p>Preliminarmente, é preciso que se deixe claro que a questão controvertida é sobre a adoção por casal homossexual, e não por pessoa homossexual. Reza o artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - que podem adotar os maiores de vinte e um anos, independentemente de estado civil. 1 O artigo 1.618 do Código Civil dita que só a pessoa maior de dezoito anos pode adotar. Logo, conclui-se que qualquer pessoa que preencha tais condições pode adotar.

 

Não se busca, e nem se poderia, verificar a opção sexual do adotante, pois essa é questão de foro íntimo, alheia à premissa sobre estar ou não habilitado à adoção. Fazer tal valoração seria desrespeitar o preceito constitucional que proíbe preconceitos em razão de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, IV, parte final, CRFB).

O debate se pauta na questão sobre a adoção por um casal formado por pessoas de um mesmo sexo. A adoção por casal funda-se no artigo 1.622 do Código Civil: Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se estiverem em união estável. Veja-se que o artigo é redigido na forma negativa, de maneira a afastar qualquer outra combinação de adotantes que não a nele esculpida, no claro intuito de excluir outras hipóteses interpretativas.

O artigo fala, ainda, em marido e mulher, ou casal que esteja em união estável. Por marido e mulher, fica claro que se tratam de pessoas casadas e, como sabido, só pessoas de sexo oposto podem casar. É condição básica e primordial para o matrimônio.

A união estável encontra definição no artigo 1.726 da mesma lei, que dita: É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher [...]. Igual conceito traz a Lei nº 9.728/96, que regulamenta o tema. Como visto, da mesma forma que o casamento, a união estável só é possível, à luz da lei, quando composta por um homem e uma mulher.

Fazendo a interpretação integrativa desses preceitos, é de se concluir que só é possível a adoção por duas pessoas que sejam de sexos diferentes. Não há previsão legal para a adoção de uma pessoa por dois homens ou por duas mulheres.

A razão dessa disposição legal, obviamente, além do cunho moral, foi pensada em estrito respeito à questão biológica do homem: um ser humano só é concebido da união da carga genética de um homem e de uma mulher. Ou seja, todo ser humano, dentro os bilhões existentes no planeta, tem um pai (homem) e uma mãe (mulher), sejam eles conhecidos ou não. E o Direito jamais poderá mudar a genética humana.

Sendo a adoção um instituto que tenta, artificialmente, dar um pai e uma mãe (ou apenas um deles) a alguém que os desconheça, ou que não possa ter deles o exercício do poder familiar, é mais do que lógico que não se pode criar a hipótese estapafúrdia de dar a alguém dois pais ou duas mães.

Imagine-se uma criança, na tenra idade, tentando compreender porque ela tem dois pais ou duas mães, quando está descobrindo que uma pessoa é fruto da conjunção entre um homem e uma mulher. Com certeza isso trará conseqüências negativas no seu desenvolvimento psicológico, o que afetará seu crescimento enquanto pessoa.

Todavia, há corrente que tem pensamento contrário, que busca admitir a adoção por um casal homossexual como possível frente ao ordenamento jurídico pátrio. Seu maior argumento baseia-se no texto constitucional, invocando os princípios ditados pela Carta Magna. O assunto precisa ser examinado com cautela.

É sabido que nossa Constituição é permeada por princípios, que norteiam nosso ordenamento jurídico. Todavia, tais princípios devem ser usados no sentido de direcionar a elaboração das leis e sua conseqüente interpretação. Logo, existe diferença abissal entre legislar e interpretar as leis. São duas instâncias distintas, que não podem se misturar, sob pena de se macular a segurança jurídica. O que deve ficar claro, é que a lei é a primeira e principal interpretação da Constituição.

Em outras palavras, não sendo a lei ordinária contrária ao texto constitucional, é ela quem deve ser aplicada ao caso concreto. Do contrário, estaríamos dando vazão a toda a sorte de arbítrios, pois cada juiz decidiria de acordo com suas convicções pessoais, simplesmente  ignorando o texto legal.

Nessa esteira, já encontramos alguns, se bem que raros, julgados que deram a filiação de uma criança a um casal de pessoas do mesmo sexo, como é o caso da ementa que segue:

APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar.  Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.2

Também há autores que coadunam com a idéia da possibilidade de adoção por casal homossexual, como podemos vemos nesta citação:

Em nome do melhor interesse à criança, há de se reconhecer a existência de outras ”famílias possíveis” como relações de parentalidade e de convivência, aptas a produzir efeitos no mundo jurídico, como instrumentos de proteção para aqueles que estão em plena fase de desenvolvimento.3

A argumentação dos defensores da idéia, como visto é o bem-estar da criança, que é, inclusive, princípio norteador do ECA. Contudo, como já dito, a simples alusão a um princípio não é o suficiente para a interpretação legal. É preciso que se examine a letra da lei, para que não se crie uma total insegurança jurídica, onde cada um interpreta e legisla em causa própria.

Fosse esse o único critério para a aplicação da lei, bastaria o ECA ter dois ou três artigos, tratando das generalidades do bem-estar do menor. Mas não é o que se constata, pois esse estatuto também desce a minúcias. Deve-se, então, respeitar integralmente as disposições do seu texto.

Deferir uma adoção em moldes contrários à disposição legal é abrir caminho para que outras decisões infundadas comecem a se difundir no Judiciário. Sem demora, teremos adoções por trios, quartetos ou grupos. Não respeitar os limites legais na decisão judicial é situação perigosa, que deve ser afastada dos nossos tribunais.

Certamente, existem outras medidas para cuidar do menor que não tem amparo familiar. A própria Constituição é permeada de mecanismos que visam protegê-lo. Assim, o mesmo juiz que rasga o texto legal, contrariando expressa disposição de lei, ao deferir a adoção a um casal homossexual, poderia obrigar o estado a dar integral proteção a esse menor, invocando os princípios constitucionais e as regras do ECA.

O que quer se concluir, com isso, é que um erro não justifica outro. Não é porque temos um menor abandonado que podemos lhe dar um casal de pais do mesmo sexo como solução aos seus problemas, pois outros de ordem subjetiva surgirão, talvez, até, piores.

A questão, como vista, é por demais complexa e não se exaure nessa simples dissertação. Exige o debate aprofundado de todos os envolvidos na polêmica. Todavia, não podemos nos olvidar que os operadores do direito precisam estar atentos às normas legais, pois essas constituem seu princípio basilar.

 

1     O ECA foi promulgado em 1990, portanto, na vigência do Código Civil de 1916. Por isso a referência a 21 anos, marco para a maioridade naquele diploma legal. Com a entrada em vigor do novo Código, a maioridade passou a ser atingida aos 18 anos. Assim, esse artigo do ECA deve ser interpretado como 18 anos, no lugar de 21.

2     Apelação Cível nº 70013801592, Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

3     CUNHA, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (organizadores). Direito de Família e o Novo Código Civil. 4.ed. Belo Horizonte : Editora Del Rey, 2006. P. 146.

 

Data de elaboração: junho/2007

 

Como citar o texto:

CORRÊA, Márcio Eduardo Denck..A Adoção por Casal Homossexual no Brasil. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 259. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/1891/a-adocao-casal-homossexual-brasil. Acesso em 4 mar. 2008.

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