A doutrina da proteção integral encontra-se consubstanciada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente da Organização das Nações Unidas. No entanto, desde 1988 o Brasil adotou tal concepção ao inseri-la no art. 227, da Constituição da República Federativa do Brasil, nos seguintes termos:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

            Além de garantir um complexo conjunto de direitos a nova doutrina trouxe aos direitos da criança e do adolescente o status de prioridade absoluta, bem como, uma ampla garantia de proteção. Os novos direitos infanto-juvenis foram disciplinados com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990.

            É claro que o Estatuto da Criança e do Adolescente “[...[ tem a difícil, porém relevante, função de fazer com que o texto constitucional não seja letra morta; e para tanto, não basta a existência de leis que assegurem direitos sociais, mas que a estas sejam conjugada uma política social eficaz.” (SILVA, VERONESE, 1998). Para COSTA, a doutrina da proteção integral

[...] afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade de seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atual através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos. (1992, p. 19)

            AMARAL E SILVA anota que o novo direito da criança e do adolescente “traz normas e institutos exclusivos, não de alguns, mas de todas as crianças e adolescentes. Consagra na ordem jurídica a doutrina da proteção integral; reúne, sistematiza e normatiza a proteção preconizada pelas Nações Unidas.” (1994, p. 37)

            É, portanto, a doutrina da proteção integral a base configuradora de todo um novo conjunto de princípios e normas jurídicas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, que traz em sua essência a proteção e a garantia do pleno desenvolvimento humano reconhecendo a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento e a articulação das responsabilidades entre a família, a sociedade e o Estado para a sua realização por meio de políticas sociais públicas.

            Diante do novo contexto jurídico-político constituído a partir da incorporação da Doutrina da Proteção Integral, a violação dos direitos infanto-juvenis assumiu uma nova centralidade. No entanto, a exploração do trabalho de crianças e adolescentes ainda obtém destaque no cenário brasileiro, caracterizadas como uma das principais violações de direitos humanos. Segundo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em pesquisa realizada no ano de 2004 havia 5,4 milhões de crianças e adolescentes sendo explorados no trabalho. Do universo pesquisado constatou-se que 48% destes pequenos trabalhadores não recebem qualquer remuneração pelo trabalho realizado. SCHARTZMAN anota que

[...] na Região Sul quase metade da população de crianças e adolescentes cujos pais trabalham em atividade agrícola também trabalha nessa atividade, percentagem muito superior à Região Nordeste. Como a renda familiar na área rural do Sul correspondem ao dobro da renda no Nordeste, fica claro que existem diferenças sociais e culturais importantes que explicam esse padrão de trabalho de crianças e adolescentes, que não é conseqüência exclusiva da pobreza. (2001, p. 07)

Segundo GRUNSPUN, no Brasil “[...] milhões de crianças são exploradas no trabalho, muitas vezes como braços das famílias contratadas. O trabalho agrícola e serviços domésticos absorvem a maiorias das crianças que trabalham.” (2000, p. 21)

            LIMA anota que

O trabalho precoce ocorre em nosso país como em diversos outros países do mundo por diferentes razões. Entre esses motivos à concentração de renda nas mãos de poucos e a pobreza que delas resulta, e a necessidade de complementar a renda familiar, se constitui no mais importante e freqüente fator, conforme comprovam as pesquisas realizadas no Brasil e no mundo. (2000, p. 17)

Os estudos e pesquisas e realizados pelo Instituto Ócio Criativo também constatam que o trabalho precoce é o principal fator determinante pela evasão escolar e pela reprodução do ciclo intergeracional de pobreza. (2003, p. 07)

Crianças e adolescentes trabalhadores dificilmente atingem oito anos de escolaridade. Para o rompimento do ciclo intergeracional de pobreza são necessários ao menos onze anos de escolarização. Se o Brasil não constituir, com urgência, um conjunto de políticas sociais públicas capazes de reverterem este ciclo vicioso estar-se-á condenando milhões de crianças e adolescentes a um processo de exclusão estrutural.(2003, p. 15)

            Por isso, a legislação brasileira estabelece limites de idade mínima para realização de trabalho como forma de proteger o desenvolvimento pleno das crianças e dos adolescentes. A Constituição da República Federativa do Brasil prevê em seu art. 7o, XXXIII, “a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) e de qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 (quatorze) anos.”

            O Estatuto da Criança e do Adolescente ainda prevê, no art. 67, a proibição dos trabalhos penosos, bem como, daqueles realizados em locais prejudiciais à formação e ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social ou realizado em horários e locais que não permitam à freqüência à escola a todas as crianças e adolescentes.

            Portanto, há no ordenamento jurídico brasileiro um conjunto de normas protetivas contra a exploração laboral, que estabelecem limites da idade mínima para o trabalho, tanto para crianças, quanto para adolescentes, sendo, portanto, inadequada a utilização da expressão trabalho infantil para abarcar este universo conceitual. Daí, a necessidade de constituir o conceito jurídico de trabalho precoce, considerado como todo trabalho realizado pela criança ou adolescente antes dos limites protetivos da idade mínima para o trabalho no Brasil.

            Mas segundo OLIVEIRA,

[...] enganam-se aqueles que vêem nas normas jurídicas que definem as idades mínimas apenas seus aspectos negativos. Elas resguardam outros valores, outros direitos e têm especial relevância porque assinalam um marco importante: abaixo da idade mínima o trabalho deve ser eliminado. Preserva-se assim O DIREITO DE SER CRIANÇA, direito ao lazer, à educação, à pré-escola, direito a ser usufruído por toda a população infanto-juvenil e, não apenas, por uma minoria privilegiada. (1994, p. 08)

            É notável que a partir da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente a exploração do trabalho precoce recebeu maior atenção, sendo considerado como uma bárbara violação de direito fundamental da criança e do adolescente. Daí o estabelecimento de uma nova normatividade protetivas como forma de provocar mudanças sociais profundas em relação ao tema. Em que pese à distância existente entre lei e realidade, percebe-se um início de ações voltadas a proteção efetiva dos direitos infanto-juvenis frente à exploração no trabalho, ao menos no âmbito da garantia dos direitos. “Para o sociólogo Carlos Amaral, há duas saídas para reduzir os índices de trabalho infantil no país. Uma é o crescimento econômico e a maior distribuição de renda. A outra é a maior efetividade das ações institucionais [...]” (PERES, BENEDICTO, 2002, p. 109)

No entanto, mais do que apenas reduzir ou controlar os indicadores sociais das crianças e adolescentes trabalhadores uma vez que se reconhece como estratégia histórica de disciplinamento das classes excluídas, pois sua incorporação no mundo do trabalho serve de estratégia de manutenção de um poder dominante, produzindo uma cultura que subtrai o lazer e o desenvolvimento humano de crianças e adolescentes como demonstram os estudos realizados por SILVA. (2000)

            Visto sob outro ângulo, a transição histórica entre a exploração do trabalho precoce e o direito ao exercício do ócio criativo requer uma reflexão sobre o real papel do trabalho como elemento constitutivo do ser humano e do ócio como oportunidade de desenvolvimento integral.

A obra de Paul LAFARGUE, sobre o Direito à Preguiça, traz elementos desmistificadores da supervalorização do trabalho na sociedade industrial, como pode se notar:  “os gregos dos tempos áureos também só sentiam desprezo pelo trabalho: apenas aos escravos era permitido trabalhar; o homem livre conhecia apenas os exercícios corporais e os jogos da inteligência.” (1999, p. 65) Ou em suas denúncias

Uma estranha loucura apossa-se das classes operárias das nações onde impera a civilização capitalista. Esta loucura tem como conseqüência as misérias individuais e sociais que, há dois séculos, torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor pelo trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das forças vitais do indivíduo e de sua prole. (LAFARGUE, 1999, p. 63)

            RUSSEL, em seu Elogio ao Ócio também faz uma crítica profunda do papel do trabalho na sociedade capitalista industrial, nos seguintes termos “quero dizer, com toda a seriedade, que muitos malefícios estão sendo causados no mundo moderno pela crença na virtude do trabalho, e pela convicção de que o caminho da felicidade e da prosperidade está na redução organizada do trabalho.” (2002, p. 65) Percebendo que o trabalho essencialmente subtrai o lazer enfatiza que

A moderna técnica trouxe consigo a possibilidade de que o lazer, dentro de certos limites, deixe de ser uma prerrogativa de minorias privilegiadas e se tornem um direito a ser distribuído de maneira equânime por toda a coletividade. A moral do trabalho é uma moral de escravos, e o mundo moderno não precisa da escravidão. (RUSSEL, 2002, p. 27)

            É neste contexto que o sociólogo italiano MASI, propõe o conceito de ócio criativo como a oportunidade de compatibilização entre trabalho, estudo e jogo ou lazer. Deste modo destaca que

A plenitude da atividade humana é alcançada somente quando nela coincidem, se acumulam, se exaltam e se mesclam o trabalho, o estudo e o jogo (...); isto é, quando nós trabalhamos, aprendemos e nos divertimos, tudo ao mesmo tempo. Por exemplo, é o que acontece comigo quando estou dando aula. E é o que eu chamo de ‘ócio criativo’, uma situação que, segundo eu, se tornará cada vez mais difundida no futuro. (MASI, 2000, p. 148)

            O reconhecimento que o ócio é necessário à produção de idéias e ao desenvolvimento da criatividade, traz rupturas na concepção do trabalho como elemento construtor da humanidade.  Se o paradigma do desenvolvimento humano e a doutrina da proteção integral destacam que para a constituição da integralidade do ser humano, principalmente de crianças e adolescentes, são necessários o desenvolvimento da educação, do lazer, da cultura, da saúde, da convivência familiar e comunitária, ou seja, de um universo de oportunidades voltadas à globalidade do ser humano, não deveria ser apenas o trabalho o elemento constitutivo da identidade humana.

Então, a relação trabalho precoce como constituinte do ser-trabalhador entra em contradição com a relação de proteção integral como configurador do elemento ser-humano, estabelecendo relações políticas, econômicas e culturais da exclusão.

Surge daí, a compreensão de uma concepção alargada de ócio criativo, ou seja, que não compatibilize apenas trabalho, estudo e lazer, mas que ampare o desenvolvimento humano e integral das crianças e dos adolescentes. Reconhecendo seus direitos fundamentais como referências estratégicas para a construção do ócio criativo como um princípio essencial de desenvolvimento humano. A inter-relação entre as concepções de LAFAGUE, RUSSEL, MASI e os princípios da Doutrina da Proteção Integral e o Paradigma do Desenvolvimento Humano abrem um caminho desafiador para todos nós, qual seja, a garantia dos direitos da criança e do adolescente ao pleno desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

AMARAL E SILVA, Antonio Fernando do. O Estatuto, o novo Direito da Criança e do Adolescente e a Justiça da Infância e da Juventude. In: SIMONETTI, Cecília, BLECHER, Margaret, MENDEZ, Emilio Garcia (Orgs.). Do avesso ao direito. São Paulo: Malheiros/UNICEF, 1994.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1998.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.

COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Natureza e implantação do novo Direito da Criança e do Adolescente. In: PEREIRA, Tänia da Silva (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90: estudos sócio-jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.

GRUNSPUN, Haim. O Trabalho das Crianças e dos Adolescentes. São Paulo: LTr, 2000.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese dos Indicadores Sociais 2003. Brasília: IBGE, 2004.

INSTITUTO ÓCIO CRIATIVO. O Trabalho Precoce. Lauro Müller: mimeo, 2003.

LAFARGUE, Paul. Direito à Preguiça. São Paulo: Hucitec/UNESP. 1999.

LIMA, Consuelo Generoso Coelho de. Trabalho Precoce, Saúde e Desenvolvimento Mental. In: MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Proteção Integral para Crianças e Adolescentes: fiscalização do trabalho, saúde e aprendizagem. Florianópolis: DRT/SC, 2000.

OLIVEIRA, Oris. O Trabalho Infantil. Brasília: OIT, 1994.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional dos Direitos da Criança, 1989.

PERES, Andréia, BENEDICTO, Nair. A Caminho da Escola: 10 anos de luta pela erradicação do trabalho infantil no Brasil. Rio de Janeiro: ISC, 2002.

RUSSEL, Bertrand. O Elogio ao Ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

SCHAWARTZMAN, Simon. Trabalho Infantil no Brasil. Brasília: OIT, 2001.

SILVA, Maurício Roberto da. O assalto à infância no mundo amargo da cana-de-açúcar: onde está o lazer? O gato comeu!. (Tese de Doutorado). Campinas: UNICAMP, 2000.

SILVA, Moacyr Motta da, VERONESE, Josiane Rose Petry. A Tutela Jurisdicional dos Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1998.

(Artigo elaborado em setembro de 2006)

 

Como citar o texto:

CUSTÓDIO, André Viana..A doutrina da proteção integral: da exploração do trabalho precoce ao ócio criativo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 204. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-da-infancia-e-juventude/1612/a-doutrina-protecao-integral-exploracao-trabalho-precoce-ao-ocio-criativo. Acesso em 13 nov. 2006.

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