1. INTRODUÇÃO

Os princípios são as forças basilares de uma ciência e guiam suas teorias e leis. Os princípios atuam como verdadeiras constituições de cada respectivo ramo de uma ciência: uma vez que suas teorias e leis ultrapassam suas fronteiras ou elas não valem ou provocam uma ruptura com o modelo que as cerca. Assim, a Teoria Geral do Direito Privado, presente na Parte Geral do Código Civil, traz acertadamente em seu Livro III a figura dos Fatos Jurídicos para moldar alguns dos princípios básicos do Direito Privado.

Logo no início do Livro III, ao tratar dos negócios jurídicos, o Código Civil estipula as condições de validade desse último, que segundo o art. 185 do mesmo diploma legal, se aplicam também aos atos jurídicos lícitos. Uma questão que surge então é: como diferenciar negócio jurídico do ato jurídico lícito? São institutos iguais ou diferentes?

O presente ensaio discorre sobre o tema abordando as principais vertentes dessa questão, bem como a classificação dos Fatos Jurídicos em sentido amplo e seus desdobramentos axiológicos.

2. FATOS JURÍDICOS

Muitas vezes nos deparamos com situações das mais diversas e não reparamos que o desenrolar de tais situações afetam o mundo jurídico. Ao achar uma pérola em alto mar e se apossar dela, o sujeito estará tomando para si a propriedade sobre uma res nullius. Alguém que joga no lixo de seu condomínio um pertence, estará realizando um ato de derelictio, abandonando uma coisa sua. Todos esses atos repercutem no mundo do Direito e todos os fatos com essa qualidade são chamados de fatos jurídicos. Exemplos análogos podem ser extraídos da obra de José Abreu Filho, O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral.

Destarte, encontramos vários conceitos de fatos jurídicos que ao se diferirem na forma, não o fazem tanto no aspecto semântico. Arnoldo Wald ensina que “os fatos jurídicos são aqueles que repercutem no direito, provocando a aquisição, a modificação ou a extinção de direitos subjetivos”. Conceito mais antigo, mas nem por isso menos importante, vem de Savigny que expressa que fatos jurídicos são os acontecimentos em virtude dos quais as relações de direito nascem e se extinguem (apud CARRIDE, 1997, p.3) .

De outro lado, alguns acontecimentos não repercutem no mundo jurídico e em nada afetam as relações jurídicas. A esses fatos dá-se se o nome de fatos materiais, simples ou neutros.

Dessa forma, o ponto crucial para a diferenciação de fatos jurídicos e fatos materiais é a presença ou não da repercussão jurídica. Como assinala José Abreu Filho, a natureza do fato, sua procedência, será irrelevante. Assim, para determinar se um fato é jurídico ou material, deve-se analisar as circunstâncias que o envolvem e não as que o geram. Exemplo clássico reproduz as conseqüências de um evento da natureza. Suponhamos que por força de uma forte tempestade, uma árvore caia e acerte em cheio um automóvel que estava próximo dela. Caso o proprietário do automotor tenha seu bem segurado, poderá cobrar da seguradora o valor estipulado em contrato, qualificando o acontecimento como um fato jurídico. Caso contrário - o automóvel não era segurado - o acontecimento não geraria efeito jurídico algum, se enquadrando como um fato material.

 

2.1 Classificação dos fatos jurídicos

A primeira classe dos fatos jurídicos representa os acontecimentos que independem da vontade. Nelas não há o elemento volitivo que caracteriza a conduta humana. São os fatos da natureza ou acontecimentos naturais.

Esses fatos da natureza também são divididos em ordinários e extraordinários. Os primeiros ocorrem com mais freqüência como o nascimento e a morte. Já os extraordinários ocorrem com menos freqüência como o caso fortuito e a força maior.

Exaurida a análise sobre os acontecimentos que independem da vontade, tem-se agora aqueles que se originam por uma manifestação volitiva da pessoa humana. Tal tema suscitou constantes debates ao longo do tempo.

A classificação feita pelo brilhante Professor Vicente Ráo nos apresenta três tipos de fatos jurídicos derivados da vontade humana. O primeiro compreende os fatos voluntários lícitos que por sua vez englobam as ações materiais ``que recaem sobre coisas do mundo físico, ou afetam a situação material de quem as pratica e as manifestações de vontade “consideradas como pressupostos dos efeitos assinados e ordenados rigidamente por lei” (1).

Os fatos voluntários ilícitos compreendem o segundo tipo de fatos oriundos da vontade humana, segundo o supracitado autor. Ao cometer um fato ilícito, que tem definição no presente Código Civil Brasileiro em seu artigo 186, é verdade que o agente não o faz com a vontade de desencadear as sanções e repressões que o acompanham. Ele o faz com o intuito de evitar algum prejuízo maior, pois para ele a sanção é mais conveniente do que o cumprimento da obrigação. Dessa forma, mesmo que o efeito causado não seja diretamente movido pela vontade do sujeito, a ilicitude de seu ato cria uma responsabilidade, oriunda de uma conduta negativa, a de não cumprir a obrigação.

Assim, os fatos lícitos e ilícitos são previamente prescritos em lei, sendo essa uma das características marcantes que os separam da próxima categoria de fato jurídico oriundo da vontade humana explicitado por Vicente Ráo: os atos jurídicos. Os atos jurídicos diferem dos outros fatos voluntários pela maior relevância da vontade. Assim, a vontade nos atos jurídicos visa alcançar, direta e imediatamente, os efeitos práticos protegidos pela norma e recebe desta o poder de auto-regulamentar os interesses próprios do agente(2).

Diferentemente de Vicente Ráo, os alemães adotaram outro modelo de classificação relativo aos fatos jurídicos voluntários. Oriunda dos Pandetistas alemães, essa outra forma de classificação assume que os fatos jurídicos voluntários são divididos em negócios jurídicos e atos não-negociais.

Os negócios jurídicos regulam interesses privados e emanam da autodeterminação das partes na relação jurídica. Destarte, os negócios jurídicos são a ponte entre a vontade humana e a concretização de efeitos pretendidos pela vontade reconhecidos pelo Direito. Semelhante posição adota José Abreu ao enunciar que o negócio jurídico ``seria resultante daquele elemento comum, ou seja, de uma atuação do homem, gerando aquela sincronização entre sua vontade e os efeitos por ele desejados.

A outra categoria de fatos jurídicos voluntários enunciada pelos Pandetistas alemães corresponde aos atos não-negociais. Nos atos não-negociais os efeitos derivam do cumprimento da lei, não sendo diretamente oriundos da vontade. Vejamos o exemplo do eminente Professor José Abreu:

``...se alguém, por ato de última vontade, reconhece filho legítimo, registra-se uma ação do homem cujos efeitos são preordenados pela lei. A este ato segue-se a repercussão admitida no ordenamento. O filho terá direito a integrar a sucessão do pai, a usar de seu nome, enfim, a uma gama de direitos que resultam daquele ato volitivo do homem.

 

Assim os fatos jurídicos resultantes do reconhecimento do filho pelo pai são atos não-negociais pois são efeitos não resultantes da vontade e, sim, resultantes do ordenamento jurídico. Os atos não-negociais ainda se dividem em atos de mera atividade material e atos jurídicos strictu sensu ou atos semelhantes ao negócio jurídico. Essa última classificação não é objeto do presente ensaio.

2.3 A teoria unitária e a teoria dualista do negócio jurídico

Como exposto anteriormente, a classificação de Vicente Ráo não menciona a nomenclatura negócio jurídico. Para Vicente Ráo a noção de ato jurídico coincide, em substância, com a de negócio jurídico formulada pela doutrina alemã(3). O renomado autor é um dos expoentes da teoria unitária em nosso Direito como expõe em sua grande obra intitulada Ato Jurídico. Essa posição pode ser derivada da antiga nomenclatura do Código Civil de 1916, que utilizava o termo ato jurídico para conceituar tanto o ato jurídico quando o negócio jurídico, conforme informa a passagem abaixo:

“O negócio jurídico é, portanto, uma categora geral, a qual, como vimos, vem em nosso Código anterior definida como ato jurídico, no art. 81”(VENOSA, 2006).

A doutrina dos Pandetistas alemães, por outro lado, prega a teoria dualista, ao separar ato de negócio jurídico. Assim, o negócio jurídico tem caráter autônomo e espécie de qual ato jurídico é gênero.

2.4 O Direito brasileiro hoje

À primeira vista, o Código Civil vigente em território nacional, frente o embate entre a teoria unitária e a dualista, parece ter adotado a segunda posição, pelo menos no tocante à nomenclatura. O citado diploma legal preferiu adotar a nomenclatura negócio jurídico a ato jurídico.

Tratando-se da divisão dos fatos jurídicos decorrente da vontade humana, os atos jurídicos, o Código Civil os divide em três categorias: atos jurídicos lícitos, atos ilícitos e negócios jurídicos. Essas três categorias vêm dispostas no Livro III da Parte Geral do Código, sendo que os negócios jurídicos dão destrinchados no Título I, os Atos Jurídicos Lícitos no Título II, ainda que sob o manto de apenas um artigo, e o os Atos Ilícitos no Título III.

Quanto à doutrina, sob a análise de Washington de Barros Monteiro, o atual Código empresta ao negócio jurídico o mesmo tratamento legal que o de 1916 emprestava ao ato jurídico, ainda que não o defina.

Arnoldo Wald é mais explícito e à luz do atual Código explicita que ato jurídico é sinônimo de negócio jurídico. É o que se pode depreender em sua obra Direito Civil - Introdução e Parte Geral, que transcreve a seguinte passagem:

``Os fatos voluntários ou atos subdividem-se em atos materiais ou de mera conduta e atos ou negócios jurídicos (declarações de vontade) (WALD, 2003)

Outro renomado autor, César Fiuza, adota postura diferente dos demais citados. Fiuza enuncia que negócio jurídico é espécie do gênero ato jurídico. Este último é dividido em atos jurídicos em sentido estrito, atos jurídicos ilícitos e negócio jurídico. Além disso, ressalta que o próprio Código Civil na maioria das vezes quando fala em ato jurídico se refere aos negócios jurídicos.

Ao encontro do exposto por César Fiuza, Sílvio Rodrigues também entende que ato jurídico engloba o conceito de negócio jurídico. Porém esse último classifica o negócio jurídico como uma espécie de ato jurídico lícito.

Seguindo a análise dos principais doutrinadores nacionais, Venosa retrocede ao Código de 1916 e aponta que esse Código antigo não atentou para as diferenças entre ato jurídico e negócio jurídico. Segundo ele, o velho Código apenas se limitou a definir o que entendia por ato jurídico, sem mencionar a expressão negócio jurídico. Dessa forma, Venosa também vê diferenças entre ato jurídico e negócio jurídico, pois o mesmo afirma que:

“Inobstante, porém, certa falta de técnica no tocante à estruturação dos negócios jurídicos em nosso Código anterior, corrigida no mais recente diploma, não há dificuldade para que a doutrina solidifique os conceitos dessa categoria geral, mas abstrata, que é o negócio jurídico”(VENOSA, 2006).

Ainda que de acordo com a solidificação do conceito de negócio jurídico, como preconiza Venosa, notamos ainda a falta de consenso no tocante à sua classificação dentre os atos voluntários.

Diante de tantas peculiaridades, parece-nos mais conveniente adotar a posição adotada pelos Pandetistas alemães e que vai ao encontro do entendimento de José Abreu Filho, César Fiuza, Sílvio Rodrigues e Venosa. Isso implica que para o presente trabalho, a teoria dualista do negócio jurídico é a mais conveniente. Adotamos essa posição por, de comum acordo com os pensadores acima relacionados, pensar que os negócios jurídicos, sendo atos negociáveis com maior relevância de vontade, têm natureza peculiar e se diferem dos demais atos jurídicos.

Restringindo agora os negócios jurídicos à sua classificação dentre os fatos jurídicos oriundos da vontade humana, entendemos ser a mais adequada a posição adotada por César Fiuza. A divisão desses fatos em atos jurídicos em sentido estrito, atos jurídicos ilícitos e negócios jurídicos, parece-nos a melhor forma de classificar os conceitos presentes nas figuras discorridas no presente ensaio. Vale ressaltar aqui que os fatos jurídicos em sentido estrito, são aqueles que emanam da vontade da lei e podem ser perfeitamente enquadrados na nomenclatura atos jurídicos lícitos conforme preconiza o atual Código Civil.

3. CONCLUSÃO

Diante do exposto nesse ensaio, podemos notar a amplitude desse ramo da Teoria Geral do Direito Privado, o ramo dos Fatos Jurídicos. Desde a definição dos Fatos Jurídicos até a sua classificação, nota-se uma sistematização oriunda de evoluções doutrinárias. A sistematização dessa área do Direito Privado é de suma importância, pois molda seus princípios e regula as relações privadas.

Regulamentar os acordos de vontade estipulando seus princípios é uma das funções precípuas do Direito Privado. Afinal, o que seria de nossa sociedade se os acordos não tivessem nenhuma garantia legal de serem cumpridos?

Vale ressaltar que a regulamentação dos acordos não constitui um cerceamento da liberdade contratual e sim medidas para garantir a ordem pública. A liberdade contratual sob a forma da vontade humana é de grande relevo para essa área do Direito. O surgimento do conceito de negócio jurídico é um exemplo dessa importância.

O negócio jurídico, sistematizado pelos alemães, fez com que divergências doutrinárias aparecessem, pois o Código de 1916 não os abordava. A solução então encontrada por Vicente Ráo foi equiparar os negócios jurídicos aos atos jurídicos. Isso não cessou as divergências. Com o intuito de encerrar a discussão, o novo Código Civil passou a adotar a nomenclatura negócio jurídico. Assim, atualmente a doutrina tem dado preferência à teoria dualista.

Quanto à classificação dos atos voluntários, ainda que os doutrinadores atuais não se atentem muito para essa questão, ficou claro pelos fatos aqui mencionados que mesmo com o novo Código Civil essa questão não encontrou um senso comum.

4. NOTAS

1. Vicente Ráo, Ato Jurídico, cit., p.31

2. Vicente Ráo, Ato Jurídico, cit., p.36

3. Vicente Ráo, Ato Jurídico, cit., p.40

5. BIBLIOGRAFIA

• CARRIDE, Norberto de Almeida. Vícios do Negócio Jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 1997.

• FILHO, José Abreu. O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral. 4 ed. São Paulo, Saraiva, 1997.

• FIUZA, César. Direito Civil, Curso Completo. 6 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

• MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, Parte Geral. 40 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

• RÁO, Vicente. Ato Jurídico. 4 ed. Editora Revista dos Tribunais, 1999.

• RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, Parte Geral. 32 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

• VENOSA, Sílvio de Salvo. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 6 ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2006.

• VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Parte Geral. 4 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004.

• WALD, Arnoldo. Introdução e Parte Geral. 10 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

(Texto elaborado em agosto/2006)

 

Como citar o texto:

NOLETO, Rafael Vasconcelos..Classificação dos fatos e atos jurídicos. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 195. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/1510/classificacao-fatos-atos-juridicos. Acesso em 9 set. 2006.

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