à Administração a competência discricionária.”

            Não constitui privilégio da Administração o ato discricionário, pois ele terá que bem servir à coletividade, sendo patrimônio da cultura humana, consoante magistério de Francisco Campos:[28]

“Ora, os juízos do tipo denominado discricionário, ao invés de constituírem privilégio da Administração, fazem parte do patrimônio comum da cultura humana, e o seu domínio, ao contrário de respeito à esfera do Poder Público, compreende todo o imenso campo da estima moral, artística, política e da vida prática em geral. O critério que preside à formação de tais juízos é a de natureza puramente regulativa ou se limita tão somente a designar a direção geral a ser seguida, sem, contudo fixar, de maneira concreta ou inequívoca, um ponto preciso de referência. A liberdade que caracteriza o prejuízo discricionário não resulta, portanto, da qualidade da pessoa que o formula, mas da estrutura lógica desse juízo, da natural ambigüidade que caracteriza o seu conteúdo significativo. Nisto e tão somente nisto é que consiste a justificação do poder discricionário da Administração.”

            É, em outras palavras, o que escreve Kelsen,[29] quando demonstra que o juízo discricionário não é um privilégio da Administração, mas há que ocorrer na aplicação de normas gerais ou abstratas:

“Demonstra-se facilmente que toda aplicação do direito, isto é, toda concretização de normas gerais, toda passagem de um grau superior a um grau inferior da criação jurídica não é mais do que o preenchimento de um espaço vazio, o exercício de uma atividade dentro das lindes fixadas pelas normas de grau superior. A determinação dos graus inferiores pelos superiores nunca pode ser completa. Haverá sempre oportunidade para as normas inferiores de imputar às superiores um conteúdo de que lhes falta. De outro modo, seria impossível o desenvolvimento do processo de criação jurídica, e a criação de normas individuais seria supérflua. Existe, igualmente, entre o conceito abstrato e a representação concreta uma diferença material, ou de conteúdo. Esta necessária diferença entre os graus superiores e inferiores da concretização jurídica é o que se chama ‘juízo discricionário’.”

            A insuficiência da lei em relação ao caso concreto é que cria a necessidade do ato administrativo discricionário.

            Não se questiona a validade e nem a necessidade do ato administrativo discricionário, pois é cediço, não despertando controvérsia que a Administração Pública se movimenta em algumas situações, através de atos discricionários. Dentro dos limites das regras constitucionais, a autoridade pública tem a liberdade de determinar a significação e o conteúdo de um conceito enunciado na lei.

            Isto não é possível em relação a todos os conceitos, e segundo Jellinek[30] apenas quando ele é indeterminado é que se admite o juízo discricionário:

“O conceito indeterminado é que abre oportunidade à discricionariedade do Juízo. É necessário que isto seja bem compreendido. Nem sempre que a lei emprega um conceito indeterminado resulta que, só por esse fato, ela autorize uma atividade discricionária, toda atividade fundada em juízo discricionário pressupõe uma ordem legal, traduzida em conceito indeterminado (...) Juízo discricionário é também a faculdade de delimitar ou circunscrever um conceito legal indeterminado, com a ressalva de que não incorra em erro.”

            Assim, o ordenamento jurídico-administrativo na atualidade apesar de, em determinados casos, permitir um juízo discricionário do administrador, fica limitado aos critérios de orientação contidos na Constituição Federal, como será demonstrado mais a frente.

            Mesmo com esse grau de liberdade, o ato discricionário vincula-se à lei e aos comandos constitucionais, não podendo ser construídos de forma arbitrária.

            Essa é também a orientação de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:[31]

“Mas esses poderes, no Estado de Direito, entre cujos postulados básicos se encontra o princípio da legalidade, são limitados pela lei, de forma a impedir os abusos e as arbitrariedades a que as autoridades poderiam ser levadas.

Isto significa que os poderes que exerce o administrador público são regrados pelo sistema jurídico vigente. Não pode a autoridade ultrapassar os limites que a lei  traça à sua atividade, sob pena de ilegalidade.”

            A discricionariedade será levada a efeito pela Administração Pública quando a lei expressamente permitir tal posicionamento. Exemplo concreto do afirmado é o caso da remoção ex officio do servidor público, quando ela se dá a critério do ente público, para atender a necessidade e a respectiva conveniência.

            Todavia, se houver abuso na remoção ex officio, determinada não para permitir que o interesse público seja privilegiado e sim como uma forma de punir o servidor removido, fica claro que o Poder Judiciário poderá anular o ato discricionário sem ferir a independência dos Poderes, tendo em vista que o ato é viciado, desviando o poder em detrimento da legalidade e da eficiência, princípios assentes no caput do art. 37, da CF.

            Outra situação de discricionariedade é quando a lei for omissa, pois ela não é capaz de prever todas as situações supervenientes ao momento de sua promulgação. Neste caso, o administrador público usará a liberdade conferida pela lei para praticar um ato de sua competência, sem contudo, abdicar de cumprir os mandamentos constitucionais, estabelecidos para disciplinar a Administração Pública e garantir também direitos fundamentais para os administrados.

            Qualquer excesso no ato discricionário também resultará em um efetivo controle do Poder Judiciário.

            Por fim, outra possibilidade de ato discricionário por parte do poder público é quando a lei estabelece determinada competência, sem estabelecer a conduta a ser adotada. Nessa hipótese, mais freqüente quando é envolvido o poder de polícia do ente público, deverão também serem observados, os princípios e as normas da Constituição Federal.

III – DA CORRENTE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL CONTRÁRIA AO EFETIVO CONTROLE DO ATO DISCRICIONÁRIO

            Os que defendem a eternização do ato administrativo discricionário partem do pressuposto, dentre outros argumentos, que os três Poderes, por serem harmônicos e independentes não podem sofrer sobreposição de funções dentro de cada Poder, sendo vedada a invasão e usurpação de atribuições.

            Essa corrente doutrinária, descarta “a passagem do ato administrativo a idade da razão”,[32] para vincula-lo a um período historicamente autoritário, onde a Administração Pública, para satisfazer seus interesses, era independente, colocando-se acima da sociedade, como uma auto-proteção.

            Sem a reflexão da evolução da Administração Pública para um plano constitucional-normativo, onde a natureza da sua função passou a ser regrada por princípios objetivamente definidos, nunca seremos capazes de entender o seu atual e fundamental papel.

            A primeira fase do direito administrativo, aquela dos primórdios da Revolução Francesa fixou a noção de ato administrativo para delimitar as ações da Administração Pública “excluídas por lei da fiscalização dos tribunais judiciais”. E foi pela Lei de 16 Fructidor do Ano III (1795), que em consonância com o princípio da separação dos Poderes, houve a subtração dos atos administrativos da jurisdição dos tribunais judiciais.

            Esta providência foi oriunda da desconfiança do poder revolucionário, tendo como pano de fundo o fato dos magistrados terem sido nomeados no “Antigo Regime”, o que significava um controle judicial ainda nas mãos da nobreza.

            Surgiu, via de conseqüência, a noção de ato administrativo como forma a individualizar as atuações da Administração Pública sobre os quais o Poder Judiciário não poderia invadir. Ou seja, “tratava-se de um conceito que funcionava ao serviço da Administração perante o poder judicial.”[33]

Ou, recordando-se a metáfora de Vasco Pereira da Silva,[34] sobre a evolução do Estado à história de Robinson Crusoé, como uma forma de desmistificação da impenetrabilidade do ato administrativo, dividida em dois momentos distintos, em conformidade com a cronologia, tem-se: “(...) Ao chegar à ilha, Robinson começa por se fortificar, reunindo todas as armas salvas do navio; só num segundo momento, quando se sentia já suficientemente seguro, ele parte à descoberta de sua ilha, estabelecendo relações de liberdade com as coisas, acabando por encontrar o Sexta-feira.”

Dessa forma, o Estado, em um primeiro e decisivo momento, teve que concentrar o Poder (Estado ditatorial, segundo concepções de Maquiavel, Bodin, Hobes e Rousseau), para em um segundo momento, já fortalecido, procurar o homem, para estabelecer uma organização política, preconizada por uma construção de idéias garantidoras da liberdade e dos direitos individuais do cidadão através do expediente técnico da separação dos poderes, correspondente a um período liberal (cf. Locke e Montesquieu).

O Estado liberal surge, portanto, após o atingimento da sua segunda fase histórica, onde fortalecido ele vai encontrar a sua 3ª e atual fase, que é a de um Estado Democrático de Direito, fiscalizado, por completo, por princípios constitucionais e pela norma jurídica para atingir o seu ideal.

Sucede, que ainda não houve, por parte da doutrina nacional, o total desprendimento da primeira fase do Estado, entendendo que quanto ao efetivo controle do ato administrativo discricionário, haveria uma indesejada intromissão à separação dos poderes, sendo vedado ao Poder Judiciário a devida e constitucional fiscalização.

            Nesse sentido, Manuel de Oliveira Franco Sobrinho,[35] defendendo a especialização de cada Poder prelecionou:

“Cada poder, portanto, tem o seu mister específico, de ordem interna especial jurídica. Partilha soberania não apenas teoricamente. Não disputa, porque possui self-government.

A separalidade dos outros Poderes é uma simples questão de meios de ação (círculos) compreendendo a tríplice ordem constitucional.

As três funções orgânicas, legislativa, executiva e judiciária, desempenham atividades saídas de regras jurídicas constitucionais, por onde se vê a diferenciação do poder estatal em legislativo, executivo e judiciário, caracteriza a rigidez de dogmas verdadeiros (reais) ligados à distribuição de poderes.”

            Analisando a evolução do Direito Administrativo, em precioso estudo, Cláudio Ari Mello[36] fez uma fiel descrição de como era vista a zona livre de jurisdição do Poder Executivo do passado, imune o ato administrativo discricionário a qualquer tipo de controle externo:

“O Direito Público concebido sob esse contexto engendrou uma administração pública cujas atividades estariam substancialmente previstas na legislação que fixaria os elementos básicos da atuação administrativa e as finalidades a serem alcançadas, estabelecendo uma vinculação positiva do administrador à lei, segundo a qual a administração só poderia fazer o que estivesse expressamente autorizado nas normas legais. Como nenhum tipo de atividade humana, nem mesmo a legislação, pode antever, predizer e projetar todos os fatos, humanos e naturais, que exigirão a ação governamental, ao lado da estrita vinculação do administrador às normas legais, sempre remanesceu um espaço de liberdade de escolha ou de decisão, ou seja, de discricionariedade administrativa. Como esse ‘vácuo legal’ era uma deferência do legislador à contingencialidade da ação administrativa, e fiscalização judicial estava inteiramente interditada. Onde houvesse discrição, não haveria jurisdição. A evolução da dogmática e da experiência pretoriana do direito administrativo produziu uma teoria ampla da discricionariedade que procurou delimitar os campos da vinculação e da discrição do administrador e definir as fronteiras do controle judicial, criando uma zona livre de jurisdição no âmbito do Poder Executivo.”

            Diógenes Gasparini[37] é um dos grandes administrativistas que entende que os atos administrativos discricionários não podem ser questionados quanto ao mérito (conveniência e oportunidade):

“Discricionários são os atos administrativos praticados pela Administração Pública conforme um dos comportamentos que a lei prescreve. Assim, cabe à Administração Pública escolher dito comportamento. Essa escolha, se faz por critérios de conveniência e oportunidade, ou seja, de mérito. Há conveniência sempre que o ato interessa, convém ou satisfaz ao interesse público. Há oportunidade quando o ato é praticado no momento adequado à satisfação do interesse público. São juízos subjetivos do agente competente sobre certos fatos e que levam essa autoridade a decidir de um ou de outro modo.

Costuma-se, sem muito cuidado, dizer que o ato administrativo discricionário é insuscetível de exame pelo Judiciário. Tal afirmação não é verdadeira. O que não se admite em relação a ele é o exame por esse Poder da conveniência e da oportunidade, isto é, do mérito da decisão tomada pela Administração Pública, conforme vêm decidindo nossos Tribunais (RF, 225:96 e RT 446:213).”

            Praticado dentro do âmbito que admite a lei, Odete Medauar,[38] também se perfilha aos que entendem ser inapreciável pelo Poder Judiciário a análise da oportunidade do ato discricionário elaborado pelo Poder Executivo:

“Em ordenamentos estrangeiros, os termos ‘oportunidade’ ou ‘juízo de oportunidade’ traduzem a apreciação do mérito. Em alguns temas aparece o contraponto entre legalidade e mérito, em especial, nos estudos sobre o ato administrativo, como aspectos do mesmo, e nos estudos sobre controle jurisdicional da Administração, quando se discute o alcance desse controle, mencionando-se que ao Judiciário descaberia exame do mérito das decisões da Administração.”

            Não é outro o posicionamento de Lúcia Valle Figueiredo:[39]

“A jurisprudência brasileira, acompanhada pela doutrina tradicional, considerava que os atos discricionários não se submeteriam a controle, no pertinente a seu mérito. O caminho da evolução foi – sem dúvida – a afirmação de que ao Judiciário caberia controlar toda a atividade administrativa desde que não invadisse o mérito das decisões discricionárias.

E por mérito do ato compreendiam-se as razões de conveniência e oportunidade que teriam fundamentado a decisão do administrador.”

            Agrega-se a esta corrente a ilustre professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro,[40] que apenas concorda com o controle do Poder Judiciário sobre o ato administrativo discricionário em caso de ilegalidade formal:

“Com relação aos atos discricionários, o controle judicial é possível mas terá que respeitar a discricionariedade administrativa nos limites em que ela é assegurada à Administração Pública pela lei.

Isto ocorre precisamente pelo fato de ser a discricionariedade um poder delimitado previamente pelo legislador; este, ao definir determinado ato, intencionalmente deixa um espaço para livre decisão da Administração Pública, legitimando previamente a sua opção; qualquer delas será legal. Daí por que não pode o Poder Judiciário invadir esse espaço reservado, pela lei, ao administrador, pois, caso contrário, estaria substituindo por seus próprios critérios de escolha, a opção legítima feita pela autoridade competente com base em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto.”

            Ao finalizar o pensamento dos ilustres administrativistas aos quais nutrimos a maior admiração por seus magistrais e imprescindíveis trabalhos, agrega-se a eles o imortal Hely Lopes Meirelles,[41] que faleceu logo após a promulgação da atual Carta Magna:

Poder Discricionário é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo (...)

O que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionário do administrador pelo do Juiz.”

            Em seu Curso de Direito Constitucional, Celso Ribeiro Bastos,[42] em nota de rodapé, citou o REO nº 165.977/STF, que corrobora as colocações doutrinárias citadas anteriormente:

“Ao Judiciário é vedado, no exercício do controle jurisdicional, apreciar o mérito dos atos administrativos, para dizer do acerto da Justiça, da utilidade, da moralidade, etc., de cada procedimento. Não pode o juiz substituir-se ao administrador; compete-lhe, apenas, conte-lo nos estritos limites da ordem jurídica ou compeli-lo a que os retorne.”

            O STJ, pelo RESP nº 169.876-SP, colacionado por Carlos Pinto Coelho Motta, em seu Curso Prático de Direito Administrativo, também já decidiu de forma similar aos judiciosos posicionamentos que defendem a impossibilidade do Poder Judiciário invadir a seara do mérito do poder discricionário administrativo:

“Administrativo. Processo Civil. Ação Civil Pública. 1. O Ministério Público está legitimado para propor ação civil pública para proteger interesses coletivos. 2. impossibilidade de o juiz substituir a Administração Pública determinando que as obras de infra-estrutura sejam realizadas em conjunto habitacional. Do mesmo modo, que desfaça construções já realizadas para atender a projetos de proteção ao parcelamento do solo urbano. 3. Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar atos físicos de administração (construção de conjuntos habitacionais). O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas. 4. As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes. 5. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário está vinculado a perseguir a atuação do agente público em campo de obediência aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade, da finalidade e, em algumas situações, o controle do mérito. 6. As atividades de realização dos fatos concretos pela Administração depende de dotações orçamentárias próprias e do programa de prioridades estabelecidas pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente. 7. Recurso provido. (...) Entretanto, se provida a pretensão, estar-se-ia ofendendo o Princípio da Separação de Poderes, preceituado no art. 2º da Constituição Federal. Como é sabido, o Poder Público só pode fazer o que a lei manda (poder vinculado) ou autoriza (poder discricionário).. os atos que se classificam como vinculados têm seus contornos quase que totalmente delineados pela lei, que deve fielmente ser observada pelo agente público, sob pena de nulidade do ato. Sendo a prática de tais atos um dever da Administração, a contrario sensu, constituem um direito dos administrados. Assim, a omissão do agente público na prática de tais atos ou a sua prática sem a fiel observância do enunciado da lei, em todas as suas especificações, traria ofensa a direito do administrado que, no primeiro caso, poderia, através do Poder Judiciário, compelir a Administração à prática do ato, e, no segundo, a declarar  a sua nulidade. O mesmo não ocorre, porém, com relação aos atos discricionários. Nesta categoria de atos, embora o agente público, e deva ser competente para praticá-lo, tem liberdade de escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo. Cabe, pois, ao agente público escolher sobre a conveniência e oportunidade para prática dos atos discricionários. Nisso não pode o Poder Judiciário substituí-lo (...) o que não pode, repita-se, é determinar que o agente público pratique um ato discricionário cuja escolha de conveniência e oportunidade lhe pertence.” (g.n.)

            Como visto, a doutrina e a jurisprudência declinadas defendem que não compete ao Poder Judiciário apreciar o mérito de atos administrativos discricionários.

            Estas lições deixaram grafado não competir ao Poder Judiciário o exame do mérito, da oportunidade e da conveniência do ato administrativo discricionário, visto que a lei confere poderes para a prática de tal ato.

            Também convergíamos com estes avalizados posicionamentos, desgarrando-nos dessas correntes doutrinárias após a edição da Carta Federal de 5 de outubro de 1988, que de forma inédita constitucionalizou a Administração Pública, criando princípios e normas que vinculam a todos, independentemente da  forma ou da solenidade do ato administrativo, ou seja, se ele é ou não discricionário.

            A seguir, deixaremos nítido o nosso posicionamento.

IV – DA DIVISÃO DE FUNÇÕES DOS PODERES E A SUA COMPETENTE HARMONIZAÇÃO COM A UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO.

            Após todo o relato dos eminentes administrativistas citados anteriormente se extrai a firme convicção de que o ato administrativo discricionário não poderia ser revisto pelo controle do Poder Judiciário, quando se trata do juízo de mérito, oportunidade e conveniência do administrador público.

            Sucede que tais pensamentos foram construídos em uma época em que o direito constitucional ainda não havia constitucionalizado todos os ramos do direito, passando a ser o verdadeiro protagonista nas relações públicas e privadas. Aliás este é um dos traços fundamentais do constitucionalismo moderno,[43] que rompendo as fronteiras anteriores é o regente de todos os ramos do direito.

            A incorporação desses princípios constitucionais constitui marco da evolução do direito público, que possuía na justiça administrativa a marca do Antigo Regime deposto pela Revolução Francesa.

            Ou seja, foi criada uma justiça administrativa como fruto das idéias liberais que despontavam, contudo ainda prevaleciam os velhos conceitos do regime anterior. Daí a necessidade de uma separação de poderes, que culminou com a criação do contencioso administrativo, tendo como objetivo a proteção do Estado, com “a proibição dos Tribunais judiciais conhecerem dos litígios é, em grande parte, explicável como uma reação contra o modo de atuação dos parlamentos no Antigo Regime”.[44] Sendo que a criação do Conselho de Estado, exercendo funções em matéria de contencioso administrativo se assemelha à figura, mal comparando  com o Conselho do Rei, existente no Antigo Regime.[45]

            Na realidade, o Estado pensado por Maquiavel tinha como função desgarrar-se do poder típico da Idade Média, através da criação de uma entidade que unificava entre si os poderes da sociedade, encarnada na pessoa do príncipe.

            Por isto, o Estado, como realidade, foi criado artificialmente pelo homem para atingir determinados objetivos, tendo na Administração Pública a mesma identidade, e por isso, naquela época, ela era imune de qualquer intervenção externa.[46]

            Visou, portanto, a Teoria da Separação de Poderes de Montesquieu, no “De l’Esprit des Lois”, inspirada na experiência de Locke, sendo que os britânicos (que desconheciam a noção de Estado),[47] manter impenetráveis os atos da Administração Pública ao poder judicial,[48] como explicam Dupis e Guédon:[49] “a revolução queria instaurar a separação de poderes e, no fundo, a separação das autoridades administrativas e judiciais é entendida, na época, como uma conseqüência natural.”

            Foi preciso, em um primeiro momento, para o próprio bem da humanidade, ter na separação de poderes um mito, para atingirmos a devida maturidade do direito público.

            Assim a presente constitucionalização dos direitos tomou força após a segunda grande guerra mundial, onde a proeminência dos direitos fundamentais do ser humano passou a ser a grande preocupação universal, surgindo novos valores éticos e morais, como forma de se desgarrar do citado mito da separação dos poderes.

            Assim, os direitos fundamentais do homem incorporados ao constitucionalismo atual passou a ser o traço marcante do Estado do Bem-Estar Social.

            A doutrina alemã foi uma das primeiras a enfrentar o presente tema, e após a natural evolução passou a permitir o controle judicial dos atos administrativos, inclusive os  discricionários através do “enfoque jurídico funcional”[50] (funktionell-rechtliche Betrachtungs-weise), fruto da Constituição como procedimento do Estado prestador de serviços e como uma forma de realização dos direitos fundamentais, na dimensão de direitos de participação.[51]

            Este novo e atual enfoque parte do pressuposto de que o clássico princípio da separação dos Poderes não possui mais uma fronteira de atuação entre os respectivos Poderes, visto que ele deve ser entendido mais como princípio de divisão de funções; controlado, fiscalizado e coordenado pelos diferentes órgãos do Estado Democrático de Direito.[52]

            O conceito de divisão funcional permite o controle do conceito jurídico indeterminado, da margem de livre apreciação e da discricionariedade sem que um poder afronte ao outro, ou invada o raio de competência alheia. A cooperação dos poderes substitui o bloco unitário do Estado.

            Isto se dá, em nosso direito constitucional, quando o Poder Legislativo possui controles em relação ao Poder Executivo, nos seguintes casos: autorizar o Presidente da República a declarar guerra e fazer a paz (art. 49, II, CF); dispor sobre tratados e convenções com países estrangeiros, celebrados pelo Presidente da República (art. 49, I, CF); sustar atos normativos do Poder Executivo que excedam o poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (art. 49, V, CF); receber o compromisso quando da posse do Presidente e do Vice-presidente (art. 57, III, CF); por maioria absoluta o poder de derrubar o veto presidencial em texto legal (arts. 57, IV e 66, § 4º, CF); aprovar intervenção federal determinada pelo Presidente da República (art. 84, X, CF); aprovar o Estado de defesa (art. 136, § 4º, CF) decretado pelo Presidente da República (art. 84, IX e X, da CF); autorizar o Presidente da República a decretar Estado de Sítio (art. 84, IX, CF); com o auxílio do Tribunal de Contas, fiscalizar as despesas públicas (art. 71, I e II, CF); aprovar a indicação do Presidente da República de Ministros do STF (art. 101, parágrafo único, CF) e do STJ (art. 104, parágrafo único, CF), do Procurador-Geral da República (art. 128, § 1º, CF), Ministros do Tribunal de Contas (art. 73, § 2º, I, CF), Chefes de Missão Diplomática em caráter permanente (art. 52, IV, CF); eleger membro do Conselho da República (art. 89, VII, CF).[53]

            Pela divisão de funções dos Poderes, apesar do Poder Legislativo ter ingerência sobre todos estes citados atos discricionários do Presidente da República não ocorre a invasão de competência ou a indevida intromissão, pelo contrário, para o ato privativo do Executivo se consumar juridicamente ele necessita da concordância do Legislativo.

            Em relação ao Poder Executivo, ele controla o Poder Legislativo quando o Presidente da República, em caso de relevância e urgência, edita Medidas Provisórias (art. 62, CF) ou solicita o regime de urgência em projetos de lei de sua autoria (art. 64, CF); sanção ou veto presidencial no processo legislativo ordinário (art. 66, CF); nomeação de membros do Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Poder Legislativo (art. 73, § 2º, I, CF).

            O mesmo fenômeno ocorre quando o Poder Legislativo controla ou estabelece condições para o Poder Judiciário, nas seguintes situações constitucionais: Organização Judiciária (arts. 48, X; 124, parágrafo único; 113 e 121, CF); aprovar nomeação de Ministros do STF e de Tribunais Superiores pelo Presidente da República (art. 84, XIV, CF); concerssão de anistia mesmo que tenha decisão judicial transitada em julgado (art. 48, VIII, CF); promover o processamento e o julgamento do Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do STF e o Procurador-Geral da República, por crimes de responsabilidades (arts. 51, 52, I e II, CF), CPI para investigar autoridades judiciais (art. 58, § 3º, CF).[54]

            Também vigora o controle do Poder Executivo em relação ao Poder Judiciário, quando ele escolhe e nomeia os Ministros do STF e do STJ, bem como quando é concedido o indulto ou a comutação de penas (art. 84, XII, CF).

            Portanto, quando o Poder Judiciário controla os Poderes Executivo e Legislativo, ele também não invade o princípio da separação dos poderes, visto que a Constituição promoveu a divisão de funções dos poderes para humanizar mais o direito público, voltado para as garantias dos direitos fundamentais da sociedade.

            Certeira foi a observação de Nigro, quando afirma que “a Administração Pública já não existe mais (...), apenas existem as Administrações Públicas entre as quais se desenvolvem relações, conflitos, acordos, controvérsias que modificam o direito administrativo substancial e influem também no processo.”[55]

            Esta divisão de funções dos Poderes do Estado está fundamentada na ordem democrática que rege a Constituição, onde a fiscalização e a coordenação recíproca entre os diversos órgãos públicos é uma realidade atual. Assim a divisão de poderes perde a sua anterior característica rígida de distribuições de tarefas, mecanicamente, sem que haja a atual integração racionalizada das várias funções do Estado:

“A divisão de poderes é agora essencialmente entendida como um processo de distribuição e integração racionalizadas das várias funções e órgãos do Estado, de forma a limitar as possibilidades de exercício arbitrário do Poder e garantir, por outro lado, as condições da maior eficiência da atuação estatal, sem prejuízo, todavia, do respeito pelos direitos e liberdades fundamentais. (...)

Em segundo lugar, e por ventura de importância decisiva para a compreensão da natureza do Estado Social e Democrático de Direito. Verifica-se o reforço da separação, independência e relevância do poder judicial no conjunto dos poderes do Estado.”[56]

            Melhor esclarecendo, seguem as sábias palavras de Andreas J. Krell:[57]

“Reconhecendo que, no Brasil, as funções do Estado são separadas em órgãos independentes e harmônicos (art. 2º, CF), o problema específico dos conceitos indeterminados no Direito Administrativo deve ser compreendido na base dessa divisão funcional. Ao mesmo tempo, a Administração está claramente sujeita ao princípio da legalidade (art. 5º, II, e 37, caput, CF), sendo a questão justamente definir a quem a ordem jurídica atribui a interpretação e concretização desses conceitos e a decisão final sobre sua correta aplicação ao caso concreto: ao administrador, ao juiz ou se há uma distribuição dessa tarefa entre dois Poderes. Essa pergunta pela ‘densidade de controle’ (kontrolldichteI) surge de forma idêntica no âmbito da discricionariedade administrativa strictu sensu, localizado no mandamento da norma.”

            A Constituição dotou o Poder Judiciário de poder para combater os excessos cometidos em qualquer das esferas governamentais, sem que se caracterize uma indevida intromissão de um Poder sobre os outros, conforme decidido no RE º 259.335 Agr/RJ-STF:[58]

“(...) Reexame da decisão administrativa pelo Poder Judiciário. Ofensa ao princípio da separação de poderes. Inexistência. A Carta Federal conferiu ao Poder Judiciário a função precípua de controlar os excessos cometidos em qualquer das esferas governamentais, quando estes incidirem em abuso de poder ou desvios inconstitucionais. Precedente. Agravo regimental não provido.”

            Portanto, não há intromissão indevida de um Poder sobre o outro, quando o Judiciário intervém para assegurar os princípios constitucionais, mesmo que o ato seja grafado como discricionário e que haja a necessidade de análise de mérito, pois o regime democrático exige tal conduta. A escolha discricionária não é indiferente ao direito. O ideal do Estado não é o extermínio da discricionariedade, mas a sua juridicidade, entendida como modo de realização do direito.

            Em rigorosa manutenção do controle do poder, como exigência de ordem político-jurídica essencial ao regime democrático, o STF[59] afastou possível transgressão ao princípio da separação de poderes:

“(...) O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República. O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes. Desse modo, não se revela lícito afirmar, na hipótese de desvios jurídico-constitucionais nas quais incida uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera de outro Poder da República. O CONTROLE DO PODER CONSTITUI UMA EXIGÊNCIA DE ORDEM POLÍTICO-JURÍDICA ESSENCIAL AO REGIME DEMOCRÁTICO. - O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação de poderes, teve por objetivo instituir modelo destinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, em ordem a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos Poderes da República sobre os demais órgãos da soberania nacional. Com a finalidade de obstar que o exercício abusivo das prerrogativas estatais possa conduzir a práticas que transgridam o regime das liberdades públicas e que sufoquem, pela opressão do poder, os direitos e garantias individuais, atribuiu-se, ao Poder Judiciário, a função eminente de controlar os excessos cometidos por qualquer das esferas governamentais, inclusive aqueles praticados por Comissão Parlamentar de Inquérito, quando incidir em abuso de poder ou em desvios inconstitucionais, no desempenho de sua competência investigatória. OS PODERES DAS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO, EMBORA AMPLOS, NÃO SÃO ILIMITADOS E NEM ABSOLUTOS. - Nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição. No regime político que consagra o Estado democrático de direito, os atos emanados de qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, quando praticados com desrespeito à Lei Fundamental, submetem-se ao controle jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV).

            Em uma outra hipótese jurídica, envolvendo correção de prova de concurso público, a interferência do Poder Judiciário,[60] para restabelecer os cânones constitucionais, não foi tida como violadora do princípio político da separação de poderes.

“Concurso - Correção de Prova - Princípio Político Constitucional da Separação da Independência e Harmonia dos Poderes. Longe fica de contrariar o disposto no artigo 2º da Carta Política da República provimento judicial que, a partir da premissa sobre a má vontade da banca examinadora na correção de prova manuscrita, considerada a caligrafia do candidato, assenta a improcedência dos erros apontados.” 

            Com a quebra da onipotência do Estado em face da Constituição, a invocação do princípio da separação dos poderes, como uma forma de prejudicar a sindicabilidade do ato administrativo, constitui-se como artifício para deixar imune de controle de atos arbitrários.

            Paulo Otero,[61] eminente administrativista lusitano, considera um erro histórico consistente na separação de poderes como uma tentativa de impedir que o Poder Judiciário possa penetrar na essência do ato administrativo:

“Existe aqui um verdadeiro equívoco histórico: utiliza-se o dogma da separação de poderes para, num primeiro momento, excluir a atividade administrativa do controle pelos Tribunais Judiciais, criando-se dentro da própria Administração órgãos de controle que, num segundo momento, invocando uma vez mais a separação de poderes, são tratados como tribunais para permitir agora que não exerçam sobre os outros órgãos da Administração poderes de injunção e de substituição que se teriam de considerar legítimos entre órgãos situados no interior da Administração Pública.”

            Assim, como intérprete  da Constituição,[62] o Poder Judiciário na divisão de funções dos Poderes do Estado, foi alçado a condição de manter efetivos os “princípios gerais de interpretação constitucional”,[63] reconhecidos pela dogmática e jurisprudência da Alemanha como princípios da “unidade de constituição”,[64] sem que isto signifique uma indevida e indesejada violação ao princípio da separação dos poderes (art. 2º, CF).

            A interpretação dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição, feita pelo Poder Judiciário não invade a esfera dos demais órgãos políticos,[65] tendo em vista que ela visa manter eficaz tais comandos supremos, coibindo abusos ou excessos de poder por parte dos órgãos públicos.[66]

            Dessa forma, o direito constitucional concretizado pelos Tribunais, que Ronald Dworkin[67] defende como “direito constitucional comum” é fortificado pela interpretação da norma legal que assumiu dimensão constitucional, com plena eficácia.[68]

            Essa necessária e constitucional interpretação (art. 5º, XXXV, CF) determina, sempre que solicitado, a intervenção do Poder Judiciário, para afastar lesão ou ameaça a direito, independentemente da qualificação da parte passiva na lide. A ordem jurídico-constitucional assegura a todos o acesso ao Judiciário em concepção integral,[69] sem que tal prerrogativa constitua na indesejada invasão de um Poder sobre o outro.

            Como todos os Poderes Públicos estão obrigados a respeitar os princípios e as normas constitucionais, qualquer lesão ou ameaça outorga ao lesado a possibilidade do ingresso ao Poder Judiciário, que instado a se pronunciar, possui a indelegável missão de manter a unidade da constituição, mesmo que ele tenha que adentrar o controle do mérito do ato administrativo discricionário.

            Esta responsabilidade pela tutela da ordem jurídica[70] constitucional, afasta a premissa de uma pseudo invasão de competência de poderes, tendo em vista que o uso de uma faculdade discricionária não possui mais o condão de retirar do Poder Judiciário a possibilidade de verificar se houve ou não desvio de poder.[71]

            Vigora no campo do direito constitucional – administrativo a influência de preservação dos direitos fundamentais desenvolvidos pela jurisdição constitucional do Bundesverfassungsgericht como “princípios de uma ordem jurídica geral”, capaz de justificar a atuação ampla do Poder Judiciário.

            Jürgen Habermas,[72] jus-filósofo alemão, citado por Patrícia Baptista,[73] testemunha a insuficiência da ultrapassada construção clássica do princípio da separação de poderes, para defender a irradiação dos direitos fundamentais para todas as esferas do direito, principalmente para aquelas relacionadas à atuação do Estado:

“Esses ‘conteúdos essenciais’ ou ‘limites imanentes’ dos direitos fundamentais, operam, segundo o autor, como parâmetros da atuação do Estado-administrador, no campo onde a lei formal não alcança. Por meio de sua realização pela jurisdição constitucional, servem para superar a insuficiência atual da construção clássica do princípio da separação de poderes, atuando como balizamentos controláveis e aferíveis para a atuação administrativa, sobretudo sob a forma do Estado Social. Trata-se de um efeito irradiador dos direitos fundamentais para todas as esferas do direito e, particularmente, para aquelas relacionadas à atuação do Estado. O direito constitucional, para, assim, assumir o papel de autêntico limite substantivo, e não meramente formal, do direito administrativo.”

            Konrad Hesse,[74] mantendo eficaz o atual quadro da ordem democrática, onde o controle de poder estabelece o equilíbrio das forças políticas, em total alteração à construção inicial da divisão de Poderes, estabelece, o Judiciário como o responsável pela manutenção da integridade da Constituição:

“Um elemento de equilíbrio dos poderes estatal-jurídico é o controle judicial do poder executivo (art. 19, alínea 4, da Lei Fundamental), nomeadamente, porém, o controle de todos os poderes estatais pela jurisdição constitucional, dotada com ampla competência na Lei Fundamental. Esse controle significa uma incorporação, até agora desconhecida à tradição constitucional alemã, do Poder Judiciário no sistema dos refreamentos de poderes e controles. O elemento estatal-jurídico do equilíbrio de poderes, que se torna eficaz nele, une-se com o democrático, porque ele abre a possibilidade à minoria de recorrer à proteção do tribunal constitucional contra um prejuízo, real ou pretendido, de sua posição e, assim, de consolidar sua situação – em que, naturalmente, o Tribunal Constitucional nenhum outro peso pode lançar no prato da balança senão aquele da sua própria autoridade.”

            Estes efeitos refreadores do poder a que aduz Konrad Hesse estabelece a eficácia da Constituição como uma forma de equilibrar os poderes.

            Portanto, fica ultrapassada a assertiva clássica de que quando o Poder Judiciário penetra no mérito, na conveniência ou na oportunidade do ato administrativo discricionário, ele está ultrapassando a fronteira da separação de poderes. Como visto, pela atual divisão de funções dos Poderes compete ao Judiciário manter a unidade da Constituição, de forma que o Estado, em todas as suas ramificações preconize os ditames constitucionais, como uma forma de manter livre e justa toda a sociedade.

            Está ultrapassada a barreira dos limites dos Poderes, como uma forma de impedir a devida e constitucional fiscalização do Poder Judiciário, responsável pela realização da efetividade das normas e dos princípios contidos na Lei Maior.

            Surge, em nossos dias, um novo conceito central do direito administrativo, que influenciado pelo direito alemão, incorporou na Constituição o centro da razão do Estado.

            Assim, a atual Constituição, como dito por Caio Tácito[75]abriu “novos caminhos para a contenção de abusos do Poder Administrativo, acenando como aperfeiçoamento das instituições democráticas, a valorização do homem comum e a maior proteção dos interesses comunitários.”

V - NOVA FASE CONSTITUCIONAL E O CONTROLE EFETIVO DO MÉRITO, DA OPORTUNIDADE E DA CONVENIÊNCIA DO ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO

            Ultrapassada a barreira da separação de poderes, urge perquirir se a discricionariedade administrativa pode ainda continuar a ser uma liberdade essencial, incondicionada ou pura, impenetrável pelo Poder Judiciário, ao estilo da “freies Ermessen” do século passado,[76] ultrapassada e incompatível com o Estado de Direito.

            Discricionariedade ampla, desgarrada do direito e da lei, que poderia parecer sugerida, onde a oportunidade ou a conveniência administrativa imperavam na tomada do ato livremente, como era compreendida pela Administração do século passado motivou, Hans Huber[77] a afirmar que ela era “o cavalo de Tróia do Estado de Direito”, algo a ser considerado como ultrapassado pelo Direito Constitucional e pertencente à arqueologia jurídica.

            E foi justamente pela constitucionalização do direito administrativo que houve a devida evolução, onde os princípios fundamentais deste ramo do direito deixaram de ser exteriorizados pela legislação infra-constitucional para tomar assento na própria teoria constitucional, representada por suas normas e seus princípios.

            Quanto aos princípios, ainda no meio para o final do século passado, a doutrina, abolindo o recurso à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, utilizados para validar o mecanismo da discricionariedade administrativa,[78]  demonstrou que o sistema jurídico não era mais composto somente de regras, mas também de princípios constitucionais, visto que os direitos fundamentais do cidadão não poderiam mais figurar como peça decorativa. E coube a Josef Esser,[79] Ronald Dworking[80] e Robert Alexy,[81] dentre outros notáveis doutrinadores demonstrar a transformação do direito, que passou a ter nos princípios constitucionais uma referência capaz de abolir as idéias passadas de que os princípios gerais de direito, os costumes e a analogia é que representavam o sistema jurídico. Com certeza, essa atual concepção trouxe novo status constitucional, através da idéia do controle do ordenamento jurídico pelos preceitos e princípios, consagrando o surgimento da Teoria Geral do Direito Constitucional Administrativo.

            O novo constitucionalismo se afastou do modelo positivista da jurisprudência dos conceitos e dos valores,[82] para buscar nos princípios o seu verdadeiro fundamento de validade.

            Esta grande virada na interpretação constitucional estabelece a necessidade de se cumprirem não só as normas, mas também os princípios da Magna Carta. Os princípios deram novo alcance a todos os ramos do direito, visto que como vetores da ciência jurídica constituem-se proposições básicas e fundamentais a serem seguidas pelo Poder Público[83] como um todo.

            Para Paulo Bonavides,[84] os princípios “são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas.”

            Assim, a elevação dos princípios no plano constitucional permitiu uma maior valoração dos direitos fundamentais, como aventado por Karl Larenz:[85]

“Entre os princípios ético-jurídicos, aos quais a interpretação deve orientar-se, cabe uma importância acrescida aos princípios elevados a nível constitucional. Estes são, sobretudo, os princípios e decisões valorativas que encontram expressão na parte dos direitos fundamentais da Constituição, quer dizer, a prevalência da ‘dignidade da pessoa humana’ (art. 1º, da Lei Fundamental) (...); o princípio da igualdade, com as suas concretizações no art. 3º, parágrafos 2º e 3º da Lei Fundamental e, para além disso, a idéia de Estado de Direito, com as suas concretizações nos artigos 19, parágrafo 4º e 20, parágrafo 3º, da Lei Fundamental e na secção relativa ao poder judicial, à democracia parlamentar e à idéia de Estado Social.”

            A seguir, o citado mestre germânico[86] arremata:

“É reconhecido que estes princípios hão de ter-se em conta também na interpretação da legislação ordinária e na concretização das cláusulas gerais.”

            Os princípios constitucionais possuem grande valor normativo, constituindo-se a própria realidade jurídica, com reflexo em todos os ramos do direito.

            Ao constituírem, os princípios constitucionais, a base do ordenamento jurídico, “la parte permanente y eterna del Derecho y también la cambiante y mudable que determina la evolución jurídica”,[87] são idéias fundamentais e informadoras da organização jurídica da Nação.

            Portanto, pela nova interpretação constitucional é estabelecida a necessidade de se cumprirem não só as normas mas também os princípios.

            Os princípios gerais de uma ciência, na visão de Norberto Bobbio,[88] nada mais são que “normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais graves”.

            Sugerindo os princípios com a expressão “mandado de otimização”,  Robert Alexy[89] escreveu:

“Os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau em que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos.”

            Também merece destaque, as colocações de Bidart Campos,[90] que ao se referir à hermenêutica constitucional, pontificou que “si hay princípios generales del derecho constitucional (y no sólo la integración) deve girar en torno de ellos, em cuanto gozan de la supremacia de la constitución a la que pertencem.”

            Para Marcello Ciotola,[91] “os princípios são definidos como verdades de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de Juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade. Entendidos como verdades fundantes de um sistema de conhecimento, os princípios, tendo por base sua generalidade ou abrangência, se dividem em onivalentes,  plurivalentes e monovalentes.”

            Como alicerce do conhecimento, os princípios não podem ser dissociados do contexto geral, cabendo, nesse particular, registrar as colocações feitas por Miguel Reale:[92]

“Um edifício tem sempre suas vigas mestras, suas colunas primeiras, que são o ponto de referencia e, ao mesmo tempo, elementos que dão unidade ao todo. Uma ciência é como um grande edifício que possui também colunas mestras. A tais elementos básicos, que servem de apoio lógico ao edifício científico, é que chamamos de princípios, havendo entre eles diferenças de destinação e de índices, na estrutura geral do conhecimento humano.”

            Tanto os princípios como as regras de uma Constituição se transformam em normas, porque determinam para toda a sociedade o que deve ser seguido e cultuado.[93]

            In casu, os princípios contidos no caput do art. 37, da CF são expressos e  determinados, fazendo nascer para a Administração Pública a obrigatoriedade de segui-los, sob pena de cometimento de ato ilegal, distanciado do que vem estatuído na Constituição.

            Os princípios sub oculis, como conceituado por José dos Santos Carvalho Filho,[94] são “diretrizes fundamentais da Administração, de modo que só poderá considerar válida a conduta administrativa se estiver compatível com eles.”

Funcionam, assim, os princípios, como normas fundamentais para  boa gestão da coisa pública.

Com essa nova filosofia, onde os princípios constitucionais constituem-se como “raízes” do direito administrativo, houve substancial alteração deste ramo do direito, que passou a ser totalmente vinculado a essa nova filosofia de conceitos.

Com esta vinculação, os princípios constitucionais passaram a controlar a Administração Pública, em especial no aperfeiçoamento do controle da Administração Pública quanto aos seus atos discricionários,[95] permitindo uma identificação do ambiente decisório do administrador, em virtude da imposição de parâmetros objetivos de valoração a serem seguidos.[96]

Assim, a oportunidade, a conveniência e o próprio mérito do ato administrativo discricionário não poderão ser desprezados pelos princípios da Constituição, que funcionando como critério objetivo de toda a Administração Pública, devem estar presentes na liberdade de escolha do administrador público. Estes limites de ordem constitucional demarcam o espaço de atuação do administrador, como infere Luís Roberto Barroso:[97]

“O poder discricionário, portanto, encontra limites, como já referido, na finalidade legal da norma que o instituiu, mas também, e primordialmente, nas normas constitucionais. No normal das circunstâncias, como no caso examinado neste estudo, a finalidade legal do ato a ser praticado e as normas constitucionais são limites que convivem harmoniosamente para demarcar o espaço de atuação do administrador, mas é importante registrar que, em caso de conflito insuperável entre esses dois elementos, a supremacia será sempre das normas constitucionais, admitindo-se até mesmo que o administrador deixe de dar cumprimento à lei em reverência à Constituição.”

            Funcionam os princípios como os vetores à guiar todo ato público, inclusive o administrativo discricionário.

            Assim, o ato administrativo discricionário, em seu todo, fica vinculado aos critérios objetivos dos princípios constitucionais, não como uma forma de limitação, mas sim como um aperfeiçoamento da medida a ser adotada.

            É preciso que se dê um fim a idéia de que com a vinculação do ato administrativo discricionário aos princípios constitucionais, estar-se-ia impedindo a livre movimentação do administrador, pois esta nova filosofia do direito administrativo constitucional amadurece o ato público qualitativamente. Nada é mais nefasto do que atos discricionários ocultando interesses particulares, contrários à finalidade pública. Por esta razão, a vinculação aos princípios da Constituição na tomada de posição do administrador, evita que fins alheios ao interesse público sejam os prevalentes.

            Nesse sentido, precisas foram as colocações de Alexandre de Mores:[98]

“O mérito do ato administrativo, que somente existe nos atos administrativos discricionários, deve ser entendido como juízo de conveniência e oportunidade do administrador, que poderá, entre as hipóteses legal e moralmente admissíveis, escolher aquela que entenda como a melhor para o interesse público.

Mérito, portanto, do ato administrativo é o juízo de conveniência e oportunidade, dentro da legalidade e moralidade, existente nos atos discricionários.

Dessa forma, enquanto o ato administrativo vinculado somente será analisado sob o amplo aspecto de legalidade, o ato administrativo discricionário também deverá ser analisado por seu aspecto meritório. (...) Assim, mesmo o ato administrativo discricionário está vinculado ao império constitucional e legal, pois, como muito bem ressaltado por Chevalier, ‘o objetivo do Estado de Direito é limitar o poder do Estado pelo Direito.”

            Portanto, a verificação dos princípios constitucionais no ato administrativo discricionário não inviabiliza o critério de oportunidade e de conveniência, visto que estes comandos maiores não impedem a tomada de atos, apenas criam condições que evitam a arbitrariedade e o abuso de poder.

            Nessa situação é que o controle jurisdicional é imperioso para o equilíbrio de forças, pois o administrado possui nos princípios constitucionais a garantia de que não será oprimido pela envergadura do poder público.

            Assim, como conseqüência do Estado de Direito, não há mais espaço para a criação do ato administrativo discricionário desvinculado dos princípios e das normas constitucionais.

            Destarte, a vinculação do Estado a legalidade constitucional retira do administrador público a condição de promover uma escolha livre para a tomada do seu ato discricionário afastada dos princípios constitucionais, pois a sua liberdade não é total na atual fase do direito administrativo constitucional, ela é vinculada aos instrumentos contidos na Constituição.

            Não é retirado, por esta ótica, o exercício de competência de um poder-dever funcional, relativamente livre, mas é ressaltado que ele será sempre subordinado a realização de objetivos harmonicamente impostos em um Estado de Direito, desde logo fixados pelos princípios constitucionais.

            Portanto, a livre escolha administrativa continua a existir, apenas ela é vinculada aos princípios da administração pública, para que a sociedade tenha a garantia de que os homens públicos atuarão em homenagem aos interesses de todos (públicos) e não que ocorram desvios de finalidade indesejados.

            Em alentado estudo, M. Francisca Portocarrero,[99] assim averba sobre “discricionariedade pura” no novo quadro constitucional:

“Assim, ao utilizar-se a expressão ‘discricionariedade pura’ não poderá deixar de se ter presente o novo quadro constitucional e legal da discricionariedade, nas modernas Administrações de Estados de Direito. (...) Bem como pensamos que não se pode caracterizar, sem mais, aquela escolha discricionária, entre soluções jurídicas, como verdadeiramente livre, uma vez que ela é condicionada pelos pressupostos fixados pela norma, sendo sempre função deles; e é, ainda, função da aplicação dos princípios jurídicos gerais da atividade administrativa, sempre reguladores do exercício da discricionariedade, máxime os da imparcialidade e da proporcionalidade.”

            Em um Estado de Direito, as atividades das autoridades administrativas são vinculadas sempre aos princípios e preceitos da Constituição, não existindo uma zona  de atuação[100] “completamente livre”,  pois a liberdade consiste em conformar a necessidade do ato aos comandos eleitos para a sua boa e eficaz validade. Com isto, não se retira a competência discricionária do agente público, apenas ela é vinculada aos princípios constitucionais para melhor servir ao interesse coletivo. Não se deve esquecer que os princípios ao serem embutidos no Texto Maior já foram ponderados pelo constituinte, de forma que fosse balizada a atuação da Administração Pública.

            Não vigora mais a idéia da discricionariedade clássica, onde a oportunidade e a conveniência eram impenetráveis ao controle judicial, pois os princípios constitucionais foram instituídos para disciplinar uma unidade em todos os atos públicos, podendo haver análise de mérito do ato administrativo.

            Deturpa-se, por outro lado, o controle do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário,[101] como se ele fosse o intruso aleatoriamente, descartando-se que a sua missão é combater o excesso de poder de órgão público, quando confrontados seus atos com os princípios e as normas legais.

            Ou, como deixamos expresso em outra oportunidade:[102] “A constitucionalização das regras da Administração Pública permite ao Poder Judiciário um controle mais efetivo sobre os atos administrativos. (...)Mesmo o ato administrativo discricionário não poderá ser caracterizado em colisão com os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”

            A vinculação da Administração à realidade constitucional faz com que seus atos sejam vigiados, não como uma forma de intervenção em sua conveniência e nem na respectiva oportunidade, e sim para mantê-la condicionada aos seus instrumentos condicionantes. É o mesmo fenômeno que ocorre quando o Poder Legislativo edita uma lei inconstitucional. Ou seja, quando o Poder Judiciário interpreta a norma e aplica a eficácia da Constituição, na prática ele não extrapola a sua função para transformar-se em legislador.

            Tem-se, portanto, que com a função da constitucionalização das normas e dos princípios da Administração Pública, o Poder Judiciário amplia o seu leque de controle sobre os atos do Estado.

            Exemplo do afirmado tem-se quando o STF, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 22307-7/DF, determinou que a remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos e militares fosse na mesma data e no mesmo índice, na forma da redação embrionária do art. 37, X e XV, da Constituição Federal.

            O princípio da igualdade, seja no enfoque específico dado ao regime jurídico dos servidores públicos e aos demais princípios expressos na Constituição não deve ser entendido como um dever endereçado somente ao legislador de conceder o mesmo tratamento àqueles que se encontram na mesma situação, mas, também, um dever endereçado ao juiz para que aplique diretamente aos casos levados ao Poder Judiciário a norma constitucional que, conforme aduziu o STF neste precedente, é norma constitucional auto-aplicável diretamente pelo magistrado e, portanto, dispensa integração legislativa.

            Também pelo Mandado de Injunção nº 232-1/RJ, que teve a relatoria do eminente Min. Moreira Alves, concedeu seis meses ao Congresso Nacional para que ele adote as providências legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar, decorrente do art. 195, § 7º, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação seja cumprida, o requerente goze da imunidade tributária requerida.

            Estes exemplos são robustos para desmistificar que a impenetrabilidade do ato discricionário público não mais vigora, quando confrontado com os princípios e as normas constitucionais.

            Vige o princípio da juridicidade e o condicionamento da discricionariedade administrativa aos princípios constitucionais.

            Com isto, não é retirada a liberdade administrativa, apenas ela é condicionada para a melhor solução jurídica para o caso concreto de interesse público:[103] “... o princípio da proporcionalidade, por sua vez, que impõe à autoridade administrativa, no procedimento administrativo da escolha da melhor solução jurídica para o caso concreto de interesse público, a de decidir os vários testes de juridicidade a que deve submeter a decisão.”

            Confirmando o que foi dito, a Ministra Eliana Calmon, em magistral julgado[104] ressaltou a nova visão do Superior Tribunal de Justiça, quanto ao controle judicial do ato administrativo discricionário:

“Administrativo e Processo Civil – Ação Civil Pública  - Ato Administrativo Discricionário: nova Visão.

1 – Na realidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador (...)”

            Assim, o critério de hermenêutica conforme a Constituição privilegia a interpretação extensiva da norma legal, e via de conseqüência, pode-se desnudar o ato administrativo discricionário para coteja-lo com o estabelecido na Magna Carta.[105]

            A justificativa oficial para a ilimitada ampliação da abrangência da atuação administrativa, pauta-se em aventada mudança no perfil do Estado, que teria deixado de ser “liberal” passando a assumir posturas “sociais”, com vista a assegurar os direitos à saúde, assistência, educação, etc.

            Abstraindo-se da constatação de que tais propósitos não foram atingidos, o que por si só espancaria a validade da justificativa, não se pode olvidar a advertência de Pontes de Miranda,[106] quanto ao risco de supressão das conquistas obtidas com o liberalismo, em nome da suposta efetivação de direitos fundamentais de segunda e terceira dimensões:

“Há de aproveitar-se o que já se alcançou; levar-se consigo o que se tem, ao ir-se buscar o que se não tem. Deixando-se o que se tem, ter-se-ão de percorrer outras estradas para readquirir o que se deixou no meio do caminho.”

            Assim, a liberdade na aferição da oportunidade e conveniência da atuação administrativa, impõe balizamento não só na lei, como nos princípios constitucionais, não se autorizando, ao intérprete e operador do direito, sopesa-los à sua conveniência invocando a preponderância de interesses ditos “sociais”, já ponderados pelo constituinte originário.

VI – DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA ATUAL QUE DEFENDEM O CONTROLE DE MÉRITO DO ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.

            Após deixarmos bem claro o nosso posicionamento, embasado na evolução da Teoria Geral da Constituição, que passou a irradiar os seus efeitos em todos os ordenamentos jurídicos, inclusive sobre o direito administrativo, citamos outras posições que convergem com a nossa.

            Entre os autores nacionais, Cláudio Ari Mello,[107] antes invocado sobre a visão no passado da zona livre de jurisdição do Poder Executivo, item III do presente trabalho, demonstra a evolução do Direito Administrativo Constitucional e o reflexo da tese da “injusticiabilidade dos atos discricionários”:

“Estes precedentes conservadores não significam, entretanto, que não tenham ocorrido avanços importantes na teoria e na jurisprudência, avanços que se têm revelado consentâneos com a evolução do direito administrativo está no processo de constitucionalização pelo qual tem passado ao longo das últimas décadas. Esse fenômeno, de resto generalizado no Direito, conforme já registrei, é particularmente acentuado neste ramo jurídico, que, a rigor, jamais deixou de ser um destacamento do direito constitucional. E é ainda mais exigível em um sistema jurídico como o brasileiro, em que os princípios fundamentais e parte significativa dos institutos do direito administrativo encontram-se regulados na própria Constituição. Pois bem, esse processo de constitucionalização tem permitido inserir a dogmática do direito administrativo nas grandes discussões conduzidas dentro da teoria constitucional, que, como vimos, mantém hoje um intenso debate com a filosofia moral e política e com as ciências sociais. O contato com o direito constitucional tem produzido uma autocrítica do direito administrativo e uma revisão dos conceitos nucleares da sua dogmática, dentre eles justamente a doutrina da discricionariedade administrativa, do que tem resultado um refluxo consistente e sustentável da tese da injusticiabilidade dos atos discricionários.”

            Celso Antônio Bandeira de Mello,[108] mesmo sobre outro enfoque, defende o controle de mérito do ato administrativo discricionário, consoante a seguinte lição:

“O ‘mérito’ do ato administrativo não pode ser mais que o círculo de liberdade indispensável para avaliar, no caso concreto, o que é conveniente e oportuno à luz do escopo da lei. Nunca será liberdade para decidir em dissonância com este escopo.

Por tal razão, extrapolam o mérito e maculam o ato de ilegitimidade os critérios que o agente adote para decidir-se que não tenham sido idoneamente orientados para atingir o fim legal. É o que se passa naqueles: (a) contaminados por intuitos pessoais – pois a lei está a serviço da coletividade e não do agente; (b) correspondentes a outra regra de competência, distinta da exercitada – pois à lei não são indiferentes os meios utilizados; (c) que revelam opção desarrazoada – pois a lei não confere liberdade para providências absurdas; (d) que exprimem medidas incoerentes: 1. com os fatos sobre os quais o agente deveria exercitar seu juízo; 2. com as premissas de que o ato deu por estabelecidas; 3. com decisões tomadas em casos idênticos, contemporâneos ou sucessivos – pois a lei não sufraga ilogismos, nem perseguições, favoritismos, discriminações gratuitas à face da lei, nem soluções aleatórias; (e) que incidem em desproporcionalidade do ato em relação aos fatos – pois a lei não endossa medidas que excedem ao necessário para atingimento de seu fim.

Em todos esses casos, a autoridade haverá desbordado o ‘mérito’do ato, evadindo-se ao campo de liberdade que lhe assistia, ou seja, terá ultrapassado a sua esfera discricionária para invadir o setor proibido. O ato será ilegítimo e o Poder Judiciário deverá fulmina-lo, pois estará colhendo, a talho de foice, conduta ofensiva ao direito, que de modo algum poderá ser havida  com insindicável, pena de considerar-se o direito como a mais inconseqüente das normações e a mais rúptil e quebradiça das garantias.”

            Com enfoque constitucional, onde é relatado o progressivo controle na base dos princípios da Magna Carta no Brasil, que vem adotando a teoria germânica dos “vícios de discricionariedade” segue o notável posicionamento de Andreas J. Krell:[109]

“Não há mais dúvidas, no Brasil, de que todo e qualquer ato administrativo, inclusive o ato discricionário e também aquele decorrente da valoração administrativa dos conceitos indeterminados de prognose, é suscetível de um controle jurisdicional mínimo, baseado nos princípios constitucionais e nos princípios gerais de Direito. Na atual fase ‘pós-positivista’, que foi instaurada com a ampla positivação dos princípios gerais de Direitos nos novos textos constitucionais, os atos administrativos discricionários não devem ser controlados somente por sua legalidade, mas por sua juridicidade. Essa ‘principialização’ do Direito brasileiro (proibição da arbitrariedade, razoabilidade, proporcionalidade, igualdade, proteção da confiança legítima, etc.) aumentou a margem da vinculação dos atos discricionários.

Nesse controle, ganham fundamental importância os princípios da Administração Pública, consagrados no art. 37 da Carta Federal: a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência delimitam a margem de interpretação de todo o sistema jurídico e estabelecem os limites da juridicidade de qualquer ato estatal. Uma posição destacada nesse rol ocupa o princípio da moralidade, visto que sua inserção no texto da Carta Magna provocou um reencontro dos conceitos do Direito Moral, cuja estrita separação tem sido, durante muito tempo, um verdadeiro dogma juspositivista, que teve um efeito extremamente pernicioso, inclusive na gestão da coisa pública no Brasil.”

            Luís Afonso Heck,[110] louvando-se em precedentes do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (BVerfGE 69, 161 (169), com referência às BVerfGE 18, 353 (363); 48, 210; BVerfGE 23, 127 e BVerfGe 34,261):

“No Estado de Direito, a atividade das autoridades administrativas nunca é ‘completamente livre’, também quando elas, embasadas em determinações legais, estão autorizadas a proceder segundo a sua descrição. Então, igualmente, ficam vinculadas aos preceitos estatais – jurídicos gerais, como a proibição de arbitrariedade e o princípio da proporcionalidade. Este, juntamente com o preceito da proibição de excesso, estende-se, como regra diretiva, a todas as atuações estatais e, com isso, também a liberdade de conformar do legislador é, por ambas, limitada.”

            A doutrina estrangeira também defende a evolução do direito administrativo constitucional, como uma forma de vincular todos os atos públicos aos princípios e as normas constitucionais, sendo afirmado por Vasco Pereira da Silva:[111] “O poder discricionário não é assim nenhuma realidade extra-jurídica, antes algo que se enxerta no processo de reconstituição, que é a interpretação e aplicação do direito (...) A fiscalização jurisdicional do poder discricionário tem por objetivo a apreciação da conformidade da decisão com a lei e o direito...”

            O mesmo autor dá ênfase ao início da tribunalização do direito francês, onde o Conselho do Estado daquele país que é a instância máxima do contencioso administrativo, passou a ser visto, em igualdade de condições, com a função criadora do Conselho Constitucional (“conseil constitutionnel”), a partir de uma decisão desta última Corte, de 22.07.80, como produtora de decisões jurisdicionais, considerando como integrado no poder judicial: “Através desta decisão da jurisprudência constitucional foi definitivamente reconhecida a natureza jurisdicional da Secção Contenciosa do Conselho de Estado ( e já não uma natureza semi-administrativa, ou sui generis), bem como a sua integração no poder judicial.”[112]

            Para Paulo Otero,[113] “o conteúdo das próprias normas das leis revela uma progressiva substituição de regras por princípios, originando uma normatividade “principialista” que provoca uma diluição do conteúdo material da legalidade, fazendo surgir um “Direito Administrativo de Princípios”.

            Karl Larenz, perfilha-se aos eminentes juristas declinados, quando aduz:[114]

“Aliás, esta margem de discricionariedade conferida à Administração é, nos termos da concepção actual, sempre limitada, seja lá pela própria lei que confere o poder discricionário, seja pelas limitações a ter permanentemente em conta, que decorrem da Constituição e de princípios gerais do Direito, como o da proporcionalidade.”

            Por sua vez, Luis Garcia del Rio, aduna que: “El control judicial de los actos de la Administración Pública no sólo nos sitúa ante una de las cualidades que definen al Estado como Estado de Derecho, sino que atañe directamente a la estructura misma de aquél; no en vano, sólo cabe concluir en la existencia de un verdadero controle de legalidad de los actos de las Administraciones Públicas, partiendo del principio de la separación de los poderes del Estado y de la propia independencia del poder judicial.”[115]

            Finalizando o ciclo dos notáveis publicistas estrangeiros, M. Francisca Portocarrero,[116] ratifica a nova orientação constitucional da dependência da discricionariedade estatal aos princípios jurídicos: “A leitura da discricionariedade que se impõe no  Estado de Direito, que é a de que ela é de exercer segundo os princípios jurídicos e um programa de execução por eles informado, exige a sua compreensão como sendo toda ela de referir, no procedimento da sua decisão, à hipótese; a qual será de reconstruir de acordo com aquele processo jurídico de complementação de tatbeestand que é necessário para poder deduzir automaticamente o resultado jurídico adequado à situação do interesse público.”

            Como a doutrina vem amadurecendo no curso dos anos, a jurisprudência, apesar de dividida, também se posiciona em prol dos princípios da Constituição, como a vincular todo o Estado.

            Nessa nova corrente de julgadores, agrega-se o posicionamento do Min. Carlos Velloso,[117] no RE nº 359444/RJ:

“Administração Pública - Prática de Atos - Regência. A Administração Pública submete-se, nos atos praticados, e pouco importando a natureza destes, ao princípio da legalidade.”

            Em um Estado de Direito não se tolera atos excessivos ou abusivos, sendo permitido ao Poder Judiciário reprimir o abusivo ato administrativo discricionário:

“(...)Lei 9.784/99 foi promulgada justamente para introduzir no nosso ordenamento jurídico o instituto da Mora Administrativa como forma de reprimir o arbítrio administrativo, pois não obstante a discricionariedade que reveste o ato da autorização, não se pode conceber que o cidadão fique sujeito à uma espera abusiva que não deve ser tolerada e que está sujeita, sim, ao controle do Judiciário a quem incumbe a preservação dos direitos, posto que visa a efetiva observância da lei em cada caso concreto(...)”[118]

            Preconizando a inafastabilidade da jurisdição, consagrada constitucionalmente (art. 5º, XXXV, CF), o Min. Luiz Fux[119] afirmou que não há discricionariedade frente aos direitos constitucionais:

“(...) A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea. 5- Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das igualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à educação das crianças a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais. 6- Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância revela-se essa categorização, tendo em  vista a explicitude do ECA, inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no preceito educacional (...)”

            Também é lícito ao Poder Judiciário limitar atos punitivos da autoridade administrativa em processo disciplinar, em homenagem ao princípio da legalidade, sem que haja uma substituição de discricionariedade de um poder sobre o outro:

“ADMINISTRATIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. LIMITE DE ATUAÇÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. 1. No Processo Administrativo Disciplinar, instaurado para apuração de falta cometida por funcionário público, a autoridade encarregada do julgamento não se vincula ao parecer da comissão e, desde que fundamente, pode, inclusive, aplicar penalidade mais grave, sem possibilidade de o Judiciário substituir sua legítima discricionariedade. No entanto, no estreito limite do controle da legalidade do ato administrativo, defere-se ao Judiciário a competência para afastar alteração injustificada, em afronta à gradação prevista na legislação de regência para aplicação de penalidades, do enquadramento proposto pela comissão. 2. Recurso provido.”[120]

            E coube ao Min. José Delgado, no RESP nº 647417/DF, 1ª Turma/STJ, DJ de 21.02.2005, p. 114, deixar assente que: “... mérito significa uso correto da discricionariedade, ou seja, a integração administrativa. Com observância do limite legal e o limite do legítimo, o ato tem mérito. Caso contrário, não tem mérito e deixa de ser discricionário para ser arbitrário, e, assim, sujeito ao controle judicial.”

            A Administração Pública deve seguir os parâmetros da razoabilidade  e da proporcionalidade, em todos os seus atos, como fixado no RESP nº 443310/RS:[121]

“2. A atuação da Administração Pública, deve seguir os parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade, que censuram o ato administrativo que não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei almeja alcançar. 3. A razoabilidade encontra ressonância na ajustabilidade da providência administrativa consoante o consenso social acerca do que é usual e sensato. Razoável é conceito que se infere a contrario sensu; vale dizer, escapa à razoabilidade "aquilo que não pode ser". A proporcionalidade, como uma das facetas da razoabilidade revela que nem todos os meios justificam os fins. Os meios conducentes à consecução das finalidades, quando exorbitantes, superam a proporcionalidade, porquanto medidas imoderadas em confronto com o resultado almejado (...)”

            Na remoção de um servidor público ao interesse da Administração Pública, que como visto anteriormente represente a conveniência e a oportunidade de escolha, o STF[122] impediu que fosse estabelecido o abuso de poder, visto que o ato não estava motivado, apesar de discricionário:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO - PRESSUPOSTO ESPECIFÍCO DE RECORRIBILIDADE. A parte sequiosa de ver o recurso extraordinário admitido e conhecido deve atentar não só para a observância aos pressupostos gerais de recorribilidade como também para um dos específicos do permissivo constitucional. Longe fica de vulnerar o artigo 6., parágrafo único, da Constituição de 1969 acórdão em que afastado ato administrativo praticado com abuso de poder, no que revelou remoção de funcionário sem a indicação dos motivos que estariam a respalda-la. Na dicção sempre oportuna de Celso Antônio Bandeira de Mello, mesmo nos atos discricionários não há margem para que a administração atue com excessos ou desvios ao decidir, competindo ao Judiciário a glosa cabível (Discricionariedade e Controle judicial).”

            Funciona, o Poder Judiciário, dessa forma, não como um intruso no Poder alheio, e sim como o fiel depositário das garantias constitucionais pelas quais tanto clama a sociedade, ou seja, como guardião da Constituição.

            Nesse sentido, funcionou o controle jurisdicional do desvio de poder na análise de requisitos subjetivos para edição de Medidas Provisórias, onde o Plenário do STF, em decisão unânime, deferiu o pedido de medida cautelar em sede Ação Direta de Inconstitucionalidade, para suspender os efeitos do texto analisado, por entender que na hipótese sub examem inexistiriam os requisitos de relevância e urgência exigidos pela Constituição Federal para sua edição pelo Presidente da República. Esse julgamento cautelar teve como objeto o art. 4º, da MP nº 1632-1, de 9/4/98, que ampliava o prazo de decadência de dois para cinco anos, quando proposta a ação rescisória pela União, Estados, DF ou os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas (art. 4º, caput) e criava, em favor dos citados entes de direito público, uma nova hipótese de rescindibilidade dos julgados. Entendeu o STF[123], portanto, que era flagrante a ausência de relevância e urgência, consignando:

“Medida Provisória: excepcionalidade da censura jurisdicional da ausência dos pressupostos de relevância e urgência à sua edição: raia, no entanto, pela irrisão a afirmação de urgência para as alterações questionadas à disciplina legal da ação rescisória quando, segundo a doutrina e a jurisprudência, sua aplicação à rescisão de sentenças já transitadas em julgado, quanto a uma delas a criação de novo caso de rescindibilidade – é pacificamente inadmissível e quanto à outra - a ampliação do prazo de decadência – é pelo menos duvidosa.”

            Da mesma forma, o STF[124] concedeu medida liminar entendendo que:

“... a edição de medida provisória faz-se no campo da excepcionalidade. Leitura eqüidistante do artigo 62 da Carta Política revela a necessidade de concorrerem requisitos, a saber: a relevância e a urgência do trato da matéria de forma excepcional, ou seja, pelo próprio Presidente da República em detrimento da atuação dos representantes do povo e dos Estados, ou seja, das Câmaras Legislativas. Pois bem, na espécie, não estão presentes estas condições, no que modificada a lei que já se encontrava em vigor desde 1992.”

            Estes precedentes declinados são de suma importância, pois a edição de Medidas Provisórias se abriga na esfera de discricionariedade do Chefe do Executivo (Presidente da República), desde que presentes os requisitos de relevância e urgência. Até as duas decisões acima transcritas, entendia o Pretório Excelso competir, de forma exclusiva e discricionária, ao Presidente da República, no momento da edição das Medidas Provisórias, a análise se a situação fática realmente enquadra-se no conceito de relevância e urgência. Alterando o seu entendimento, o STF, passou a entender pela possibilidade excepcional de controle jurisdicional da interpretação dos requisitos constitucionais, quando ficar caracterizado que a MP editada não contém em sua essência os requisitos básicos para sua existência: relevância e urgência.

            Este exemplo é bastante salutar, pois ficou consignado, para sempre, que compete ao Judiciário penetrar no ato administrativo discricionário, para confrontá-lo com o que vem estatuído na Constituição Federal.

            Em abono ao que foi dito, e comprovando a ampliação do controle jurisdicional em relação a atos discricionários, pode-se citar outra expressiva passagem do STF, quando do julgamento do RE nº 167.137/70[125], onde estava sendo discutido o abuso da discricionariedade para análise dos requisitos subjetivos para nomeações políticas. Esses requisitos subjetivos, tais como: “notório saber jurídico”, “notórios conhecimentos jurídicos, econômicos, financeiros e contábeis ou de administração pública”, “reputação ilibada”, “idoneidade moral”, haviam sido desprezados pelo Chefe do Executivo quando da nomeação de Conselheiro de Tribunal de Contas de determinado Estado. Entendeu o STF nesse julgamento[126] que, apesar de exigir discricionariedade do Poder Executivo para analisar esses requisitos, há a “necessidade de um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectuais dos nomeados e o ofício a desempenhar”.

            Visa esse controle estancar o abuso de poder do ato administrativo discricionário, que poderá vir desviado por finalidades pessoais, contrárias ao interesse público. Caso típico do que foi afirmado, dá-se quando o administrador promove determinada remoção de servidor público, para puni-lo ou demonstrar poder sobre os demais agentes públicos, deixando de revelar os motivos que precedem o ato.

VII – CONCLUSÃO

            Após toda a presente explanação constata-se que o Estado Democrático de Direito dotou o Poder Judiciário, na separação de função dos Poderes, de um dever indelegável de manter intacta a unidade da Constituição, podendo para tanto adentrar ao controle de mérito do ato administrativo discricionário para que ele não se desgarre dos princípios objetivos e das normas fixadas pela Constituição como um poder-dever do administrador público.

            A consagração de uma tutela jurisdicional plena, efetiva e sem limitações do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF), representa o “edifício de garantias do Estado de Direito.”[127]

            Assim, os conceitos de conveniência e oportunidade do ato administrativo discricionário já não mais são vistos como uma “incógnita” jurídica, pois vinculados aos dogmas constitucionais. Assim é que, quando da execução do ato discricionário, o administrador público deverá motivá-lo em conformidade com o que vem estabelecido no Comando Maior.

            Há, portanto, uma concepção nova de que o ato administrativo discricionário é um privilégio da função em vez do poder,[128] com o pleno alargamento do controle jurisdicional para todas as decisões internas, independentemente se ela é discricionária ou não. Esta nova visão deve-se ao compromisso constitucional a que todos os homens públicos estão vinculados quando da realização de seus atos, bem como a garantia objetiva de proteção aos direitos fundamentais da parte, que deixou de ser vista como um administrado, mero objeto do poder, para ser destinatário de direitos e garantias individuais. Esta substancial alteração, colocou um ponto final na doutrina clássica defendida por Maurice Houriou do “processo ao ato”, que via no processo administrativo uma soberania do Estado, atacável somente para a verificação da legalidade.

            Essa relação entre os direitos constitucional e administrativo que Bouboutt[129] rotulou entre dois “irmãos siameses” não é mais desafinada, pois a nova concepção dos princípios constitucionais fez com que Peter Haeberle[130], afirmasse que “o Direito Administrativo atual existe, modifica-se e desaparece, tanto em sentido formal como em sentido material, em conjunção com – e indissociavelmente ligado ao – Direito Constitucional.”

            Portanto, vinculada e regrada pelo direito constitucional, surge a Teoria Geral do Direito Constitucional Administrativo, onde os direitos fundamentais estabelecidos pela Magna Carta são obrigatórios para todo o segmento da Administração Pública. Essa dependência constitucional do direito administrativo, fez com que Otto Bachof[131] escrevesse: “a influência da Constituição nas normas, institutos e conceitos do direito administrativo, bem como o seu aperfeiçoamento e transformação constituem o pão nosso de cada dia, sobretudo da justiça (administrativa).”

            Este pleno e eficaz exercício constitucional que estabelece a respectiva Teoria Geral do Direito Constitucional Administrativo submete e aumenta a responsabilidade, via de conseqüência, alarga o dever do Poder Judiciário de fiscalizar se a Administração Pública, de todos os Poderes, está realizando atos em conformidade com os preceitos e princípios constitucionais.

            Este poder-dever dos Tribunais não representa uma indevida intromissão no poder alheio, pois como visto anteriormente, já não prevalece mais o “mito” construído por Montesquieu, da ampla, geral e irrestrita divisão dos Poderes. Na atual dogmática constitucional, os poderes são instituídos para dividirem funções, que serão sempre disciplinadas e regradas pela Constituição.

            Dessa forma, qualquer ato administrativo sofre a influência direta dos princípios objetivos e das normas constitucionais, sem que com isto haja uma indesejada alteração da independência de um Poder sobre o outro.

            Cabe ao Poder Judiciário, como responsável pela salvaguarda da Constituição, fiscalizar o fiel cumprimento dos ditames constitucionais. Surge a inafastabilidade do controle jurisdicional, que segundo Zaiden Geraige Neto,[132] possui a obrigação de dizer se o ato discricionário foi exercido dentro da sistemática constitucional vigente.

            Concluímos, por fim, pela plena penetrabilidade do ato administrativo discricionário, que não poderá ficar imune ao controle judicial, máxime quando envolver o critério de conveniência e de oportunidade, pois a verdadeira liberdade consiste em fazer tudo aquilo que a Constituição estabelece. Com este eficaz controle do mérito do ato administrativo, não se está cerceando a Administração Pública, apenas o Poder Judiciário mantém efetiva a unidade da Constituição, quando estabelece que se cumpram os princípios e as respectivas normas da Magna Carta.

(Elaborado em maio/2005)

Notas:

[1] MONTESQUIEU, De L’Espirit des Lois, Livro XI, Cap. III, Ed. Flammarion, 1979, Paris, p. 292.

[2] LOCKE, John. Segundo Ensayo sobre el Gobierno Civil, ed. Espasa Calpe, Madrid, 1991, Cap. XI, § 149 e 150.

[3] ROUSSEAU, Jean -Jacques. O Contrato Social, Livro I, caps. I, II, III e XI, ps. 30, 33, 89.

[4] ROUSSEAU, Jean -Jacques. O Contrato Social, Livro III, cap. XV, cit. ant., p. 95.

[5] ROUSSEAU, Jean -Jacques. Ob. Cit. ant., Livro III, cap. XVIII, p. 99.

[6]  KANT, Immanuel. La metafísica de los Costumbres, 3ª ed., Ed. Tecnos, 1999, Madrid, § 46, p. 143.

[7] Juristas Universales, Vol. II, Rafael Domingo Coordenador, Marcial Pons, 2004, Madrid, p. 654.

[8] KANT, Immanuel. La Metafísica de Los Costumbres, cit. ant., § 49, p. 149.

[9] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Princípios da Filosofia do Direito, Guimarães Editores, 1959, Lisboa, § 258, p. 248.

[10] Cf. OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública. O sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2003, Lisboa, p. 154.

[11] ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 4ª ed., Coimbra, 1987, p. 69.

[12] Cf. SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina, 1996, Coimbra, p. 111.

[13] NIGRO, Mário. “Transformazioni dell’Admministrazione e Tutela Giurisdizionale Differenziata”, in Revista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Março de 1980, nº 1, p. 22.

[14] SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. cit.ant., p. 100.

[15] Cf. BARROSO, Luis Roberto. A Nova Interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Renovar, 2003, Rio de Janeiro, p. 52.

[16] BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, tomo III, Renovar, 2005, Rio de Janeiro, ps. 5/6

[17] “Esta precisão dos contornos da liberdade administrativa discricionária, uma vez submetida a função administrativa à lei e ao direito, impunha-se-nos, pois, aqui, dada a carga simbólica da formulação, utilizada no contexto daquele acórdão, escolher livremente entres soluções... ainda por cima, consideradas indiferentemente admissíveis. Por outro lado, e como já indiciamos acima, a compreensão, hoje, de um moderno e exigente princípio de juridicidade da actuação administrativa faz-nos salientar, também, que todo o exercício de discricionariedade é condicionado pela aplicação dos princípios jurídicos gerais da actividade administrativa , com dignidade legal e constitucional, máxime, pelos princípios da imparcialidade e da proporcionalidade.” (PORTOCARRERO, M. Francisca. “Notas sobre Variações em Matéria de Discricionariedade. A propósito de Algumas Novidades Terminológicas e da Importância de Construções Dogmáticas pelas Nossas Doutrina e Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo”, in Juris Et de Jure – Nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, Coordenação Manuel Alonso Vaz e J.A. Azeredo Lopes, 1988, Porto, p. 652).

[18] FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo, 6ª ed., Malheiros, 2003, São Paulo, ps. 59/160.

[19] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Curso de Direito Administrativo, 12ª ed., Ed. Forense, 2001, Rio de Janeiro, p. 132.

[20] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 14ª ed., Malheiros, 2002, São Paulo, ps. 339/340.

[21] FIORINI, Bartolomeu A. Teoria Jurídica del Acto Administrativo, Abeledo-Perrot, 1969, Buenos Aires, p. 11.

[22] DIEZ, Manuel Maria. El Acto Administrativo, 2ª ed., tipografia Editora Argentina S.A., 1961, Buenos Aires, p. 108.

[23] Cf. PIETRO, Sylvia Maria Zanella Di. Direito Administrativo, 14ª ed., Atlas, 2002, São Paulo, p. 182.

[24] Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 14ª ed., Malheiros, 1989, São Paulo, p. 143.

[25] HAEBERLE, Peter. “Auf dem wegzum Allgemeinen Vewaltungsrech”, in Bayerische Verwaltungsblaetter, nº 24, 15.12.77, p. 745.

[26] SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Para um contencioso Administrativo dos Particulares, Esboço de uma teoria Subjetivista do Recurso Directo de Anulação, Almedina, 1989, Coimbra, p. 112.

[27] BARROSO, Luiz Roberto. Temas de Direito Constitucional, Tomo II, Renovar, 2003, São Paulo, p. 363.

[28] CAMPOS, Francisco. Direito Administrativo, vol. 1, Freitas Bastos, 1958, Rio de Janeiro, p. 18.

[29] KELSEN, Hans. Allgemeine Staatslehre, p. 243, apud CAMPOS Francisco. ob.cit. ant., p. 19/20.

[30] JELLINEK, Walter. Gesetzanwendung und Zweckniässigkeitserwagund, p. 36/37, apud CAMPOS, Francisco. Direito Administrativo, vol. I, cit. ant., p. 28.

[31] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 14ª ed., Atlas, 2002, São Paulo, p. 2003.

[32] SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em Busca do Acto Administrativo Perdido, cit. ant., p. 11.

[33] AMARAL, Diogo Freitas do. Direito Administrativo, cit. ant., p. 60.

[34] SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. “Estruturas da Sociedade: Liberdade e Solidariedade”, in Gaudium et Spes, Rei dos Livros, 1988, Lisboa, p. 127.

[35] FRANCO SOBRINHO, Manuel de Oliveira. Comentários à Constituição, Freitas Bastos, 1º v., 1999, São Paulo, p. 132.

[36] MELLO, Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais, Livraria do Advogado Editora, 2004, Porto Alegre, p. 229.

[37] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, ed. Saraiva, 5ª ed., 2000, São Paulo, ps. 87/88.

[38] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 2ª ed., RT, 1998, São Paulo, p. 120.

[39] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo, 6ª ed., Malheiros, 2003, São Paulo, ps. 211/212.

[40] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. cit. ant., p. 209.

[41] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 25ª ed., Malheiros, 2000, São Paulo, ps. 109/110.

[42] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, 1994, São Paulo, p. 101.

[43] “Já não é novidade afirmar que a força normativa da Constituição projeta-se sobre todo o ordenamento jurídico. Um dos traços fundamentais do constitucionalismo contemporâneo é a transformação de uma miríade de assuntos que eram tratados pelo direito civil em matéria constitucional, tornando tênues as fronteiras entre o direito público e privado.” (PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. “Apontamentos sobre a Aplicação das Normas de Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares”, in a Nova Interpretação Constitucional, organizador Luís Roberto Barros, Renovar, 2003, Rio de Janeiro, p. 120).

[44] SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, cit. ant., p. 21.

[45] SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Ob. cit. ant., p. 21.

[46] Cf. PASTOR. Juan Allonso Santamaría, Principios de Derecho Administrativo, vol. 1, 3ª ed., Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 2000, Madrid, ps. 47/48.

[47] Cf. ENTERRIA, Eduardo Garcia de, FERNANDES, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo, vol. 1, 6ª ed., Civitas, 1993, Madrid, p. 20.

[48] “Ao subtrair o controlo da Administração ao Poder Judicial, os revolucionários franceses podiam, portanto, invocar o princípio da separação de poderes, encontrando ‘cobertura’ para essa interpretação no pensamento de MONTESQUIEU. (SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em Busca do Acto Administrativo Perdido, cit. ant., p. 19).

[49] DUPIS, George e GUÉDON, Marie-José, Droit Administratif, 3ª ed., Armand Colin, 1991, Paris, p. 44.

[50] Cf. KRELL, Andrean J, Discricionariedade Administrativa e Proteção Ambiental. O Controle dos Conceitos Jurídicos Indeterminados e a Competência dos Órgãos Ambientais, Livraria do Advogado Editora, 2004, Porto Alegre, p. 45.

[51] HAEBERLE, Peter. “Das Grundgesetz und die Herausforderungen der Zukunft-wer Gestalfet unsere Verfassungsordung?” in MAURER, Hartmut, Das Akzeptiere Grundgesetz – Festschriet giu Guenter Duerig Zum 70 Geburtstog, Beck, 1990, Munique, p. 16.

[52] Carl Schmit citando H. Stoll, defende: “El pleno derecho de control judicial es el verdadero coronamiento del Estado de Derecho.” (SCHMIT. Carl., La Defensa de La Constitución, traducido por Manuel Sanches Sarto, Tecnos, 1931, Madrid, p. 59.

[53] Cf. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada, 4ª ed., Atlas, 2004, São Paulo, ps. 140/141.

[54] Cf. MORAES, Alexandre de. Cit. ant., p. 141.

[55] NIGRO, Mário. Transformazioni dell’ Amministrazione e tutela e Procedura Civile, Março de 1980, nº 1, p. 22.

[56] NOVAIS, Jorge Reis. Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, Coimbra, ps. 34/35.

[57] KRELL, Andreas J., ob. Cit. ant., p. 45.

[58] STF, Rel. Min. Maurício Corrêa, RE 259.335 Agr/RJ, 2ª T., DJ de 7.12.2000, p. 22.

[59] STF, Rel. Min. Celso de Mello, MS nº 23.452/RJ, Pleno, DJ de 12.05.2000, p. 20.

[60] STF, REL. Min. Marco Aurélio, Ag. 171342-0, Informativo STF nº 28.

[61] OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública. O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2003, Lisboa, p. 278.

[62] Cf. QUEIRÓS, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial, Coimbra Editora, 2000, Coimbra, p. 136.

[63] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional, 6ª Ed., Coimbra Editora, 1995, Coimbra, p. 226.

[64] “A unidade da Constituição surge com a conjugação do processo e das suas funções de diferentes intérpretes. Aqui devem ser desenvolvidas reflexões sob a perspectiva da teoria da Constituição e da teoria da Democracia.” (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional, tradução Gilmar F. Mendes, Sergio Antônio Fabris Editor, 1997, Porto Alegre, ps. 32/33).

[65] A respeito do tema, segue o seguinte aresto do STF: “1.Servidor público estadual - Gratificação de Responsabilidade - GR concedida por lei a todos os servidores da SEFAZ ocupantes de cargos comissionados: extensão aos servidores inativos - aposentados em cargos comissionados, com base no art. 40, § 4º,CF (red. anterior à EC 20/98): o reconhecimento do direito a tal extensão, por decisão judicial que deu cumprimento a norma constitucional auto-aplicável, não ofende os princípios da separação dos poderes e da estrita legalidade, nem contraria a Súmula 339/STF. 2. Agravo regimental: interpretação de direito local, inviável na via do extraordinário: Súmula 280.” (STF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, AI 276786 AgR/AM, 1ª T., DJ de 25.04.2003, p. 35),

[66] Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª ed., Almedina, 2002, Coimbra, p. 251.

[67] DWORKIN, Ronald. Law’s Empire, The Fontana Press, 1986, Londres, reimp. 1991, caps. 10 e 11.

[68] Identificada a eficácia da Constituição como força normativa de sua preservação, Konrad Hesse, informa: “Como anotado por Walter Burckhardt, aquilo que é identificado como vontade da Constituição ‘deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático’. Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, ‘malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que toda as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado.” (HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, Porto Alegre, p. 22.

[69] STF, Rel. Min. Marco Aurélio, R nº 158.655-9/PA, 2ª T., DJ de 2.05.97, p. 16.567.

[70] cf. BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional, tomo III, Renovar, 2005, São Paulo, p. 386.

[71] cf. TÁCITO, Caio. “Controle Judicial da Administração Pública no Direito Brasileiro”, in Temas de Direito Público, vol. 1, Renovar, 1997, São Paulo, p. 997.

[72] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, traduzido por Flávio Beno Siebeneichler, templo Brasileiro, 2º v., 1997, Rio de Janeiro, p. 308/309.

[73] BAPTISTA, Patrícia. Transformação do Direito Administrativo, Renovar, 2003, São Paulo, ps. 42/43.

[74] HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, tradução de Luis Afonso Heck, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, Porto Alegre, ps. 376/377.

[75] TÁCITO, Caio. “Controle Judicial da Administração Pública no Direito Brasileiro” in Temas de Direito Público, vol 1, Renovar, 1997, São Paulo, p. 1012.

[76] Cf. QUEIRÓ, Afonso R., O Poder Discricionário da Administração, Coimbra Editora, 1944, Coimbra, p. 85.

[77] HUBER, Hans. “Niedergand des Rechts und Krise des Rechtstaats, in Demokratie und Rechtsaat, Festgabe Zun 60. Geburtstag von Zaccaria Giacomett, 1953, Zürich, p. 59.

[78] MELLO, Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais, Livraria do Advogado editora, 2004, Porto Alegre, p. 233.

[79] ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado, Bosch, 1961, Barcelona.

[80] DWORKING, Ronald. Los Derechos en serio, Ariel Derecho, 1984, Barcelona.

[81] ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, Madrid.

[82] JOSEF, Esser. Princípio y norma em la Jurisprudência del Derecho Privado, traduzido por Eduardo Valentí Fiol, Bosch, 1961, Barcelona, p. 9.

[83] Cf. MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Licitações e Seus Princípios na Jurisprudência, Lúmen Juris, 1999, Rio de Janeiro, p. 7.

[84] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., Malheiros, 1993, p. 84.

[85] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª ed., 1991, Lisboa, p. 479.

[86] LARENZ, Karl. Ob. cit. ant., p. 479.

[87] Cf. PEREZ, Jesus Gonzalez. El Principio General de La Buena Fe en El Derecho Administrativo, 2ª ed., Civitas, 1989, Madrid, p. 59.

[88] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, 6ª ed., UNB, 1995, Brasília, p. 256.

[89] ALEXY, Robert. Sistema Jurídico, Princípios Jurídicos y Razón Práctica, Doxa: Universidad de Alicante, nº 5

[90] CAMPOS, German Bidart. La Interpretacion y el Control Constitucionales en la Jurisdiccion Constitucional, Ediar, Buenos Aires, 1988, p. 234.

[91] CIOTOLA, Marcello. “Princípios Gerais de Direito e Princípios Constitucionais” in Os Princípios da Constituição de 1988, Coordenado por Manoel Messias Peixinho e outros, Ed. Lumen Juris, 2001, Rio de Janeiro, p. 29.

[92] REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 16ª ed., Saraiva, 1994, p. 61.

[93] “tanto las reglas como los principios son normas porque ambos dicen lo que debe ser. Ambos pueden ser formulados con la ajuda de las expresiones deónticas básicas del mandato, la permisión y la probición. Los principios, a igual que las reglas, son razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de un tipo muy diferente. La distinción entre reglas y principios es pues una distinción entre dos tipos de normas.” (ALEXY, Robert. Teoria de os Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, p. 83.

[94] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 8ª ed., Ed. Lumen Juris, p. 12.

[95] Nesse sentido se posiciona Patrícia Baptista: “A mais destacada atuação dos princípios constitucionais do direito administrativo se verifica no aperfeiçoamento do controle da Administração Pública, sobretudo no controle da discricionariedade.” (BAPTISTA, Patrícia. Transformação do Direito Administrativo, Renovar, 2003, São Paulo, p. 91.

[96] VILHENA, Oscar Vieira. A Constituição e sua Reserva de Justiça: Um ensaio sobre os Limites Materiais do Poder de Reforma, Malheiros, 1999, ps. 200/201.

[97] BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional, tomo II, Renovar, 2003, São Paulo, p. 367.

[98] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. cit. ant., ps. 135/136.

[99] PORTOCARRERO. M. Francisca, “Notas sobre Variações em Matéria de Discricionariedade. A propósito de Algumas Novidades Terminológicas e da Importância de Construções Dogmáticas pelas Nossas Doutrina e Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo”, cit. ant., ps. 648 e 650.

[100] Cf. HECK, Luís Alonso. O Tribunal Constitucional Federal e o Desenvolvimento dos Princípios Constitucionais, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995, Porto Alegre, p. 183.

[101] “O conceito de acto administrativo tem sido sempre recortado com base em considerações de natureza jurisdicional” (AMARAL, Diogo Freitas do. Direito Administrativo, cit. ant., p. 59).

[102] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. “A Constitucionalização das Regras da Administração Pública e o controle do Poder Judiciário, in Revista Ibero Americana de Direito Público, volume VII, 1ª trimestre de 2002, Ed. América Jurídica, Rio de Janeiro, p. 122.

[103] PORTOCARRERO, M. Francisca. cit. ant., p. 652.

[104] STJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Resp 493.811/SP, 2ª T., julgado em 11.11.2003.

[105] Cf. MATTOS, Mauro Roberto Gomes de, “Controle de Conveniência e Oportunidade do Ato Administrativo Discricionário”, in Revista Ibero Americana de Direito Público, volume XIV, 2º trimestre de 2004, Ed. América Jurídica, Rio de Janeiro, p. 287.

[106] MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade, Igualdade – (Os três caminhos). Campinas, Bookseller, 2001, p. 164.

[107] MELLO, Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais, Livraria do Advogado Editora, 2004, Porto Alegre, p. 232.

[108] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Judicial, Ed. Malheiros, 2ª ed., 1993, São Paulo, ps. 82/83.

[109] KRELL, Andreas J. Discricionariedade Administrativa e Proteção Ambiental. O Controle dos Conceitos Jurídicos Indeterminados e a Competência dos Órgãos Ambientais, Livraria do Advogado Editora, 2004, Porto Alegre, ps. 53/54.

[110] HECK, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o Desenvolvimento dos Princípios Constitucionais. Contributo para uma compreensão da Jurisdição Constitucional Federal Alemã, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995, Porto Alegre, p. 183.

[111] SILVA, Vasco Manuel Dias Pereira da. Em busca do Acto Administrativo Perdido, cit. ant., ps. 89/90.

[112] SILVA, Vasco Manuel Dias Pereira da. cit. ant., ps. 97/98.

[113] OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública. O sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, cit. ant., p. 761.

[114] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, fundação Calouste Gulbenkian, 3ª ed., 1997, Lisboa, p. 417.

[115] RIO, Luis Garcia del. “El Control de La Discrecionalidad Técnica”, in Discrecionalidad Administrativa  y Control Judicial, Civitas, 1996, Madrid, p. 375.

[116] PORTOCARRERO. M. Francisca. cit. ant., p. 690.

[117] STF, Rel. Min. Carlos Velloso , RE n.º 359444/RJ, Pleno, DJ de 28.05.2004, p. 7.

[118] STJ, Rel. Min. José Delgado, RESP 531349/RS, 1ª T., DJ de 9.08.04, p. 174.

[119] STJ, Rel. Min. Luiz Fux, RESP 575280/SP, 1ª T., DJ de 25.10.2004, p. 228.

[120] STJ, REL. Min. Fernando Gonçalves, RMS 10269/BA, 6ª T., DJ de 26.04.99, p. 128.

[121] STJ, Rel. Min. Luiz Fux, RESP 443310/RS, 1ª T., DJ de 3.11.2003, p. 249.

[122] STF, Rel. Min. Marco Aurélio, RE 131661/ES, 2ª T., DJ de 17.11.1995, p. 39209.

[123] STF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, ADIN nº 1.753-1/DF, Medida Liminar, Pleno, DJ de 12/06/98, p. 51.

[124] STF, Rel. Min. Marco Aurélio, ADIN nº 1.849-0/DF, Medida Liminar, DJ de 4/8/98.

[125] STF, Rel. Min. Paulo Brossard, RE nº 167.137/TO, 2ª T., DJ de 25/11/94, p. 32.312.

[126] STF, Rel. Min. Celso de Mello, MS nº 23.452-1/RJ, Pleno, ementário nº 1990-1, DJ de 12/5/2000.

[127] NOVAIS, Jorge Reis. Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, Coimbra, p. 35.

[128] SILVA, Vasco Pereira da. Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo, Almedina, 2000, Lisboa, p. 75.

[129] BOUBOUTT, Ould., L’appoit du Conreil Constitucionnel ou Droit Administratif, Econômica, 1987, Paris, p. 26.

[130] HAEBERLE, “Verfassungsprinzipien im Verwaltungsverfahrengesetz”, in SCHMITT, Glaeser, Verwaltungsverfahren – Festschriftfuer 50. Jaehrigen Bestehen der Richard Boordherg Ver lag, Boorberg, 1977, Stuttgart, p. 51.

[131] BACHOF, Otto. “Die Dogmatik des Werwaltungsrechts vor den Gegenwartasaufgaben der Verwaltung” in Veroeffentlichungen der Vereinigund der Deutschenstoatsrechtslehrer nº 30, Walter de Gryter, 1972, Berlin, p. 205.

[132] GERAIGE NETO, Zaiden. O Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional. Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, RT, 2003, São Paulo, p. 58.

 

Como citar o texto:

MATTOS, Mauro Roberto Gomes de..A constitucionalização do Direito Administrativo e o controle de mérito (oportunidade e conveniência) do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 171. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/1146/a-constitucionalizacao-direito-administrativo-controle-merito-oportunidade-conveniencia-ato-administrativo-discricionario-pelo-poder-judiciario. Acesso em 27 mar. 2006.

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