SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1. O Conceito de propriedade 2. Previsão na Constituição Brasileira 3. A função social da propriedade             4. A crítica de Ferrajoli à propriedade como Direito Fundamental       5. A crítica de Peces-Barba à propriedade como Direito Fundamental 6. Direito à Propriedade nunca foi direito fundamental 7. Respondendo à crítica de Peces-Barba 8. Respondendo à crítica de Ferrajoli 9. Direitos fundamentais não são absolutos Considerações finais REFERÊNCIAS

Introdução

Neste artigo será analisado, se o direito à propriedade, previsto na Constituição Federal de 1988, diante do prenses da função social da Propriedade e de criticas de doutrinadores renomadas, como Luigi Ferrajoli  e Gregório Peces-Barba ainda pode ser considerado direito fundamental.

Para analisar esta questão, será conceituada a Propriedade, depois será analisada a limitação da propriedade pela função social e as críticas apresentadas à propriedade como direito fundamental por Ferrajoli, e Peces-Barba, para depois interpretar o significado de "direito á propriedade" na Constituição e rebater as críticas apresentadas. Nas Considerações Finais serão resumidos os resultados obtidas pela presente pesquisa.

Será utilizado o método indutivo e a pesquisa bibliográfica.

1. O Conceito de propriedade

Conforme Martignetti, o Conceito de Propriedade é:

"o de "objeto que pertence a alguém de modo exclusivo", logo seguido da implicação jurídica: "direito de possuir alguma coisa", ou seja, "de dispor de alguma coisa de modo pleno, sem limites". A implicação jurídica (de enorme importância sociológica) surge logo: ela é, com efeito, um elemento essencial do conceito de propriedade, dado que todas as línguas distinguem, como já fazia o direito romano, entre "posse" (manter "de fato" alguma coisa em seu poder, independentemente da legitimidade de o fazer) e Propriedade (ter o direito de possuir alguma coisa, mesmo independente da posse da fato). Estes elementos, embora sóbrios, são suficientes para propor uma definição sociológica do conceito de Propriedade. Chama-se propriedade à relação que se estabelece entre o sujeito "A" e o objeto "X", quando A dispõe livremente de X e esta faculdade de A em relação a X é socialmente reconhecida como uma prerrogativa exclusiva, cujo limite teórico é "sem vínculos" e onde "dispor de X" significa ter o direito de decidir com respeito a X, quer se possua ou não em estrito sentido material. A definição indica, genericamente, um sujeito A e um objeto X, sem especificar quem ou que coisa sejam A e X"[1].

A propriedade é garantida como direito fundamental pela constituição pátria, e das constituições da grande maioria dos outros países. Porém esta garantia sofre restrições pela própria Constituição e críticas pela doutrina, como será mostrado neste item.

2. Previsão na Constituição Brasileira                   

A CRFB/88 garante o direito à propriedade no Art 5ª tanto no caput, como no art. XXII, onde elenca:

Art. 5º.

"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...]

XXII - é garantido o direito de propriedade;"

no mesmo artigo é garantido também a propriedade em casos específicos:

"XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;"

Referente o conceito constitucional de Propriedade explica Bastos:

"O conceito constitucional de propriedade é mais lato do que aquele de que se serve o direito privado. É que do ponto de vista da Lei Maior tornou-se necessário estender a mesma proteção, que, no início, só se conferia à relação do homem com as coisas, à titularidade da exploração de inventos e criações artísticas de obras literárias e até mesmo a direitos em geral que hoje não o são na medida em que haja uma devida indenização da sua expressão econômica".[2]

Quando a Constituição usa a categoria Propriedade, ela a usa no sentido amplíssimo, incluindo todo tipo de propriedade, tanto a material, nela entendida a móvel e a imóvel como a imaterial nela entendida a propriedade intelectual e créditos entre outros.

3. A função social da propriedade   

O mesmo artigo 5º restringe a garantia à propriedade nos termos seguintes:

"XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;"

Ou seja, a propriedade não é um direito absoluto, senão um direito relativo. É garantido o direito à propriedade desde que atendida a função social.

O Código Civil, por força da CRFB/88 agora também expressa esta preocupação com a função social, e aboliu o caráter absoluto da propriedade defendido no Código Civil de 1916, como se vê comparando no Art. 1228 do atual código Civil

O primeiro elenca:

"Art. 1.228 [...]

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.

§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores."

Ou seja, tanto o entendimento civilista como constitucionalista de propriedade é no sentido, de que a propriedade não é um direito absoluto, e sofre varias restrições. Em outros países, como por exemplo, Alemanha, Itália, e Espanha a propriedade também é limitada pela função social[3].  Por causa destas restrições há doutrinadores como Ferrajoli[4] e Peces-Barba[5], que entendem, que a propriedade não pode ser mais considerada direito fundamental.

4. A crítica de Ferrajoli à propriedade como Direito Fundamental         

Luigi Ferrajoli defende que propriedade não é direito fundamental, criticando expressamente Locke[6], que inclui está entre os direitos fundamentais. O conceito operacional da categoria propriedade utilizada por Ferrajoli é o mesmo usado pela CRFB/88, ou seja propriedade no sentido amplíssimo como sinônimo de patrimônio, incluindo portanto os direitos autorais.  

 A fundamentação do autor se baseia na existência de quatro grandes diferenças entre os Direitos Fundamentais e os Direitos Patrimoniais.  Destes diferenças dois são materiais e dois formais[7].

Assim, para Ferrajoli, a primeira diferença entre direitos fundamentais e patrimoniais é que aqueles são universais, enquanto estes são singulares. Ou seja, por exemplo, o Direito à liberdade é o mesmo para todos, mas o Direito à propriedade é diferente em cada casa, dependendo da propriedade que é em cada caso diferente, em quantidade e qualidade.

A segunda diferença alegada pelo mestre italiano é que os direitos fundamentais sejam inalienáveis e os direitos patrimoniais alienáveis. 

Elenca mais duas diferenças formais. Assim os direitos fundamentais são regulamentados por normas, normalmente constitucionais, enquanto os direitos patrimoniais são regulamentados por contrato, testamento e sentença.

E os direitos fundamentais são verticais, situados no âmbito do direito público, os direitos patrimoniais são horizontais, situados no direto privado.

Por causa destas quatro diferenças fundamentais entre a propriedade e os outros direitos fundamentais, Ferrajoli entende, que a propriedade, não seja direito fundamental. Se este entendimento está correto ou não será analisado abaixo.

5. A crítica de Peces-Barba à propriedade como Direito Fundamental

Peces-Barba entende, que os direitos fundamentais devem ser gerais, aplicáveis para todos. Argumenta que, como a propriedade é escassa não pode ser garantida a todos, e por tanto não pode ser direito fundamental. Escreve:

"Finalmente, será igualmente un resultado importante del processo de generalización la progresiva toma de conciencia de que la propriedad no puede ser una pretensión justificada, base ética de um derecho fundamental, porque no se puede extender a todo el mundo, y eso es un privilegio, pero al carecer de la generalidad, no un derecho igual de todos los seres humanos: no cabe por razones de escasez y porque no existen bienes libres para alcanzar la igualdad como equiparacion, aplicar la técnica de la igualdad como diferenciación para equiparar en el punto de llegada"[8].

Como o mestre espanhol se refere à escassez de bens, parece que ele entende propriedade no sentido de propriedade material, porque a imaterial é ilimitada. Tanto é possível entender, que ele se refere só à propriedade imóvel, qual é escassa, como pode se entender, que ele se refere à propriedade material em geral ou seja a propriedade móvel e imóvel, porque embora a móvel em regra não é escassa, também não há bens suficientes para que todos a possuem em igualdade. Por exemplo, mesmo se haja carros suficientes para dar um a cada família, tem famílias que tem 10 carros, e certamente não há carros suficiente para dar 10 carros a cada família, além disso, mesmo dando um carro a cada família, iria causar um caos no transito e um aumento forte no preço de gasolina.

Peces-Barba assim não entende a propriedade no sentido amplíssimo da Constituição Brasileira, e entende o direito fundamental à propriedade, como um direito social, no sentido de que o Estado deve dar propriedade às pessoas, que não há tem. Como isso, devido a escassez é impossível, Peces-Barba entende que o direito à propriedade não é direito fundamental. Mas ele, restringindo a categoria propriedade à propriedade material, exclui desta forma do gênero propriedade a propriedade imaterial, que consiste entre outros na propriedade industrial e nos direitos autorais. Assim entende-se, que querendo abolir a propriedade como direito fundamental, ele apenas se refere a propriedade material, portanto para Peces-Barba, a propriedade imaterial continuaria sendo direito fundamental.

6. Direito à Propriedade nunca foi direito fundamental

Direito à Propriedade pode significar, que cada cidadão tem o direito de ser proprietário, ou seja, que o Estado tem a obrigação de dar propriedade a quem não tiver. Nesta interpretação direito à propriedade seria um direito social.

Pode significar também, que o proprietário tem o direito de usar sua propriedade e dispor dela. Nesta interpretação seria um direito de liberdade.

Ou pode significar, que o cidadão tem o direito à propriedade, em dois sentidos. No primeiro, o Estado garante a Potência[9] à propriedade, e  no segundo, o Estado garante lhe este direito, contra si mesmo e contra terceiros, mediante a legislação e pelo Judiciário.  Ou seja, o Estado garante a proteção da propriedade existente. Neste sentido também seria um direito de liberdade. Os primeiros dois significados forem mencionados por Ferrajoli, que escreve:

"En su base hay un equívoco, debido al carácter polisémico de la noción de "derecho de propriedade", con el que se entiende- tanto em Locke como em Marshall- al mismo tiempo el derecho a ser proprietario y a disponer de los proprios derechos de propriedade, que es un aspecto de la capacidad jurídica y de la capacidad de obrar reconducible sin más a la classe de los derechos civiles, y el concreto derecho de propriedad sobre este o aquel bien"[10]

Mas o direito à propriedade garantido pela Constituição é o expresso na terceira interpretação, ou seja, a potência e a proteção a propriedade existente.

Tyrell já afirmou em 1681, que a função do governo é a proteção a propriedade:

"[...] o governo, que tem por uma de suas principais metas manter o domínio ou propriedade determinados mediante acordo"[11].

e Locke escreveu no Segundo Tratado sobre o Governo Civil:

"Sendo o principal objetivo da entrada dos homens em sociedade eles desfrutarem de suas propriedades em paz e segurança, e estando o principal instrumento para tal nas leis estabelecidas naquela sociedade, a lei positiva primeira e fundamental de todas as sociedades políticas é o estabelecimento do poder legislativo[...]"[12].

Ou seja, para Tyrell e Locke é claro, que o motivo para a constituição do Estado era a proteção da propriedade existente, e que, portanto o Estado tem a obrigação de garantir esta proteção. Ou seja, neste sentido fica claro, que a Constituição ao garantir o direito á propriedade, garante, além da Potência da propriedade,  à proteção da propriedade existente.

Esta proteção, conforme o comentário de Locke, é feita pelas Leis.  Alexy[13], classificando os Direitos Fundamentais a algo concorda com Locke, quando diferencia entre Direitos a prestações negativas e direitos a prestações positivas. Os direitos a prestações negativas significam, que o Estado não dificulta a vida do cidadão e pode ser dividida em três formas. O direito a não ser impedido de exercer um ato, o direito de não afetar situações, ou características, e o direito a não mudar situações jurídicas. o direito a prestação positiva é dividida em dois, a prestação positiva normativa e a prestação positiva fática. Na primeira o cidadão tem o direito de que o Estado regulamente algo, e no segundo, o cidadão tem o direito que o Estado lhe da algo.

O direito fundamental da propriedade é um direito a prestação negativa, o cidadão tem o direito de que o Estado não lhe impede de adquirir propriedade, e o direito de que o Estado não mude a posição legal referente a constituição, termino e conseqüências legais da propriedade[14].

Também pode ser um direito a uma prestação positiva normativa, por exemplo, se questões de propriedade não são regulamentados pela Lei, como era o caso de sobrenomes e domínios na internet. Algum tempo atrás podia se registrar sobrenomes de outros como domino, hoje já não mais, porque quase todos Estados, respeitaram o direitos de seus cidadãos à prestação positiva normativa regulamentando esta questão, que envolve propriedade. Assim tanto o direito à prestação negativa, não mudando as leis referentes as questões essências da propriedade, como o direito á prestação positiva normativa, são direitos que dizem respeita a proteção da propriedade pela Lei, fundamentando assim, a posição já defendida por Locke.

O direito fundamental á propriedade portanto é o direito a Potência e a proteção da propriedade, mas não é um direito a prestação positiva fática.

E lógico tal entendimento, porque se aplica a todos direitos de liberdade, a vida por exemplo, é garantido pelo Estado, não se pode esperar, que o Estado desse vida para alguém e o mesmo vale para a propriedade. O Estado garante à propriedade de quem a tiver, ele não da propriedade para quem não a tiver.

Existe uma fundamental diferença entre os direitos fundamentais de liberdade e dos direitos fundamentais sociais. Os primeiros são garantias contra o Estado. Assim o direito à liberdade garante que o Estado não pode privar o cidadão de sua liberdade, sem o devido processo legal[15].  Os direitos fundamentais sociais são direitos contra o Estado, ou seja, o cidadão tem o direito a receber do Estado estas prestações. Assim o direito a Saúde é um direito social, o cidadão tem o direito que o estado lhe proporciona atendimento medico e medicamentos. 

Tento em vista esta fundamental diferença entre os direito de liberdade e os direitos sociais, deve ser esclarecido que o direito à propriedade é um direito de liberdade, ou seja, um direito de garantia contra o Estado[16]. Não é um direito social, é portanto, não pode ser interpretado como direito contra o Estado. Assim o direito à propriedade significa, que o Estado  não pode tirar a propriedade de um cidadão sem o devido processo[17], direito à propriedade não significa, que alguém que não tenha propriedade tem o direito contra o Estado, que ele lhe providencie propriedade. 

7. Respondendo à crítica de Peces-Barba

A crítica de Gregório Peces-Barba não pode prosperar, porque ele usa categorias diferentes das usadas na Constituição. Assim ele não está falando sobre o direito fundamental em questão, entendendo o direito fundamental à propriedade, como um direito social, no sentido de que o Estado deve dar propriedade as pessoas, que não há tem.

O direito fundamental tutelado pela constituição, porém é o direito à proteção da propriedade, como visto acima. Por tanto, não há escassez, porque só se refere a propriedade existente e é um direito geral, porém específico, ou seja, se aplica a todos de um grupo, no caso se aplica a todos os proprietários. Todos os proprietários têm o direito fundamental à proteção de sua propriedade.

Portanto, a crítica de Peces-Barba não se aplica ao direito à propriedade protegido pela Constituição.

8. Respondendo à crítica de Ferrajoli

A primeira diferença entre direitos fundamentais e patrimoniais, Universalidade versus Singularidade não se aplica, porque da mesma forma, como o direito à propriedade também tem aspectos universais, como a proteção a toda propriedade, ou seja, todo proprietário tem o direito que o estado garante a proteção de sua propriedade, independente de qualidade e quantidade, também tem aspectos singulares nos direitos fundamentais. O direito a livre expressão de pensamento, embora seja universal, tem seus aspectos singulares, porque são diferentes em qualidade e quantidade os pensamentos livremente expressos, e houve e continua havendo tratamento diferente ao cidadão conforme os pensamentos expressos, podendo sofrer até represálias ou condenação, se pela livre expressão incentiva por exemplo ao consumo de drogas[18]. Assim, não só os direitos patrimoniais têm seus aspectos singulares, diferentes conforme a propriedade, também o direito a livre expressão de pensamento os tem, diferente conforme o pensamento.

Também não merece prosperar a distinção entre direitos alienáveis (patrimoniais) e inalienáveis (direitos fundamentais).

Em primeiro lugar porque os direitos fundamentais não são totalmente inalienáveis. Assim Mario Jori[19], em crítica a Ferrajoli, menciona o boxe e o uso voluntário de substancias tóxicas, como fumar cigarro, como exemplos da renuncia voluntária ao direito á saúde, que ao princípio seria um direito indisponível. Cita mais o piercing como exemplo, e chama de paternalismo a intenção de fazer os outros adotar nossas idéias, ou seja, para ele a pessoa tem o direito de fazer com sua vida o que quiser, se quiser abrir mão de sua liberdade ou outros direitos fundamentais, deveria poder fazer-o. Assim ele defende a possibilidade da alineabilidade dos direitos fundamentais.

Também pode se fundamentar a inalienabilidade do direito à propriedade. Embora inquestionável que a propriedade pode ser alienada, o direito fundamental é o direito à propriedade no sentido da proteção da propriedade, e este direito é inalienável. Da mesma forma como o cidadão pode abrir mão de seu direito à vida, suicidando-se, ou a saúde, fumando, ele pode abrir mão de sua propriedade vendendo-a. O que ele não pode é abrir mão do seu direito de ter estes direitos protegidos pelo Estado. Assim ele não pode permitir, que alguém lhe mata, não pode impedir que seja condenado alguém que lhe feriu gravemente, colocando sua saúde em risco, e não pode impedir que alguém seja condenado se lhe furtou algo.

Portanto, vários direitos fundamentais são alienáveis, mas não é alienável a proteção que o Estado garante a estes.

Referente ao critério formal da regulamentação dos direitos fundamentais por normas e dos patrimoniais por contrato e sentença, cabe alegar, que principalmente no caso de colisão de princípios constitucionais, ou seja, direitos fundamentais, a sentença decide, qual direito prevalece no caso concreto.  Portanto em ambos os casos as regras gerais são feitas pela lei, até como fazer um contrato é previsto na lei, mas no caso concreto decide a sentença. Ou seja, este argumento formal não justifica a exclusão do direito à propriedade do rol dos direitos fundamentais.

Tampouco o faz o segundo critério, pelo qual os direitos fundamentais são verticais, regulamentados pelo direito público, e os direitos patrimoniais horizontais, regulamentados pelo direito privado. Até é verdade a diferença, mas o direito protegido pela constituição deve ser entendido como direito à propriedade no sentido de ter sua propriedade protegido pelo Estado, portanto há uma relação vertical entre o proprietário e o Estado como garantidor deste direito a proteção.

9. Direitos fundamentais não são absolutos

Referente a crítica, de que a propriedade não pode ser mais considerado direito fundamental, porque ela é restrita pela função social, cabe responder, que nenhum direito fundamental é direito absoluto. Todos são direitos relativos, que encontram seus limites nos direitos dos outros. Assim nem sequer a vida é um direito absoluto, porque a lei pátria permite o aborto em casos especiais e autoriza por exemplo matar em legitima defesa da propriedade. Assim se vê, que a vida não é considerada valor absoluto, podendo, embora apenas em caso excepcionais,  ser sacrificada para proteger a propriedade.

O mesmo vale para a liberdade. Este direito fundamental também não é um direito absoluto, pois o Estado pode privar o cidadão de sua liberdade, após o devido processo legal, se este infringiu a lei. E até sem o cidadão infringe a lei, e sem ter o devido processo legal, pode o Estado privar o cidadão de sua liberdade, por exemplo, no caso da prisão em flagrante, em qual não há processo, e nem necessariamente infração da lei, por parte do preso, até porquê este pode ser inocente.  Ou seja, nestes casos, a alegada proteção da sociedade é um valor que relativiza o direito à liberdade.

Apesar de que tanto o direito à liberdade como o direito à vida podem sofrer restrições na sua proteção, ninguém cogitaria tirar eles do rol dos direitos fundamentais.

No direito à propriedade acontece o mesmo. Ela não é um direito absoluto. Sofre restrições previstas na lei e na constituição. Nos casos elencados na Constituição e na lei, mas somente nestes, o Estado pode desapropriar o proprietário. Mas mesmo nestes casos a Constituição prevê indenização em caso de desapropriação[20]. Ou seja, o proprietário não sofre prejuízo no seu patrimônio material, desapropria uma propriedade, mas em troca da outra (dinheiro ou títulos). Assim mesmo tirando a propriedade do proprietário, prevalece  a proteção à propriedade, porque esta não é tirada sem indenização.

Assim vê-se que nenhum direito fundamental é absoluto, podendo ser sacrificado para proteger outros direitos fundamentais, portanto não merece prosperar a alegação, que a propriedade não seja direito fundamental, por ser restrita pela função social.

Considerações finais

Pela analise feita infere-se, que a expressão "direito à propriedade" no Art 5º  caput da Constituição pátria e "direito de propriedade" no inciso XXII do mesmo artigo, tem o mesmo significado, e devem ser interpretados como direito à Potência é à proteção da propriedade existente. Ou seja, o estado garante ao cidadão a Potência da propriedade e à proteção da sua propriedade, tanto contra ele (estado) mesmo, como contra terceiros.

Sendo assim, a constituição não prevê um direito à propriedade, pelo qual o Estado teria a obrigação de dar propriedade, à quem não a tiver, só se compromete de proteger a propriedade já existente.

Naturalmente esta proteção não é absoluta, é condicionada a função social. Mas atendido este requisito, e não presentes outros exceções previstas na constituição,  o estado garante a proteção da propriedade. Mas como nenhum direito fundamental é absoluto, a previsão de limites a esta proteção não justifica a exclusão do direito à propriedade do rol dos direitos fundamentais.

Também não prosperam as críticas de Ferrajoli, que destaca, que o direito à propriedade seja alienável e não seja universal. Mas entendendo o direito à propriedade, como direito à proteção da propriedade vê-se claramente, que este direito é inalienável e universal. Porque, embora possa o proprietário alienar sua propriedade, não pode alienar o direito à proteção da propriedade pelo estado e é universal, porque todo proprietário tem o direito de que o Estado garante a proteção da sua propriedade, não importa a quantidade ou qualidade da mesma.

Assim infere-se, que o direito à propriedade, deve ser interpretado como direito a Potência e à proteção da propriedade. Este direito a Potência e à proteção da propriedade continua sendo direito fundamental.

Referências

BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva. 2004. 2º Vol.

FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta. 2001.

LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes. 1998.

MARTIGNETTI, Giuliano. Propriedade. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola. (Orgs.) Dicionário de política. Tradução: Carmen C. Varrialle et al. 8. ed. Brasília: Ed Universidade de Brasília (Edunb), 1995. 2. v.  Título Original: Dizionario di politica.

ONG denuncia o Ministro da Cultura por apologia à droga. Disponível em: Acesso em 24.9.2005.

PECES-BARBA, Gregorio. La diacronía del fundamento y del concepto de los Derechos: el tiempo de la historia. In._____; Curso de los Derechos Fundamentales: teoría general. Madrid: Dykinson/Universidad Carlos III, 1998.

Notas:

 

 

[1] MARTIGNETTI, Giuliano. Propriedade. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola. (Orgs.) Dicionário de política. Tradução: Carmen C. Varrialle et al. 8. ed. Brasília: Ed Universidade de Brasília (Edunb), 1995. 2. v.  Título Original: Dizionario di politica. p. 1021.

[2] BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva. 2004. 2º Vol. p. 128.

[3] Assim elenca o Art. 14 inciso II da Constituição alemã. A propriedade obriga. Seu uso deve servir para o bem de todos. (no original:  Eigentum verpflichtet. Sein Gebrauch soll zugleich dem Wohle der Allgemeinheit dienen.)

[4] FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta. 2001

[5] PECES-BARBA, Gregorio. La diacronía del fundamento y del concepto de los Derechos: el tiempo de la historia. In._____; Curso de los Derechos Fundamentales: teoría general. Madrid: Dykinson/Universidad Carlos III, 1998.

[6] LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes. 1998. passim, principalmente Livro II cap. V, VII e XI

[7] FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta. 2001.p. 30

[8] PECES-BARBA, Gregorio. La diacronía del fundamento y del concepto de los Derechos: el tiempo de la historia. In._____; Curso de los Derechos Fundamentales: teoría general. Madrid: Dykinson/Universidad Carlos III, 1998. p. 170

[9] Potência significa aqui, que o cidadão tem a possibilidade teórica de adquirir propriedade. Embora conforme Locke, a aquisição de propriedade pelo trabalho já se deu no Estado de natureza (LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p. 407-411) o Estado teria o poder, embora não a legitimidade, de proibir a aquisição de propriedade, é fundamental que o estado garante a possibilidade de adquirir-a. Embora nunca existia na pratica um Estado comunitário (não comunista, por que até no estado comunista existia a propriedade privada, em forma de casas e carros entre outros), que não permite nenhum tipo de propriedade particular, teoricamente isso seria possível. Assim o primeiro passo, que o Estado democrático da, é garantir ao cidadão a possibilidade "potencia" de adquirir propriedade. Esta potencia é de fundamental importância, porque da ao cidadão esperança de crescer e motivação de trabalhar. Locke, já disse, que se não há motivação para adquirir propriedade, não há motivação para trabalhar. (LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p.427). Assim sendo a potencia da propriedade é o motor da sociedade e da economia, pois motiva o cidadão e lhe da esperanças.

[10] FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta. 2001. p. 29

[11] TYRELL, James apud LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p. 466.

[12] LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p. 502s

[13] ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Suhrkamp: Baden-Baden. 4 ed. 2001. p. 174-185.  

[14]ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Suhrkamp: Baden-Baden. 4 ed. 2001. p. 178.  no Original: Die verfassungsrechtliche Garantie des Rechtsinstitutes des Eigentums ist in dem Masse subjektiviert, in dem individuelle Rechte auf die Nichtbeseitigung von abstrakten Positionen bestehen, die sich auf die Begründung, die Beendigung und auf Rechtsfolgen aus der Eigentümerposition bezeihen.

[15] e deve impedir que terceiros o façam.

[16] Isso se mostra claramente na historia, porque o direito à propriedade surgiu junto com os direitos de liberdade, como no fato de que o direito à propriedade é garantido no Art. 5º da CRFB/88 que trata dos direitos de liberdade, e não no Art. 6º ou 7º que trata dos direitos sociais.

[17] e deve impedir que terceiros o façam.

[18] Assim por exemplo foi denunciado Gilberto Gil por apologia as drogas, por causa de uma de seus musicas, com reporta a ONG Mensagem Subliminar no artigo: ONG denuncia o Ministro da Cultura por apologia à droga. Disponível em Acesso em 24.9.2005. E conhecido também o fato e que Marcelo D2 ficou em 1997 preso por 8 dias acusado de apologia às drogas.

[19] JORI, Mario em FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta. 2001.p. 122

[20] Com exceção do previsto no Art. 243 da Constituição, onde é prevista a expropriação sem indenização, mas aqui prevalece o caráter punitivo pelo uso nocivo da propriedade, a expropriação tem em primeiro lugar o objetivo de punir o proprietário, e só em segundo plano o objetivo de usar  a propriedade para o assentamento de colonos. O grande problema deste artigo é que ele exclui implicitamente a ampla defesa. Encontrou-se a plantação, desapropria-se imediatamente. E se o proprietário nem sabe de nada, e terceiros plantam na sua Terra? Ou se ele arrendou a terra, e o arredentario planta maconha, como o proprietário pode saber? Parece que nem a culpa in vigilandi justifica uma desapropriação à priori. Porque pode bem ser que, digamos um estudante de uma universidade particular com campo rural, queira se vingar da universidade. Para isso ele planta em um lugar bem escondido do mato, alguns pés de maconha. Diante da impossibilidade de vigiar toda área, as plantas dificilmente serão descobertas pelo proprietario da universidade. Agora o estudante, para se vingar, só precisa ligar para um disque denuncia anônimo, e denunciar a plantação. Conforme a lei, esta universidade, como é área rural deve ser desapropriada.   A lei regulamentadora prevê contraditório, mas permite desapropriação em liminar. Se depois se descobre a armação, o estrago já foi feito. Assim a solução desta lei não nos parece justa, no caso acima indicado, que pode acontecer naturalmente em diversas variações.  Em outro caso a injustiça é ainda maior, porque prevalece a desapropriação sobre direitos reais de terceiros, ou seja, alguém hipotecou  terra e plantou maconha. Outra vez, quem sofre o dano,  é alguém  alheio ao ocorrido, por exemplo o banco, que não pode executar sua hipoteca.  Parece complicado aceitar a constitucionalidade desta norma constitucional.

 

Como citar o texto:

KÖHN, Edgar..Direito à Propriedade: potência e proteção. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 215. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/1705/direito-propriedade-potencia-protecao. Acesso em 4 fev. 2007.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.