A) Um dos principais desafios à ciência do Direito é a concepção de um sistema axiológico-teleológico sob o qual seja possível sustentar decisões judiciais mais razoáveis e coerentes. Tal aspiração decorre de um processo interpretativo que aponte para a otimização dos meios praticamente necessários à consecução dos fins objetivos do ordenamento jurídico. Por fins objetivos, no corrente texto, não se compreendem os fins intuídos pelo legislador histórico, mas sim aqueles fins pressupostamente racionais prescritos de maneira objetiva, pelos intérpretes e/ou aplicadores da lei, no contexto do ordenamento jurídico vigente. Cabe ressaltar que, sendo postos normativamente, tais fins prescrevem fatos ou estados de coisas.

Ademais, revela-se imprescindível atentar para esses fins objetivos quando se busca interpretações adequadas e coerentes entre si, sobretudo nas situações em que há contradições entre normas jurídicas. Isso porque esses fins fornecem critérios, ou, como adverte Larenz , princípios ético-jurídicos, que, dimensionando mais corretamente o domínio de incidência de uma norma jurídica, exercem importância decisiva em várias situações concretas de antinomias (conflitos normativos). Um desses princípios jurídicos, já enfatizado por Larenz, é o da igualdade de tratamento, que encerra a idéia da igualdade proporcional, da “igual medida”. Evidencia-se, desde logo, a indiscutível necessidade de ponderar valores e de raciocinar prático-normativamente em procedimentos de interpretação jurídica e de decisões judiciais, principalmente quando ocorrem contradições valorativas, que devem ser, tanto quanto possível, minimizadas.

Importante enfatizar que, diante de uma contradição valorativa, os intérpretes recorrem, não raramente, a uma pressuposição de um legislador racional. Com efeito, diante de uma antinomia, os intérpretes da lei buscam, corriqueiramente, a maneira através da qual um legislador pressupostamente racional resolveria tal contradição. A mesma situação ocorre quando há lacunas no ordenamento jurídico, isto é, quando há casos não-previstos pelo legislador histórico que, mesmo assim, requeiram uma regulamentação jurídica, uma vez que não se encaixam em nenhuma norma válida existente. Aqui, os intérpretes buscam, habitualmente, a intenção que um legislador pressupostamente racional teria ao legislar sobre certo caso não-previsto.

De fato, é pertinente observar, que a definição do que vem a ser um legislador racional, ou de quais seriam as suas intenções numa determinada situação concreta, rende-se, aqui, à vontade subjetiva dos intérpretes e, por conseguinte, se sujeita a um elevado grau de manipulação. Essa constatação, com efeito, mostra a iminente necessidade do desenvolvimento de um raciocínio prático que, sob certos critérios objetivos, consiga solver conflitos normativos.

É pertinente observar, também, que uma conceituação mais interessante do que “interpretação a partir de fins” seria a de “interpretação a partir de razões” , visto que a determinação teleológico-objetiva e os fins objetivos constituem, fundamentalmente, descrições hipotéticas de uma realidade normativa (e não empírica), e apontam, necessariamente, para um conjunto de regras de ponderação de valores. Tais descrições, com efeito, devem ser feitas em enunciados normativos com um alto grau de generalidade, ou seja, em princípios. Dito isso, é possível inferir que a determinação teleológico-objetiva constitui, na verdade, uma determinação a partir de princípios, que necessitam, ainda, de maior concreção. Por agora, é suficiente notar (i) a dimensão normativa desses fins objetivos, (ii) as descrições hipotéticas objetivas elaboradas pelos agentes decisórios, (iii) a pressuposição dos intérpretes de que tais fins são racionais, (iv) a importância que exerce a argumentação racional em fundamentar e em legitimar essas descrições hipotéticas e (v) a convergência desses fins em dois pontos essenciais: no da diminuição das contradições valorativas entre as normas jurídicas e no da ponderação de valores.

B) Com a noção geral dada no item acima, agora importa notar que passagens como “Todos são iguais perante a lei...” (Art.5º, caput, CF/1988), “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos...” (Art.5º, inc. VI, CF/1988), além de servirem como uma orientação geral para a interpretação/aplicação dos enunciados normativos, constituem, freqüentemente, a ratio legis para justificar e/ou esclarecer as metas de um texto legislativo, ou de algumas de suas partes, pelo menos.

Para que os princípios constitucionais e as relações jurídicas deles originadas (sobretudo aquelas que versam sobre os direitos fundamentais) sejam bem compreendidas, é imprescindível esclarecer as peculiaridades da estrutura lógica dos princípios em geral. Desde logo, então, é importante perceber que os princípios conservam os componentes básicos da norma jurídica enquanto entidade semântica , ou seja, compõem-se de um operador deôntico e de um componente representacional . Com essa premissa, demonstra-se que, ontologicamente, os princípios estão equiparados às normas jurídicas lato sensu, já que, na verdade, eles constituem uma espécie do gênero “norma jurídica”, e não um gênero distinto, conforme aquilo que alguns estudiosos em Teoria do Direito soem afirmar.

Considerando que (i) os princípios constitucionais desempenham, incontestavelmente, um papel essencial e muito peculiar no processo de interpretação jurídica, que (ii) é relevante situá-los corretamente no sistema normativo constitucional (e em sua dinâmica) e que, como foi agora mostrado, (iii) os princípios equivalem, em sua dimensão ontológica, a normas jurídicas, torna-se bastante útil esclarecer a distinção que vem sendo intuída, por muitos autores, entre as regras jurídicas e os princípios jurídicos.

Em termos gerais, afirma-se que as regras jurídicas têm seu funcionamento vinculado a relações de “causa/efeito” e que elas possuem um grau relativamente baixo de generalidade. Quando uma regra, ao prescrever que, ocorrendo determinadas condições, devem ocorrer certos efeitos (conseqüências) jurídicos, prescreve também que, quando tais condições não ocorrerem, tais efeitos não devem ocorrer. Formalmente, pode-se expressar tal relação da seguinte maneira : C ? E (Se um conjunto definido C de condições ocorre, então um conjunto definido E de efeitos jurídicos deve ocorrer). Dessa forma, não é desarrazoado inferir que uma regra jurídica ou é aplicada, ou não é aplicada, já que um conjunto definido C de condições ou ocorre, ou não ocorre. Num conflito entre duas regras jurídicas, por exemplo, só uma das regras pode ser aplicada concretamente, salvo quando é possível incluir uma cláusula de exceção em uma delas que ou elimine o conflito, ou declare como inválida uma dessas regras .

Já os princípios jurídicos constituem normas que, possuindo um grau relativamente alto de generalidade, são aplicáveis prima facie. Não são regidos, portanto, pela dicotomia da aplicação/não-aplicação das regras jurídicas e o seu funcionamento não se vincula tão estritamente a relações de “causa/efeito”. Isso porque os princípios jurídicos são normas muito flexíveis que, além de admitirem diversos graus de aplicabilidade, contemplam várias condições possíveis de satisfação. Com efeito, os princípios podem ser mais ou menos aplicados e/ou aplicáveis nos casos concretos, e não não-aplicados e/ou não-aplicáveis.

Convém, aqui, firmar critérios mais decisivos para clarificar a distinção regra/princípio, já que critérios como o grau de generalidade ou como a relação “causa/efeito” são ainda muito obscuros e pouco precisos. Realmente, há uma grande zona de penumbra (textura aberta) nesses conceitos que dificulta a compreensão de muitos enunciados normativos, seja como regras, seja como princípios. Dito isso, é oportuno transcrever um importante ensinamento que Alexy intui, insignemente, acerca da referida distinção:

“El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas…En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos.”

 

É plausível cogitar, através da elucidativa visão de Alexy, que a aplicação otimizada dos princípios jurídicos, em geral, e dos princípios constitucionais, em particular, deve conduzir-nos à melhor maneira possível, dentro das possibilidades reais e jurídicas, de aplicar as regras e de elaborar, por conseguinte, decisões judiciais mais adequadas. Isso remete diretamente ao problema da colisão de princípios, e de como se deve agir para solver tal questão. Para tanto, importa chamar atenção para o princípio da proporcionalidade, que parece ser, nesses termos, o princípio de maior relevância funcional.

- O princípio da proporcionalidade

Considere os seguintes enunciados deônticos:

I) (R1) Deve realizar (a,x,E) ? P1 é realizado (Se a deve realizar a conduta x para que E, então P1 é realizado);

II) (R2) Deve realizar (a,~x,E) ? P2 é realizado (Se a deve realizar a conduta não-x para que E, então P2 é realizado);

A situação acima ilustra duas regras jurídicas (R1 e R2) que, ao comandarem condutas opostas (x e não-x), realizam, cada uma, um princípio distinto (P1 e P2). Há, aí, claramente, uma colisão de princípios, em que a realização de P1 implicaria, necessariamente, a não-realização de P2, e reciprocamente.

Só que, conforme aquilo que foi exposto, os princípios jurídicos são aplicáveis prima facie. Sendo assim, numa colisão de princípios, não se decide qual princípio vai ser aplicado e qual não vai ser aplicado (como ocorre, em geral, em conflitos de regras jurídicas), mas sim em que grau ou em que medida cada um dos princípios vai ser aplicado na situação concreta. A questão, como se percebe, concentra-se em saber, diante das circunstâncias reais e jurídicas, qual dos princípios tem maior preferência (ou peso) no momento de sua efetiva aplicação.

Dito isso, infere-se que o que existe, na verdade, é uma relação de interferência de P1 na realização de P2, na qual quanto maior seja a interferência de P1 em P2, maior também deve ser a importância de realizar P1, e vice-versa. É precisamente nesse ponto que o princípio da proporcionalidade atua com maior incisão. Agora, procurar-se-á, se não for possível definir esse princípio por completo, pelo menos fixar mais corretamente aquilo que há de mais problemático para ser ainda clarificado.

O princípio da proporcionalidade constitui um comando de otimização, ou seja, comanda que certo valor seja realizado da melhor maneira possível. Divide-se, segundo Alexy, em três postulados: no da adequação, no da necessidade (postulado do melhor meio possível) e no da proporcionalidade em sentido estrito (postulado da ponderação propriamente dita). Os dois primeiros são mandatos de otimização que apontam para as possibilidades fáticas, isto é, para a relevância das evidências concretas de que um princípio está interferindo no outro, enquanto o último é um mandato de otimização que aponta para as possibilidades jurídicas, no sentido de que tem que haver um sopesamento (ponderação) dos graus de satisfação dos princípios num caso concreto, respeitando o peso das possibilidades fáticas. Para que seja resolvida a colisão de princípios, então, é necessário desenvolver uma relação de precedência condicionada, ou seja, uma relação que afirme que, sob as condições concretas (relevantes) levantadas ao atentar para tais postulados, um dos princípios tem maior importância de ser realizado, tem maior aplicabilidade.

Essas considerações conduzem, mais uma vez, à objeção de que, a partir do momento em que se dá a ponderação das evidências e dos valores, abre-se uma fértil região para o subjetivismo dos intérpretes. Tal crítica é bem oportuna e, convém novamente insistir, aponta para a necessidade do desenvolvimento de modelos de fundamentação, que justifiquem racionalmente, por exemplo, porque certas evidências são mais relevantes do que outras para que um princípio seja considerado, num caso in concreto, mais importante do que outro.

C) A preferência por, nessa breve exposição, esclarecer a estrutura lógica dos princípios em geral, e por tentar situar mais corretamente os problemas mais graves que a Nova Hermenêutica Constitucional deve enfrentar atualmente, não é à toa. Cabe enfatizar que todo e qualquer conceito que se eleve acerca dos princípios constitucionais, de que eles, por exemplo, constituam um “conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins”, perpassa, necessariamente, por uma discussão séria acerca de três pontos que se julgam fundamentais: (i) delimitar, ontologicamente, o sistema normativo constitucional, (ii) compreender a sua dinâmica e (iii) desenvolver uma operacionalização mais homogênea dos princípios constitucionais através de justificações racionalmente postas. Essas linhas gerais são imprescindíveis para que os intérpretes não reduzam a práxis judicial a um mero jogo de interesses, o que acabaria pondo em xeque toda a estrutura que se vem procurando construir para o Direito em geral. Com efeito, ao mesmo tempo em que temos que compreender a Constituição como uma unidade, como uma norma fundamental que é capaz de integrar os valores contemplados no ordenamento jurídico (a dignidade da pessoa humana, por exemplo), não se pode relegar discussões mais incisivas acerca de em que momento os métodos hermenêuticos se tornam defasados em prever interpretações jurídicas coerentes e adequadas. Acreditamos que, dessa forma, justifica-se a proposta embebida já no título dessa exposição, a da reconstrução racional do conceito de princípio (constitucional), que, sendo não só relevante, bem como essencial, parece apontar para avanços promissores na compreensão da Nova Hermenêutica Constitucional, a hermenêutica dos princípios.

(Texto elaborado em 06/2006)

 

Como citar o texto:

SOUSA, Felipe Oliveira de..A reconstrução racional do conceito de princípio. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 211. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/1642/a-reconstrucao-racional-conceito-principio. Acesso em 7 jan. 2007.

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