Resumo: Trata-se de estudo referente à estrutura jurídica do crime de exposição ou abandono de recém-nascido previsto no artigo 134 do Código Penal em vigor. Em meio às persistentes divergências, inclui-se o dolo eventual em sua moldura típica, juntamente com o dolo direto; indicam-se o pai e a mãe como sujeitos ativos; registra-se a inevitável dose de subjetividade na identificação do sujeito passivo; em  paralelo com  o crime de infanticídio,  descarta-se a tipicidade na hipótese de exposição ou abandono sob a influência do estado puerperal, logo após o parto. Por fim, numa visão crítico-metodológica, lembra-se que o importante não é apontar a resposta dogmaticamente correta. O importante é observar a analisar a realidade, procurar compreendê-la e, de alguma forma, sem fugir do debate, sublinhar a figura do intérprete no processo histórico de construção artesanal do direito.

           Palavras-chave:  Exposição ou abandono de recém-nascido – Dolo  eventual –  Subjetividade interpretativa – Construção artesanal do direito – Visão crítico-metodológica.

         Sumário: 1. Introdução.    2. Estrutura jurídica.  2.1. Exposição ou abandono.  2.2. Sujeito ativo. 2.3.  Sujeito passivo.  2.4. Motivo de honra.  2.5. Dolo direto e dolo eventual.  2.6.  Formas qualificadas. 3. Visão crítico-metodológica.

1.      Introdução

         O crime de exposição ou abandono de recém-nascido se insere na categoria dos  delitos de perigo individual.  Juntamente com os crimes de perigo de contágio venéreo, perigo de contágio de moléstia grave, perigo para a vida ou saúde de outrem, abandono de incapaz, omissão de socorro e maus-tratos,  integra  o Capítulo III  – Da periclitação da vida e da saúde –  do Título I da Parte Especial do Código Penal, referente aos delitos contra a pessoa.

         Dou ênfase às divergências doutrinárias acerca de sua estrutura típica. Anoto aquelas que reputo relevantes e não me furto a opinar sobre a matéria, como se  verá em seguida. Contudo, numa perspectiva crítico-metodológica, válida para outros temas do direito, lembro que mais importante do que a indicação da resposta dogmaticamente adequada  é a compreensão dialética da própria realidade normativa; uma realidade que subsiste como tal, essencialmente contraditória, porque cimentada no entrechoque de variadas fontes, com destaque para o intérprete com poder decisório.

2.      Estrutura jurídica

           Eis o texto legal, in verbis:

         Art. 134 — Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria:

           Pena —  detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.

           § 1o     Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

           Pena —  detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

           § 2o    Se resulta a morte:

           Pena — detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

 

           Vejamos, em detalhes, sua estrutura jurídica.

           2.1.   Exposição ou abandono

           O delito ora em análise se materializa através de uma conduta de expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria. Em sentido amplo,  o abandono abrange a exposição, termo esse que se prende à idéia de colocar em perigo. Assim, ocorre o delito se o  agente  se afasta da vítima, deixando-a  em situação de risco  no lugar em que se encontrava (abandono em sentido estrito) ou a deposita  em local diverso, onde é exposta a perigo em razão da subseqüente  separação física (exposição a perigo). Como quer que seja, o fim de "ocultar  desonra própria" não deixa a menor dúvida sobre o único sentido de "expor ou abandonar": o voluntário afastamento físico do recém-nascido.

          Trata-se, no fundo, de um tipo de abandono privilegiado, apesar de sua previsão em dispositivo autônomo.

           2.2.  Sujeito ativo

           O sujeito ativo é a mãe, na grande maioria das vezes. Também o pai é capaz  de enquadrar-se na figura típica,  segundo me parece,  pois a desonra própria em matéria de costumes  nunca foi apanágio do sexo feminino. O pai adúltero ou incestuoso pode perfeitamente sentir-se atingido em seu conceito e prestígio social com a publicidade inerente ao nascimento da criança.  Adotam esse ponto de vista, dentre outros, Damásio E. de Jesus,  Júlio Fabbrini Mirabete, José Frederico Marques  e Nélson Hungria.

           Existem divergências. Para Aníbal Bruno, "aí só pode haver como agente possível a própria mãe da criança abandonada. O que justifica o privilégio é a tortura moral em que se debate a mulher  que concebeu em situação ilegítima, ante a perspectiva da iminente degradação social e das demais conseqüências que do seu extravio lhe possam advir"(Direito penal, p. 246).

           Euclides Custódio da Silveira, concordando com Basileu Garcia, e, pois, com Aníbal Bruno,  entende que ao pai  "não cabe o direito de invocar desonra própria, como é intuitivo"(Direito penal: crimes contra a pessoa,  p. 183).

           Duas correntes, portanto. Vê-se que a intuição de uns diverge  da intuição de outros. Em conseqüência, forma-se inapelavelmente um direito contraditório, na base do sim e do não, derivados dessa dialética entre a lei como projeto e a percepção ético-normativa do intérprete com poder decisório.

           Novos tempos. Alguma pacificação doutrinária? Não. Para Edílson Mougenot Bonfim, por exemplo, o elemento normativo para si ou para outrem “limita o sujeito ativo à mãe que o concebeu extra matrimonium ou ao pai adulterino ou  incestuoso” (Direito penal 2, p. 53). E Ney Moura Teles, discordando: "A vontade da norma é a de considerar privilegiado apenas esse abandono por parte da mãe" (Direito penal: parte especial, v. 2, p. 238). 

           Nada a estranhar. Em linhas gerais, na síntese de Renato Nalini, “toda a normatividade é suscetível de inúmeras leituras. Depende de quem a lê e do objetivo a que se propõe” (A rebelião da toga, p. 263).  Mais adiante: “A única evidência possível é a de que não há evidências na lei a ser aplicada” (p. 270).

          Assim, a "tortura moral" e a "degradação social", segundo Cezar Roberto Bitencourt, se valem para a mulher que concebeu em situação ilegítima, "não recaem mais sobre o pai adúltero, incestuoso ou, a qualquer título, "extrafamília", pois as exigências e concepções são outras". A extensão do privilégio a eventual pai adúltero ou incestuoso "representaria somente um incentivo a mais para o extermínio de menores desafortunados e, até pouco tempo, discriminados inclusive pela ordem jurídica"  (Manual de direito penal, v. 2, p 273).

         A veemência do ilustre penalista ("extermínio") é compatível com a assertiva de que  a mãe que abandona recém-nascido cria o risco da ocorrência do resultado (CP, art. 13, § 2°, alínea c). E conclui (a meu ver, apressadamente): "Logo, se sobrevier algum crime de dano, a mãe responderá por este, como autora, na forma de comissão por omissão". Momentos antes: "A exemplo do que afirmamos em relação ao crime de abandono  de incapaz, a reforma penal de 1984, com a previsão do art. 13, § 2°, revogou os §§ 1° e 2° do art. 134" (idem, ibidem; v. também  p. 266).

           Ao que parece, trata-se de opinião isolada. Não há  indícios, na doutrina, de receptividade à tese da referida revogação.

           2. 3. Sujeito passivo.

           Quem é o sujeito passivo do crime do art. 134? 

           O sujeito passivo, nos termos da lei, é o filho recém-nascido. Qual o sentido e alcance da expressão “recém-nascido”?  Critérios propostos, a contar do parto já encerrado: 24 horas; uma semana; queda do cordão umbilical;  15 dias;  28 dias;  30 dias.  Dá para perceber  a inevitável dose de subjetividade interpretativa.  Nélson Hungria chegou a mencionar, como limite de tempo, por força da  "ratio que informa o art. 134", o momento  "em que a délivrance se torna conhecida de outrem, fora do círculo da família, pois, desde então, já não há mais ocultar desonra" (Comentários ao

código penal, V, p . 438).  Haveria recém-nascido enquanto o parto, como fato  sabido, permanecesse exclusivamente nos limites do círculo familiar.

        A esdrúxula interpretação, "por ajustar-se ao texto legal", recebeu o apoio de Galdino Siqueira (Tratado de direito penal: parte especial, v. 3, p. 107).

           Essa elasticidade, no entanto, não decorre da lei,  pois a condição de recém-nascido jamais dependeu da maior ou menor habilidade materna (ou paterna) de guardar  segredo quanto ao fato do nascimento. Ainda que através de outra expressão vaga, sabe-se que recém-nascido é simplesmente aquele que "nasceu há pouco", segundo os dicionários.  Esse  "pouco" tempo  de vida extra-uterina está longe de ser delimitado pelo número e tipo de pessoas que dela tomam conhecimento.

Serve o exemplo  para ilustrar a importância do grau de liberdade desfrutado pelo intérprete na indicação da  ratio legis. Desta feita, por sinal, mostra-se inevitável a participação construtiva do operador jurídico, circunstância que, de certo modo, corrobora a insegurança de um direito penal que se pretenda amplamente ancorado nas palavras da lei ou nos avanços da moderna dogmática.

Repito, assim, as palavras de Luiz Fernando Coelho. Já  não se pode duvidar “de que o direito é ao menos recriado, quando aplicado ou interpretado pelo juiz”. E continua: “Se a unidade, coerência e uniformidade propugnadas pela dogmática correspondessem à realidade, não haveria espaço para interpretações diferentes, divergentes e até mesmo contraditórias” (Teoria crítica do direito, p. 499/500).

2.4.    Motivo de honra 

           Menos polêmica é a constatação de que constitui requisito implícito da figura delituosa, a par do nascimento recente da criança, uma honra sexual a ser preservada. Essa  hipótese não ocorreria, na maioria das vezes, quando a gravidez fosse notória ou bastante conhecido o desregramento sexual do sujeito ativo.  Subsistiria então o delito mais grave do art. 133.

           "A força do privilégio é determinada na razão direta do grau de intolerância social”,  esclarece Damásio de Jesus. “Não significa que com o benefício a lei queira sancionar essa intolerância, mas sim que deseja reconhecer os seus efeitos sobre a consciência de uma pessoa atribulada, em cujas mãos não se encontram meios de enfrentar a situação com heroísmo" (Direito penal, v. 2, p. 149)

           Por extensão, cabe o privilégio no caso de estupro e  em qualquer hipótese de relação sexual socialmente censurável. A liberação dos costumes, por isso mesmo,  sobretudo nos grandes centros urbanos,  já não justificaria o reconhecimento do artigo 134 em face do namoro e relacionamento íntimo de pais solteiros. O "princípio da insignificância" também serve para calibrar, mesmo em prejuízo do réu, a estrutura jurídica de qualquer crime.  Nesse caso, o  abandono ou exposição corresponderia ao tipo do art. 133, de  maior gravidade ético-jurídica.

            2.5. Dolo direto e dolo eventual

            Essa motivação específica  – elemento subjetivo do tipo –   tem sido associada pela doutrina, a título de implicação lógica, ao dolo direto. Por exemplo: Luiz Regis Prado, Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 174.  E Fernando Capez: “Não se admite o dolo eventual por ser incompatível com o especial fim de agir exigido pelo tipo penal” (Curso de direito penal, v. 2, p. 186). 

           O agente precisaria, para  ocultar desonra própria,  querer diretamente a exposição ou abandono. E mais: sem assumir, com a conduta, o risco de matar. Com efeito, se é verdade que o legislador considerou o ato de abandono como delito autônomo de perigo,  também é verdade, como lembra corretamente Juarez Tavares, que não descartou  “a hipótese de que esse mesmo ato já constitua por si mesmo início de execução do homicídio ou das lesões corporais, dependendo do dolo do sujeito”(As controvérsias em torno dos crimes omissivos, p. 95).

           Portanto, apenas dolo de perigo. E dolo direto. Surge, porém,  uma dificuldade: o que fazer com a exposição ou abandono de recém-nascido praticado com dolo eventual?  O enquadramento no delito anterior, que é mais grave, constituiria um disparate, uma vez que o dolo eventual se situa num patamar de menor censurabilidade ética.  Sendo assim, ou se reconhece a ausência de crime, por imprevisão do sistema (lex specialis) ou se busca o socorro do art. 132 (crime genérico de exposição a perigo da vida ou saúde de outrem).

           Semelhantemente, é o que se passa com a morte culposa no infanticídio. Admitida a prevalência da regra especial  – o infanticídio só existe na forma dolosa –então não haveria  crime.  Outra seria  a solução caso  se entendesse que o homicídio culposo exerce função supletiva (interpretação lógico-sistemática).

           Não vejo incompatibilidade lógica entre motivação (fim) e dolo eventual.   Ambos se situam em planos distintos da subjetividade. Em defesa do art. 134, lembra Nélson Hungria a importância do critério político inerente à punição preconizada: "A concessão do privilegium, na espécie, é um estímulo para que o agente não vá até a ocisão do recém-nascido, isto é, até a prática de um malefício mais grave. Se nele o instinto de piedade não é suficientemente forte para movê-lo ao sacrifício da própria honra, que prefira, então, entre os dois males, o menor, porque a pena lhe será grandemente atenuada" (ob.cit.,  p. 437).

           Aí está: o agente poderia extrapolar o dolo direto de perigo e agir com dolo eventual de homicídio. Neste caso, em que persiste a motivo de honra, mas inexiste dolo direto em relação à morte, deve ser afastada a figura do homicídio doloso, tentado ou consumado? Haveria um "espaço vazio" a demandar a impunidade?

           A resposta é imediata: permanece o delito de homicídio; não há espaço vazio algum.  Afinal de contas, é visível o caráter preterdoloso da morte prevista no art. 134, § 2°. E não cabe desclassificação para lesão corporal seguida de morte, expressamente proibida  (art. 129, § 3°, in fine).  Logo, se o motivo de honra convive com o dolo eventual de homicídio, igualmente se mostra compatível  com o dolo eventual de abandono ou exposição de recém-nascido.

           Para agir, aliás, com o fim (motivo)  de esconder uma desonra,  nem ao menos se precisa praticar delito. A mãe pode, às escondidas, sem perigo para o filho, depositá-lo em uma instituição de caridade. E também existe crime meramente culposo relacionado com motivo nobre, altruístico. O motorista que dirige atabalhoadamente,  mas  para salvar a vida de outrem,  a quem está socorrendo,  comete homicídio culposo ao matar um pedestre (CTB, art. 302).  Não é  difícil notar a separação entre o motivo (fim) da conduta, salvar uma vida, e o seu resultado: a morte culposa de uma terceira pessoa. 

           Examine-se também a hipótese de quem desfere tiros de revólver contra a testemunha ocular de um crime.  Pergunta-se:  desaparece a forma qualificada (art. 121, § 2°, V) se fica demonstrado exclusivamente o dolo eventual de homicídio? Não, não desaparece, e isso mais uma vez comprova que o fim (motivo) da conduta não se confunde com o dolo. O indivíduo que,  "para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime"(CP, art. 121, § 2°, V),  atira contra o corpo da vítima com dolo alternativo de lesão corporal ou homicídio (dolo eventual) não pode ser beneficiado com o reconhecimento do homicídio simples, em havendo morte.  Se a simples lesão corporal já garantiria a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime, por que a morte, conseqüência prevista e previamente acatada, perderia sua vinculação teleológica ao dolo e conduta  do homicida?

           Em suma, diante das interpretações possíveis: art. 133; art. 132; ausência de crime; e persistência do próprio art. 134, prefiro esta  última,  que  reputo mais razoável e consentânea com o sistema do Código.  Este não distingue entre dolo direto e dolo eventual (art. 18, I); dolo e motivo não se confundem; e a missão do intérprete é a de apontar, no objeto em exame, a solução que mais se aproxime da estrutura normativa desse mesmo objeto,  de sua razão de ser.  O cerne do delito (art. 134) não está no dolo direto, mas no motivo de honra.

           2.6.  Formas qualificadas

           Com a vigência da nova  Parte Geral (Lei 7.209/84) já não cabe discutir a natureza dos resultados que qualificam o crime do art. 134. Tanto a lesão corporal de natureza grave (§ 1°) quanto a morte do recém-nascido (§ 2°) têm caráter preterdoloso (art. 19). Quer dizer, de uma conduta exclusivamente de perigo, inconfundível com o dolo de lesão corporal leve, resulta lesão corporal de natureza grave (detenção, de 1 a 3 anos) ou morte (detenção, de 2 a 6 anos).

           Impossível, neste último caso,  a menor confusão com o delito do art. 123, apesar da identidade das penas.  No infanticídio, a mãe, durante o parto ou logo após, agindo sob a influência do estado puerperal, mata dolosamente o próprio filho (dolo direto ou dolo eventual).  Há dolo de dano e resultado de dano.  Na hipótese do art. 134, § 2°, não se descarta nem se exige, numa primeira leitura, a influência do estado puerperal, sendo sempre  imprescindível que o dolo da puérpera se limite ao resultado de perigo inerente ao abandono ou exposição do recém-nascido. Trata-se, pois, é bom insistir, de crime preterdoloso: dolo de perigo (abandono ou exposição) e culpa quanto ao resultado (morte).

           Contudo, convém aprofundar o exame da matéria. O infanticídio (art. 123), traduzindo norma especial, descarta a punibilidade do “homicídio” culposo e, por extensão, das formas simples e qualificadas dos crimes de perigo. Note-se que o homicídio doloso, no Código Penal, examinada sua pena mínima, está para o homicídio culposo assim como 6 (seis) está para 1 (um). Em determinadas circunstâncias, o mínimo do homicídio é de 12 anos (CP, art. 121, § 2º). Portanto, a pena mínima do infanticídio "culposo",  mantida a proporção, teria de ser computada

em meses.  Em verdade, sem embargo das divergências, não há pena alguma, por falta de previsão legal.

           Basta igualmente que se atente para o fato de que se a mãe, durante o parto ou logo após, sob a influência do estado puerperal, atua com dolo de lesões corporais  e, por culpa, provoca a morte do filho — CP, art. 129, § 3° — não poderia  ser condenada ao dobro (!) das penas de um delito por natureza mais grave, o próprio infanticídio. E com mudança, para pior, da qualidade das penas: de detenção para reclusão.

           Assim, por desatenção do legislador  – ou propositadamente?  –  o fato palpável é  que não há  crime de abandono, ou qualquer outro delito de perigo, se a mãe procede sob a  influência do estado puerperal, durante o parto ou logo após.

           Note-se ainda que a punição por infanticídio exige o dolo de matar. Nada obstante, as penas se mostram suaves. Logo, na essência do tipo, a própria mãe  seria surpreendida pela repentina eclosão de uma vontade até então oculta, ou inconsciente.

           Ora, quem  mata o filho que acabou de nascer, na grande maioria das vezes, já o faz de cabeça pensada, na seqüência de um plano que se urdiu e acalentou com antecedência, durante a gestação. A dolosa morte do neonato  não seria então infanticídio, mas homicídio.

           Da mesma forma, um abandono previamente programado, fora da súbita influência do estado puerperal, se encaixa à perfeição nos dispositivos legais: art. 133 ou 134. Além disso, o “logo após” do art. 123 não corresponde matematicamente ao tempo relacionado com a idéia de “recém-nascido”. Esgotado esse “logo após”, não há que se  fugir da regra geral do Código (art.133 ou 134), mesmo que permaneça o estado puerperal.

           Em síntese: não agindo a mãe sob a influência do estado puerperal, pratica o delito de abandono (art. 133 ou art. 134) em sua forma simples ou qualificada, hipótese que ocorre igualmente, apesar do estado puerperal, se o afastamento do filho se passa  fora do lapso de tempo inerente ao “logo após”. Não comete, no entanto, delito algum se existe relação de causa e efeito (influência) entre o estado puerperal e o abandono puro e simples (dolo de perigo), praticado logo após o parto.  

         Não obstante, é preciso  reconhecer a injusta e chocante desproteção jurídico-penal  se  houvesse impunidade  alusiva a lesões corporais dolosas contra o recém-nascido, que pode sofrer seqüelas de suma gravidade.  Neste caso, entendo que desaparece a possibilidade de recurso ao princípio da lex specialis. Este apenas beneficia a gestante na hipótese de culpa de homicídio, em sentido amplo: homicídio culposo propriamente dito e homicídio preterdoloso associado a dolo de perigo. Vale o raciocínio para a lesão corporal culposa. Mas se o dolo é de dano, dolo de lesão corporal, subsiste a figura delituosa correspondente.

        Caberia, porém, ao operador jurídico o inafastável dever de procurar, no próprio Código (por exemplo, parágrafo único do art. 26, aplicável por analogia), ou fora dele, o apoio retórico para uma obrigatória redução de pena. Compare-se a punição reservada para o infanticídio (detenção, de dois a seis anos) e a lesão corporal qualificada, verbi gratia,  por deformidade permanente ou enfermidade incurável (reclusão, de dois a oito anos). E se  nos voltarmos para a lesão  corporal seguida de morte (reclusão, de quatro a doze anos!)  fica ainda mais fácil de perceber que o intérprete não está amarrado às aparências e falhas técnicas do Código Penal, mas à prudência de uma decisão que busque e recupere o equilíbrio ético-normativo do próprio sistema, em termos de eqüidade e justiça.

            3. Visão crítico-metodológica.

Relembro as principais divergências, que até hoje persistem, em pleno século 21: sujeito ativo (pai e mãe; ou somente a mãe); conceito legal de recém-nascido; exigência ou não do dolo direto; atipicidade da exposição ou abandono praticado sob influência do estado puerperal, logo após o parto; formas qualificadas do delito.

Como resolver o enigma,  haja vista o princípio constitucional do nullum crimen, nulla poena sine lege?

Tarefa impossível e, não raro, desnecessária. As conquistas ou novidades da dogmática jurídico-penal ainda se mostram incapazes de solucionar a contento as mais diversas e comezinhas questões suscitadas pela legislação. Títulos acadêmicos, experiência profissional, vasta cultura, que se sabe existirem no foro, nos tribunais, nas academias, não bastaram e não bastam para o discutível mister de apaziguamento dos espíritos, em termos de homogênea indicação do direito aplicável.

Com efeito, dentre outros fatores, a vagueza e ambigüidade das palavras da lei; a imprecisão conceitual das teorias hermenêuticas; as divisões ideológicas do grupo social; as inevitáveis subjetividades no processo de apreensão dos fatos; a lógica jurídica de busca das premissas e o relativo grau de vontade e liberdade opinativa ou decisória continuam  conspirando contra qualquer expectativa de padronização dogmática.

Sendo assim, o importante, numa posição  crítico-metodológica, não é apontar a saída, a resposta correta, adequada.  O importante é simplesmente observar e analisar a realidade, procurar compreendê-la e, de alguma forma, sem fugir do debate, sublinhar a figura do intérprete no processo histórico de construção artesanal do direito.

O direito se define como  fato normativo essencialmente contraditório, de caráter histórico-sociológico, identificado através da interação de várias fontes –  lei, ideologia e intérprete, por exemplo – com raízes ou pressupostos no efetivo exercício da força, poder, vontade e liberdade.

A exigência de um intérprete  acaba acarretando, na prática, a intromissão de valores ou concepções subjetivas aportadas  ao próprio objeto:  a lei.  O direito passa a existir no contexto dessa fusão de vontades e conceitos aparentemente eqüidistantes e, todavia, interdependentes. A forma e  o conteúdo das leis   se alteram em função da estrutura social,  liberdade de ação e  sensibilidade do operador jurídico.

É o que se percebe através do estudo  do crime de exposição ou abandono de recém-nascido.  Mas as divergências, como é óbvio,  não se reduzem a essa figura delituosa. Elas se repetem indefinidamente, qualquer que seja o crime, sempre submetido ao crivo e interferência do intérprete, com suas manias, gostos e preferências; com suas intuições; com sua personalidade; com sua consciência crítica.

Não há, portanto, solução para o impasse. Só os que têm obsessão dogmática é que acreditam ou parecem acreditar na mudança para melhor de um direito penal assentado nas contínuas “descobertas” de teorias e segredos a caminho, quem sabe, do ostracismo, tal como já ocorreu e vem ocorrendo com teorias e segredos ainda ontem apontados como perenes, irrepreensíveis, irrefutáveis.

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(Elaborado em abril de 2007)

 

Como citar o texto:

BASTOS, João José Caldeira..Exposição ou abandono de recém-nascido: limites da dogmática penal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 232. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/1778/exposicao-ou-abandono-recem-nascido-limites-dogmatica-penal. Acesso em 11 jun. 2007.

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