Quero chamar a atenção para o momento histórico em que vivemos. Crises no Judiciário, no Legislativo, no Executivo. Políticos, Ministros de Estado, agentes públicos, procuradores, juízes, advogados, delegados, executivos, todos envolvidos em escândalos dos variados tipos (desvios de dinheiro público, etc.) e envolvendo numerários às vezes astronômicos.

Para entender um pouco desse momento histórico devemos verificar os acontecimentos e fatos sociais, não apenas repassar esses. Temos que analisa-los juntamente com os fatos numa visão crítica dos mesmos, visualizando o contexto social, econômico, geográfico, cultural e político em que ocorreram. Devemos verificar quem contou a "história" e com que objetivo.

A consciência de que a história é contada por poucos (detentores de algum tipo de poder), para, com isso, buscar uma discussão da historicidade e tentar compreender a atual conjuntura do país, deve nortear nossa busca.

A interpretação elitista da história, segundo Leonardo Boff, é "a História dos que triunfaram, dos que chegaram ao poder. Não é a história dos vencidos, dos humilhados e ofendidos. Estes são esquecidos” (Wolkmer: 1999). E isso é o que ocorre em nosso sistema cultural.

Isso faz parte do discurso jurídico de manutenção do poder. Não devemos fechar os olhos e aceitar uma história que foi contada com um compromisso maior de manter a estrutura de poder então vigente, e não o de descrever criticamente os acontecimentos (momentos vividos) para que as gerações futuras possam aprender com o passado de nosso povo, com seus acertos e erros.

A dominação é uma constante em nossas vidas. O jogo de poder, a manipulação dos fatos e descrições distorcidas dos acontecimentos também faz parte da sociedade em que vivemos. Ler a História sem essas premissas, para uma análise crítica, é desconsiderar a capacidade e inteligência humana.

Recentemente, em participação num congresso de direito administrativo, um senador disse que ao fazer um levantamento das obras inacabadas no Brasil, descobriu-se que o caso do TRT de São Paulo era, apenas, uma gota no oceano (e olha que estamos falando de milhões de reais desviados), e que foram encontrados desvios desde a época do império. Isso nunca foi passado à população.

Vemos todos os dias discussões sobre a modificação e criação de leis com o intuito de solucionar os problemas, mas eles nunca são resolvidos (aguardaremos os resultados da Lei de Responsabilidade Fiscal).

O povo era iludido (e o é hoje) com leis abstratas, sem qualquer tipo de relação com a realidade, e, mais grave ainda, sem possibilidade de serem praticadas, ou ainda, sem que o cidadão possa fazer valer a lei, eis que não há mecanismos eficazes para isso.

Sabemos que o que criou e mantém a norma é o discurso jurídico. Ora, sendo o direito um discurso prescritivo, autorizado, que ameaça com a violência, e é reconhecido como tal (Óscar Correas), temos que a base de sustentação da norma é este discurso que é mutável por sua própria natureza (advindo das concepções dos homens e dos detentores do poder), é frágil, podendo ser alterado, se não for compreendido corretamente.

A situação que trazemos a tona é a seguinte: o discurso que mantém o direito atua como uma lógica da vida social, como um livreto, como uma partitura, porém, paradoxalmente não é conhecido, ou não é compreendido, pelos atores em cena (sujeitos de direito). Estes realizam certos rituais, imitam condutas, reproduzem certos gestos, com pouca ou nenhuma percepção de seus significados e alcances (Càrcova), o que acarreta o desconhecimento das causas e efeitos do surgimento da legislação.

O que temos é uma justificação do discurso através do direito. Trabalhando com essa idéia, Óscar salienta que o sentido ideológico do discurso do direito tem sua eficácia própria, que consiste na construção da consciência do dominado, para, com isso, manter as relações de poder.

Quem detém o poder econômico utiliza o direito para a "reprodução das relações sociais" já existentes ou para as posteriormente criadas com o fito de permanência, sendo pois uma colonização de consciência que, segundo Capella, é realizada pelos instrumentos que estão a serviço do poder: tecnologia (em especial informática) e as comunicações.

Os "cidadãos" são chamados a sacrificar-se a cada crise econômica (isto é: podem ver-se despedidos, aposentados de improviso, empobrecidos, marginalizados) enquanto se reestrutura o capital (isto é, quando este se desprende de técnicas produtivas obsoletas, se re-hierarquiza e amplia o seu âmbito de domínio); e hão de adaptar-se logo a seus ciclos de euforia, ou seja, consumir. Entregar a alma. Consumir qualquer coisa que se produza massivamente. Os "cidadãos" são livremente servos (Capella).

Os cidadãos se dobraram em servos ao ter dissolvido seu poder, ao confiar só ao Estado a tutela de seus "direitos", ao tolerar uma democracia falsa e insuficiente que não impede o poder político privado modelar a "vontade estatal", que facilita o crescimento, supra-estatal e extra-estatal, desse poder privado.

E fácil conceder direitos em uma legislação ambígua, inefetiva (que tem como base uma visão tão distorcida da realidade que as faz inúteis) para depois, no judiciário, rebater a aplicabilidade de tais direitos alongando a guerra jurídica por períodos demasiadamente longos.

Só não podemos é deixar de lutar e buscar a compreensão dos fenômenos sociais, pois o mesmo discurso que serve para construir e manter um poder, serve para limitá-lo, desde que saibamos como utiliza-lo.

Deixo uma pergunta: por que a história do coelhinho da páscoa nos é repassada até hoje?

 

 

Como citar o texto:

HOLTHAUSEN, Fábio Zabot..O discurso político, jurídico e histórico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 176. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/1205/o-discurso-politico-juridico-historico. Acesso em 2 mai. 2006.

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