“(...) Só pra mostrar aos outros quase pretos - e são quase todos pretos - e aos quase brancos pobres como pretos, como é que pretos, pobres e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados (...) Pense no Haiti, reze pelo Haiti. O Haiti é aqui. O Haiti não é aqui. E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado, diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer plano de educação que pareça fácil, que pareça fácil e rápido e vá representar uma ameaça de democratização do ensino do primeiro grau e se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital e o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal...” (“Haiti”, Caetano Veloso)

No Haiti, tropas brasileiras lideram a missão MINUSTAH das Nações Unidas, enfrentando dialmente a hostilidade de um povo que, ao longo de sua história, somente teve as três últimas eleições diretas para presidente e, mesmo assim, intercaladas por golpes militares. Nas favelas cariocas, as tropas do Exército Brasileiro vão às ruas para tentar recuperar armas roubadas das suas instalações, enquanto as Polícias Civil e Militar se afundam nas suas ignomínias.

Excetuando-se alguns países europeus beneficiados com o welfare state, incentivado pelos norte-americanos, especialmente pós segunda guerra, nenhum outro continente pôde desfrutar inteiramente deste, dito e difundido, bem-estar social. África, Ásia e América Latina tiveram que arcar com as conseqüências de seu status quo de países subdesenvolvidos e serem relegados a ditaduras que durante anos exploraram, assim como antes, seus respectivos povos. A política neoliberal, propagada pelos ditos desenvolvidos, também não contribui para as nações que, recentemente, saíram dos seus anos de “trevas” sob a égide tirânica. A esses países faltam políticas básicas de educação, saúde e segurança pública, gerando desilusão aos dominados, pois ao manter o povo acuado, os que lucram com pobreza alheia continuam em suas mansões.

A precariedade dos serviços prestados à comunidade, ao povo brasileiro, se traduz na idéia de que, mesmo com seus direitos individuais violados pelo Exército – que foi à rua exercer o poder de polícia, garantido às Polícias Civil e Militar dos Estados e do Distrito Federal pela Constituição de 1988, salvante por ordem presidencial – os moradores sentem-se mais seguros sabendo que são vigiados por eles do que quando o são pelos policiais corruptos que ou associam-se aos traficantes nos morros ou utilizam-se de outros métodos para “fazer um dinheirinho extra”.

Caberia ao Exército prover essa segurança no atual Estado Democrático de Direito? Onde estaria o direito das pessoas de ir e vir sem terem que ser revistadas no caminho de volta para casa por soldados armados? Por que se levantar camisas, se as armas roubadas eram fuzis? As esconderiam os possíveis criminosos nas suas calças? Os moradores do morro vivem no cárcere domiciliar. Entre troca de tiros, entre balas perdidas. Em uma verdadeira guerra que ainda não se tornou mais grave, talvez porque alguém “lá em cima” ainda tenha consideração por esse povo.

Por que o Exército não fez, junto com as Polícias Federal e Civil, o serviço de inteligência, planejamento e verificação de locais? E o Ministério Público Militar, a fiscalização? Por que ir para rua? Foi uma afronta ter o armamento roubado “debaixo do nariz” deles? Foi para preservar a “honra”, para mostrar que eles ainda podem executar tarefas de busca e apreensão de suas armas, foi tudo, por fim, uma questão de soberba?

Esta é a segunda empreitada feita pelas Forças Armadas em solo carioca, tentando promover a segurança pública. E as organizações criadas pós-golpe de 64 não vêem com bons olhos essa afronta à liberdade.

Os haitianos vivem quase a mesma coisa, a diferença é que são estrangeiros em seu solo, em seu território, tentando garantir sua democracia. E ao Brasil, o assento permanente na ONU.

No Haiti, assim como nas favelas cariocas, onde a ação do Exército concentrou-se nos bairros pobres, onde a maioria da população não tem a quem recorrer, onde advogados e o Ministério Publico só vão quando para soltar ou prender. Onde estão os direitos dessas pessoas? Têm elas que conviver e suportar essa afronta? Essa degradação? Já não bastam suas insuficiências diárias tão gritantes? Quem disse que seria o povo haitiano ou das favelas que não cooperariam com as tropas da ONU ou do Exército? Quem sabe dizer se não era a pequena elite rica haitiana que não queria a “democratização” ou da zona sul carioca que mantinha em seu poder o armamento roubado? Quem poderá dizer? O Direito da autodeterminação dos povos só serve para os EUA e países do oeste europeu, de resto, nenhum outro Estado consegue tal proeza sem a “sábia” ajuda deles.

Os Estados Unidos foram ao Iraque com o pretexto de libertação e democracia para esse povo e, as torturas de Abu Ghraib mostram todo o seu comprometimento com esse ideário, bem como a falta de condenação ou represália (as que ocorreram serviram apenas de maquiagem das ações) aos soldados estadunidenses responsáveis pela crueldade.

Talvez a missão no Haiti tenha, no fundo, trazido “coisas boas” para o povo desse pequeno país esquecido nas águas caribenhas. Talvez o Exército nas ruas cariocas tenha provido, àqueles que moram nas áreas afetadas pela sua vigilância, certa segurança. Talvez as razões não tenham sido as mais acertadas, mas beneficiaram e influenciaram de forma positiva os destinos desses cidadãos. Todavia, talvez, o pensamento tenha que ser instigado, refletido e debatido, para que novos “Iraques” não sejam a regra.

( tema sugerido pelo colega Márcio Martins)

(Texto elaborado em março/2006)

 

Como citar o texto:

BENJAMIN, Alessandra Magalhães..O “Haiti” brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 173. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/1165/o-haiti-brasileiro. Acesso em 10 abr. 2006.

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