SUMÁRIO: 1. Introdução. 2.A Defesa da Ordem Econômica e Financeira. 3. O Princípio da Livre Iniciativa e Concorrência. 4. A Defesa do Consumidor e das Relações de Consumo. 5. O Princípio da Boa-fé nas Relações de Consumo. 6. O Abuso de Direito frente à Política Nacional das Relações de Consumo. 7. A Necessidade de Harmonização dos Interesses entre Consumidores e Fornecedores com vistas a Garantia da Ordem Econômica. 8. Conclusão.

RESUMO: A lei 8.078/90 é considerada uma das normas consumeristas mais modernas do mundo, sendo constituída de um microssistema interdisciplinar, cuja finalidade é regular as relações de consumo para equilibrá-la de forma que o consumidor esteja protegido dos abusos ou lesões aos seus direitos, como conseqüência do avanço dos mercados, através da massificação da produção e a agressividade das técnicas de marketing. Todavia, sem deixar de considerar a importância de se proteger o consumidor, a parte mais fraca, em cumprimento do princípio da igualdade, também devem constituir objetivo do Estado, através da criação e aplicação das normas que regem o mercado de consumo, o incentivo e a preservação do desenvolvimento econômico e tecnológico, de forma a atender o conjunto de princípios constitucionais que compõem a ordem econômica, os quais, somente harmonizados entre si (equilíbrio de interesses), é que poderá se falar em satisfação do interesse social, o qual deve está acima de todo e qualquer interesse privado. O abuso de direito na relação de consumo, bilateralmente considerado, revela seu caráter prejudicial, pois agride não somente os interesses dos partícipes, mas, principalmente, o interesse social, que pertence a todos, independentemente, de condição física, política ou econômica, uma vez que, atinge tanto o consumidor em seus direitos e garantias, quanto o fornecedor, prejudicando-o em seu direito de propriedade e obstacularizando sua liberdade de iniciativa econômica. Esse conjunto de fatores corresponde à ordem econômica, a qual tem como objetivo precípuo o bem-estar social.                

Palavras-chave: ordem econômica; princípios; harmonização; abuso de direito; interesse social; iniciativa econômica; desenvolvimento; econômico; tecnológico; lei 8.078/90; Constituição; mercados; equilíbrio; consumidor; fornecedor; finalidade; microssistema; interdisciplinar; relação de consumo; bem-estar social.

1. Introdução:

O direito, por ser uma ciência jurídico-social dinâmica, ao passo que evolui, mesmo da forma menos célere do que a desejada, vem sofrendo profundas transformações para a satisfação de sua demanda que a cada geração traz novidades de diversas formas (mentalidade, tecnologia, métodos etc.), de maneira a permitir, através do surgimento de novos conceitos doutrinários, a aplicação de novas exegeses aos Princípios norteadores e a criação de novos dispositivos legais, visando à superação dos conflitos.

Em matéria de consumo, vige a lei 8.078/90, a qual corresponde a um microssistema interdisciplinar de normas, possuindo como um de seus objetivos a defesa do consumidor, tendo em vista à necessidade precípua de equilibrar a relação estabelecida entre os agentes econômicos.

Contudo, devido à própria sistematização da referida lei – O Código de Defesa do Consumidor – e diante de seus princípios específicos previstos em seu art. 4º em consentâneo aos princípios constitucionais da ordem econômica, os quais devem ser aplicados harmonicamente sem que haja exclusão ou perda de valor jurídico-social entre si e associados ao art. 3º da CF/88, é sustentável a idéia de que o caráter protetivo do consumidor em sua origem é apenas uma das condições fundamentais ao equilíbrio e equidade da relação de consumo, mas não a sua única e verdadeira razão de ser.

Com efeito, a discussão trazida à baila possui diversos aspectos que revelam uma adaptação de princípios clássicos através de interpretações que venham formar um ordenamento jurídico coerente, eficaz e mais próximo de sua finalidade, qual seja, a harmonia associada ao equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores, através de uma fusão lógica e sistêmica entre boa-fé e equidade.

O que se tentará mostrar é uma outra perspectiva em relação à finalidade da lei 8.078/90 como uma norma não só de proteção dos interesses dos consumidores como também pode ser aplicada sem prejuízo dos interesses dos fornecedores, a ponto de elidir até mesmo eventual abuso de direito praticado por ambos os sujeitos da relação jurídica, o que permite, através de uma interpretação conforme a Constituição Federal, se compreender melhor a extensão dos princípios basilares (como, por exemplo, o art. 170, art. 3º da CF/88, bem como o art. 4º do CDC) com vistas à harmonia, equilíbrio e boa-fé nas relações entre fornecedores e consumidores.

O abuso de direito, até então um objeto estranho na legislação consumerista, porém, presente como fator de desequilíbrio na própria relação de consumo, pois atinge a boa-fé que deve ser um referencial elementar de conduta entre ambos os partícipes em prol da integridade material e moral, tem se revelado um importante ponto de partida para a reformulação da interpretação que deve ser atribuída pelos aplicadores do direito, no caso concreto, à própria finalidade da lei 8.078/90.          

Trata-se, portanto, de uma norma de ordem pública e de interesse social, sendo que a sua finalidade e alcance devem ultrapassar, sem desmerecer ou ignorar, os interesses privados envolvidos, seja do lado do fornecedor, seja do lado do consumidor, uma vez que, a perfeita harmonia e adequação entre a proteção do consumidor como parte mais fraca que é e a necessidade de se incentivar e evitar obstacularização ao desenvolvimento econômico e tecnológico, através da proteção da livre iniciativa e concorrência, corresponde a uma razoabilidade necessária ao interesse social, o qual deve prevalecer, acima de tudo.    

2. A Defesa da Ordem Econômica e Financeira:

FRANCISCO BRUNO NETO (Constituição Federal Academicamente Explicada. 4. ed. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2005, p. 234) define o Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira da seguinte maneira:

“Corresponde a um conjunto de princípios teóricos e normas jurídico-administrativas, de natureza complexa, que abrangem aspectos diversos e disciplinam e sistematizam as instituições, no campo da produção industrial, circulação da riqueza, comercialização, transporte, uso da propriedade, higiene e segurança do trabalho, qualidade dos produtos, regulamentação das profissões.”

A Constituição Federal em seu art. 170 versa sobre os princípios gerais da atividade econômica, sendo que dispõe, in verbis:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – Soberania Nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

VI – defesa do meio ambiente;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego;

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo Único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.                   

Quando analisado a fundo, considerando as razões de cunho teleológico, possível é compreender que o referido dispositivo é composto de um conjunto de princípios que de forma harmônica garantem a todos dignidade e justiça social em consentâneo com o exercício da atividade econômica, por meio da livre iniciativa e a valorização do trabalho.

Para o professor RIZZATTO NUNES (Curso de Direito do Consumidor. São Paulo, 2004, p. 55):

“O art. 170 como um todo estabelece princípios gerais para a atividade econômica. Estes têm de ser interpretados, também, como já o dissemos, de modo a permitir uma harmonização de seus ditames. Acontece que não basta examinar os princípios estampados nos noves incisos dessa norma apenas entre si mesmos.”

Por sua vez, magistralmente sustentou RAUL MACHADO HORTA (Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995):

“No enunciado constitucional, há princípios – valores: Soberania nacional, propriedade privada, livre concorrência. Há princípios que se confundem com intenções: redução das desigualdades regionais, busca do pleno emprego; tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (alterado pela EC nº. 6/95); função social da propriedade. Há princípios de ação política: defesa do consumidor, defesa do meio ambiente.”

No que tange, especialmente, às relações de consumo, alguns princípios se destacam quais sejam: propriedade privada; função social da propriedade; livre iniciativa e concorrência; defesa do consumidor e a possibilidade de exploração da atividade econômica, nos moldes do parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal.

Certamente não é possível compreender a finalidade e amplitude do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90, sem haver uma interpretação harmoniosa entre os referidos princípios com vistas à compilação de interesses entre fornecedores e consumidores.

TIAGO CARDOSO ZAPATER (In Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, nº. 40, p. 190): uma vez escreveu que não há hierarquia entre os preceitos da ordem econômica, sendo a defesa do consumidor tão importante quanto à propriedade privada, a defesa do meio ambiente, a livre iniciativa, etc. O princípio da defesa do consumidor deve ser encarado como um comando pragmático e normativo que limita a atuação dos detentores dos bens de produção e, ao mesmo tempo, também é limitado pelos demais preceitos que compõem a própria ordem econômica.

O art. 4º, incisos III e VI, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), também considerado uma norma principiológica aplicada às relações de consumo, assim prevê:

Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

VI – coibição eficiente de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores. 

Com efeito, é importante sopesar que a interpretação que deve ser dada à referida norma, quanto à sua finalidade de interesse social relacionado ao interesse público, é que tanto o consumidor, devido a sua vulnerabilidade, quanto o fornecedor, devido à necessidade de proteção e incentivo às práticas leais de mercado, são alcançados, ou seja, assim como, por um lado, não se permite abuso do poder econômico (art. 173, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal) em detrimento a ordem econômica e financeira (inclui-se aqui a proteção do consumidor – art. 170, inciso V) bem como a economia popular, por outro, deve ser, no mínimo, desestimulado qualquer abuso de direito (art. 187 do Código Civil) que venha comprometer a harmonia, boa-fé e equidade em detrimento aos interesses dos fornecedores, o que também é prejudicial  à própria relação de consumo como um todo, que por sua vez, atinge, ainda que indiretamente, a Ordem Econômica e Financeira.   

O professor JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO (Op.cit., p. 65) faz uma interessante colocação em uma de suas obras quando afirma que:

“Num primeiro momento, portanto, fica claro que a proteção e o incentivo às práticas leais de mercado interessam aos próprios fornecedores, tal como são definidos pelo art. 3º do Código do Consumidor. Em última análise, porém, resta evidente que tal proteção e incentivo interessam ao consumidor, também como definido pelo código, em seu art. 2º.”

Por sua vez, o Eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal Professor Doutor EROS ROBERTO GRAU (A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 305) certa vez ensinou:

“A ordem econômica e a Constituição de 1988, no seu todo, estão prenhes de cláusulas transformadoras. A sua interpretação dinâmica se impõe a todos quantos não estejam possuídos por uma visão estática da realidade. Mais do que divididos, os homens, entre aqueles que se conformam com o mundo, tal como está, e aqueles que tomam como seu projeto o de transformá-lo, aparta-os o fato de os segundos terem consciência de que a história – como a vida – é movimento. E de que a História não acabou, ilusão que só pode ser alimentada por quem não tenha a menor idéia das condições de vida do homem nas sociedades subdesenvolvidas. Por certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 pode instrumentar mudança e transformação da realidade, até o ponto, talvez, de reconformar a ideologia constitucional e mesmo, quiçá, em seu devido lugar recolocar o individualismo metodológico. Tudo dependerá de quem esteja o Estado a representar, de quais sejam os interesses que o motivam, interesses de grupos ou interesse social – e em função de que interesse estejam a exercer o poder os representantes institucionais da sociedade. Se a algum ponto cumprisse, neste final de exposição retornar, haveria de ser ele aquele a respeito do qual me detive no item 74 do meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito.”

Portanto, não é absurdo se entender que o amparo constitucional à ordem econômica e financeira, através da observância de seus princípios aplicados à relação de consumo elencados no art. 170, é muito mais complexo do que se pode imaginar, pois tem como pressuposto a necessidade de convergência dos mesmos, sendo que, quando isso ocorre não é possível apenas vislumbrar a proteção do consumidor, mas sim a harmonia de interesses de ambos os lados da relação, tudo em nome do interesse social associado ao próprio interesse público.   

FÁBIO KONDER COMAPARATO (O poder de controle na sociedade anônima, p. 419) preleciona: “O poder econômico é uma função social, de serviço à coletividade.”

Partindo-se do pressuposto de que o poder econômico corresponde a uma função social, não resta dúvida quanto a sua importância e a necessidade de sua preservação frente à aplicação de outros princípios constitucionais, como o da defesa do consumidor (art. 170, V, CF/88), através de uma harmonização de aplicação e extensão entre tais princípios que norteiam a ordem econômica.      

Ademais, para SEBASTIÃO BOTTO DE BARROS TOJAL (In Os 10 anos da Constituição Federal. Coord. Alexandre de Moraes. Atlas, 1999, p. 37):

“A ordem econômica da Constituição de 1988, mundo do dever ser, exige, para a sua realização, um processo dialético de implicação-conformação entre mercado e Estado no sentido da preservação daquele, proporcionada pela sua permanente transformação. Essa transformação não corresponde, sob hipótese alguma, a um processo autárquico do próprio mercado, até porque sua história dispõe em contrário. Ao revés, a contínua transformação do mercado, vetorialmente guiada para a realização da nova ordem econômica e social, exige a atuação do Estado como agente integrador desse processo, conferidor da necessária medida de racionalidade, que não é apenas instrumental mas essencialmente substantiva, porque comprometida com a justa distribuição da riqueza social, repita-se.”    

É possível vislumbrar que tal abordagem suscita a idéia de dinamismo e uma interpretação racional dos princípios norteadores que compõem a ordem econômica, de forma a harmonizar os interesses dos agentes do mercado, sendo importante o papel do Estado-legislador ou mesmo do Estado-Juiz como integrador desse processo rumo ao desenvolvimento sócio-econômico.

3. O Princípio da Livre Iniciativa e Concorrência:

A Constituição Federal menciona a livre iniciativa, tanto no art. 1º, IV, quanto no art. 170, caput, senão vejamos:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:    

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.       

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

Omissis (...)

A livre iniciativa, como tal descrita na Constituição, consagra o sistema capitalista e o liberalismo como identificador da própria ordem econômica estabelecida na sociedade, sem prejuízo da garantia da legalidade, uma vez que a liberdade de iniciativa econômica expressa, precisamente, a não sujeição a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei.                                          

Aliberdade de iniciativa econômica privada, num sentido de prevalência de uma Constituição que visa à realização da justiça social (art. 170, parágrafo único), significa para OTTAVIANO (II governo del’economia: i principi giuridici, in Tratato di diritto commerciale e di diritto pubblico dell’ economiav. I: La costituzione econômica, p. 202): “liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das felicidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo.”

Neste contexto, JOSÉ AFONSO DA SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 760) entende:

“Ora, a evolução das relações de produção e a necessidade de propiciar melhores condições de vida aos trabalhadores, bem como o mau uso dessa liberdade e a falácia da ‘harmonia natural dos interesses’ do Estado liberal, fizeram surgir mecanismos de condicionamento da iniciativa privada, em busca da realização de justiça social, de sorte que o texto supratranscrito do art. 170, parágrafo único, sujeito aos ditames da lei, há de ser entendido no contexto de uma Constituição preocupada com a justiça social e com o bem-estar coletivo.”                          

Há quem sustente a livre iniciativa esboçando um conteúdo bem mais amplo do que a mera liberdade de iniciativa econômica, pois se refere a uma liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho, sendo que tal posicionamento se justifica quando se faz uma sincronia entre o valor social enunciado como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV) e a relação direta trabalho humano e livre iniciativa, de forma que o primeiro seja valorizado (art. 170, caput).

Neste sentido, TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR (A economia e o controle do Estado. Parecer publicado in O Estado de S. Paulo, edição de 4.6.1989) faz as seguintes relevantes ponderações: 

“Nestes termos, o art. 170, ao proclamar a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica está nelas reconhecendo a sua base, aquilo sobre o que ela se constrói, ao mesmo tempo sua conditio per quam e conditio sine qua non, os fatores sem os quais a ordem reconhecida deixa de sê-lo, passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável. Particularmente a afirmação da livre iniciativa, que mais de perto nos interessa neste passo, ao ser estabelecida como fundamento, aponta para uma ordem econômica reconhecida então como contingente. Afirmar a livre iniciativa como base é reconhecer na liberdade um dos fatores estruturais da ordem, é afirmar a autonomia empreendedora do homem na conformação da atividade econômica, aceitando a sua intrínseca contingência e fragilidade; é preferir, assim, uma ordem aberta ao fracasso a uma ‘estabilidade’ supostamente certa e eficiente. Afirma-se, pois, que a estrutura da ordem está centrada na atividade das pessoas e dos grupos e não na atividade do Estado. Isto não significa, porém, uma ordem do ‘laissez faire’, posto que a livre iniciativa se conjuga com a valorização do trabalho humano, mas, a liberdade, como fundamento, pertence a ambos. Na iniciativa, em termos de liberdade negativa, da ausência de impedimentos e da expansão da própria criatividade. Na valorização do trabalho humano, em termos de liberdade positiva, de participação sem alienações na construção da riqueza econômica. Não há, pois, propriamente, um sentido absoluto e ilimitado na livre iniciativa, que por isso não exclui a atividade normativa e reguladora do Estado. Mas há ilimitação no sentido de proporcionar a atividade econômica, de espontaneidade humana na produção de algo novo, de começar algo que não estava antes. Esta espontaneidade, base da produção da riqueza, é o fator estrutural que não pode ser negado pelo Estado. Se, ao faze-lo, o Estado a bloqueia e impede, não está intervindo, no sentido de normar e regular, mas está dirigindo e, com isso, substituindo-se a ela na estrutura fundamental do mercado.”          

Não se pode deixar de afirmar que a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica não pode ser desvinculada da valorização do trabalho e o seu limite é a legalidade que deve regrar não o capital, mas o homem em suas liberdades para a afirmação do próprio Estado Democrático de Direito, o qual não pode ser susceptível de poderes ilimitados nem tampouco de direitos, ainda que considerados fundamentais, exercidos de forma indiscriminada.

Ademais, é coerente o entendimento de que a sobrevivência do princípio da livre iniciativa depende, imprescindivelmente, da harmonia com os demais princípios norteadores da dignidade associada ao “bem estar” entre todos que compõem a sociedade, seja pessoa física ou empresa, cabendo ao Estado a regulação das liberdades sem comprometê-las, bem como a aplicação das normas já existentes com o fito de manutenção da própria ordem econômico-social, sem contradizê-la ou ameaçá-la.  

A livre concorrência, por sua vez, está contemplada no art. 170, IV, da Constituição Federal, sendo considerada, entre outros, como princípio norteador da ordem econômica.

É importante destacar que a liberdade evidenciada na própria nomenclatura constitucional de tal princípio não pressupõe uma ausência absoluta de limites que reprimam o abuso, em especial, relacionado ao fenômeno intrínseco do mercado denominado poder econômico, uma vez que a própria Constituição em seu art. 173, parágrafo quarto, se refere ao “abuso do poder econômico”.

EROS ROBERTO GRAU (Ob. Cit., p. 189) sobre o assunto disserta:

“Deveras, não há oposição entre o princípio da livre concorrência e aquele que se oculta sob a norma do § 4º do art. 173 do texto constitucional, princípio latente, que se expressa como princípio da repressão aos abusos do poder econômico e, em verdade – porque dele é fragmento – compõe-se no primeiro. É que o poder econômico é a regra e não a exceção. Frustra-se, assim, a suposição de que o mercado esteja organizado, naturalmente, em função do consumidor. A ordem privada, que o conforma, é determinada por manifestações que se imaginava fossem patológicas, convertidas porém, na dinâmica de sua realidade, em um elemento próprio a sua constituição natural.”     

A Lei n. 8.884, de 11/06/94, está voltada à repressão às infrações contra a ordem econômica com vistas à preservação do próprio modo de produção capitalista, sendo que dispõe em seu art. 1º:

Art. 1 º Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.   

Por sua vez, TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR (Apud Eros Roberto Grau. Ob. Cit., p 190) define com muita propriedade a livre concorrência da seguinte forma:

“A livre concorrência de que fala a atual constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada.”         

Com efeito, tomando como base as inteligentes colocações ora transcritas, ouso pronunciar que, especialmente em relação aos consumidores, a livre concorrência através da competitividade não somente é uma tutela do consumidor porque “induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço” como também o é porque garante aos consumidores uma maior segurança física e econômica quanto à quantidade, qualidade e transparência dos produtos e serviços colocados no mercado por meio dos agentes, uma vez que, a busca desenfreada pela conquista de mercados travada por diversos agentes, denominada competitividade, induz a uma necessidade de cada qual procurar  apresentar a melhor relação custo-benefício às presas do mercado, os consumidores.           

Portanto, a interpretação que deve ser atribuída à livre concorrência como um dos princípios da ordem econômica está definitivamente relacionado à necessidade de harmonizá-lo com os demais princípios enumerados pelo art. 170 da Constituição, bem como de defini-lo não como uma liberdade anárquica, mas sim social, de forma a compatibilizar ao máximo a sua natureza dinâmica de ser fator de crescimento econômico associado à auto-afirmação do próprio sistema capitalista, com o dever social que cabe a todos de contribuírem para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária com vistas ao desenvolvimento sócio-econômico nos termos do art.3º da referida Carta. 

4. A Defesa do Consumidor e das Relações de Consumo:

É indubitável a relevância da Lei 8.078/90 como norma de proteção do consumidor frente à voracidade do mercado de consumo e o próprio desequilíbrio da relação jurídica estabelecida entre consumidor e fornecedor, contudo devido à própria sistematização do CDC através de seus princípios específicos previstos em seu art. 4º em consentâneo aos princípios constitucionais da ordem econômica bem como aos objetivos fundamentais da República, em especial o previsto no art. 3º, inciso I, não é de nada absurdo sustentar a idéia de que o caráter protetivo do consumidor em sua origem é apenas uma das condições necessárias ao equilíbrio e equidade da relação de consumo.

Para o eminente professor JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 8. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2005, p. 60/61):

“Ao contrário do que se tem ouvido de alguns, o Código ora instituído entre nós não é instrumento de ‘terrorismo’ ou então de fomento da discórdia entre os protagonistas das relações de consumo ou, mais grave ainda, como pretendem ver alguns leitores mais afoitos e apressados do texto sob análise, elemento desestabilizador do mercado, eis que encara o fornecedor como o vilão da história, atribuindo-se-lhe todas as mazelas e distorções verificadas no mercado de consumo. Muito pelo contrário, e como já salientado linhas atrás, visa exatamente à harmonia das sobreditas ‘relações de consumo’, porquanto se por um lado efetivamente se preocupa com o atendimento das necessidades básicas dos consumidores (isto é, respeito à sua dignidade, saúde, segurança e aos seus interesses econômicos, almejando-se a melhoria de sua qualidade de vida), por outro visa igualmente à paz daquelas, para tanto atendidos certos requisitos, como serão analisados a seguir, dentre os quais se destacam as boas relações comerciais, a proteção da livre concorrência, do livre mercado, da tutela das marcas e patentes, inventos e processos industriais, programa de qualidade e produtividade, enfim, uma política que diz respeito ao mais perfeito possível relacionamento entre consumidores – todos nós em última análise, em menor ou maior grau – e fornecedores.” (grifo nosso).

Partindo-se do pressuposto de que a Constituição Federal, no seu art. 170, V, prevê a defesa do consumidor como um dos princípios que norteiam a ordem econômica, todavia, o mesmo não deve ser analisado isoladamente de forma a se ignorar outros princípios como a propriedade privada (inciso II) e a livre iniciativa e concorrência (“caput” e inciso IV), acredito ser razoável entender que muito embora o Código de Defesa do Consumidor possua uma função protetiva, somente esta não corresponda a sua finalidade, tendo em vista o que dispõe o seu art. 4º, incisos III e IV como princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, de forma a atribuir ao CDC caráter dual de tutela de interesses, necessário à satisfação do próprio interesse social.     

O art. 4º, III e IV, do CDC assim dispõe:

Art. 4º.  A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo atendidos os seguintes princípios: (grifo nosso)

III – Harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. (grifo nosso)

IV – educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo. (grifo nosso)

Não é difícil detectar nas preciosas linhas acima transcritas a dualidade de interesses que são preservados pela norma consumerista, de forma a referendar não somente a tutela do consumidor, mas de ambas as partes com vistas à integridade do próprio mercado de consumo e, por via de conseqüência, a satisfação do interesse público e social.

A norma do art. 4º, de caráter nitidamente protetivo do consumidor, tem seu contraponto no princípio da harmonização de interesses conflitantes, de tal sorte que aquela necessidade de proteção deve ser compatibilizada com a de desenvolvimento econômico e tecnológico.

É cediço que o Código de Defesa do Consumidor é uma norma que possui dispositivos amplamente modernos e de auto-aplicação, por isso, insusceptível de qualquer ideal conservador de tutela isolada e unilateral de interesse, pois não é possível desmembrar as partes essenciais de um todo sem comprometê-lo, ou seja, a existência de um mercado de consumo pressupõe, necessariamente, uma relação entre consumidor e fornecedor, ambos tutelados harmonicamente.    

Neste sentido, se faz mister citar os questionamentos feitos por alunos universitários à professora universitária e assessora jurídica do TJ-MT Débora Caldas (Caderno jurídico. disponível em < http://www.alternet.com.br/canal/direito_fs.html >. Acesso em 17/11/2002):

“É inegável o benefício trazido pelo CDC ao consumidor. Porém, isso trouxe, também, a chamada ‘indústria da indenização’, um passaporte para a riqueza de pessoas que simulam situações que supostamente trariam danos, mesmo não provados, ante a inversão do ônus da prova. O que fazer para equilibrar isso? (Frank Robson) Resposta: O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, com vigência desde 11 de março de 1991, veio legislar uma garantia constitucional do artigo 5º, XXXII e um preceito de ordem econômica do artigo 170, V. Dessa forma, pode-se afirmar que a defesa do consumidor se origina sempre da constituição e visa um reequilíbrio das relações entre fornecedores e consumidores. Embora o artigo 1.º da lei consumerista traga, expressamente, que o referido código destina-se à defesa e proteção do consumidor, o legislador objetivou, em verdade, proteger as relações de consumo, inclusive possibilitando a punição do consumidor quando este agir de má-fé. O que ocorre, na maioria das vezes, é que o consumidor é a parte mais fraca, assim, protege-se a ele. O equilíbrio entre os benefícios trazidos pela Lei n. 8.078/90 e o mau uso que dela pode ser feito por consumidores desonestos, caberá aos próprios aplicadores do Direito, no sentido de coibir tais práticas negativas, punindo, de forma severa, uma vez constatada a má-fé da parte em juízo.” (grifo nosso).                 

Não obstante, a vulnerabilidade do consumidor prevista no inciso I do art. 4º do CDC frente aos avanços dos mercados e suas técnicas relacionadas ao domínio da atividade exercida e o poderio econômico dos fornecedores e, por outro lado, a possibilidade de má-fé e abuso de direto por parte dos consumidores em detrimento à própria atividade exercida pelos fornecedores, fato que tem se acentuado nos últimos tempos, é possível sustentar que o CDC deve ser visualizado como uma norma protetiva não somente do consumidor, mas também, da relação de consumo, sendo que a defesa do consumidor, bem como a preservação de interesses do fornecedor são partes integrantes do sistema jurídico definido por esta norma.

A lei 8.078/90 é uma norma que constitui um microssistema autônomo de proteção das relações de consumo, sendo que, ao consumidor lhe é dado uma atenção especial, tendo em vista a desigualdade natural caracterizadora da relação jurídica constituída entre os seus partícipes, em que de um lado está quem detém o poderio econômico e o domínio sobre os meios de produção em detrimento da outra parte, a qual não menos importante, fomenta o mercado para a produção de riquezas. Trata-se, portanto, de sociedade de consumo.

RIZZATTO NUNES (Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 69) uma vez escreveu que:

“O CDC, como sistema próprio que é, comporta, assim, que o intérprete lance mão dos instrumentos de trabalho a partir e tendo em vista os princípios e regras que estão nele estabelecidos e que interagem entre si. O uso da técnica de interpretação lógico-sistemática é tão fundamental para o entendimento das normas do CDC como a de base teleológica, que permitirá entender seus princípios e finalidades.” 

A complexidade da lei 8.078/90 está na necessidade de o operador do direito interpretá-la de forma a compatibilizar a lógica que deve se imprimida em sua sistematização com seus princípios e finalidades, que certamente extrapolam o mundo dos interesses privatistas para ingressar no âmbito do interesse social, como norma de ordem pública que é acima de tudo.

O art. 7º, caput, da lei 8.078/90 assim dispõe, in verbis:

Art. 7 º. Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade.

Tal disposição legal vislumbra que o Código de Defesa do Consumidor é, extraordinariamente, um sistema jurídico complexo e amplamente moderno o qual permite sua aplicação de forma dinâmica, adaptando-se aos casos concretos de relação de consumo, ainda que não se tenha uma expressa cominação, desde que sempre haja obediência aos seus comandos axiológicos determinantes de sua finalidade como o princípio da boa-fé, harmonização de interesses e equidade (art. 4º do CDC), bem como a própria ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal). 

Com efeito, salienta-se que o CDC está em pleno vigor há mais de quinze anos, tendo influenciado diretamente a modernização das relações jurídicas estabelecidas no pólo de consumo, sendo, inclusive, considerada uma das raras leis brasileiras respeitadas no exterior, tendo servido de inspiração para a criação e modificação de várias leis similares em muitos países.

O professor FILOMENO (In Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. São Paulo. Forense Universitária, 2005, p. 157) faz um interessantíssimo comentário a respeito do assunto, senão vejamos:

“Como já visto, em verdade, não se dizer que haja um ‘Direito do Consumidor’, assim como existe um ‘Direito Penal’, ‘Direito Civil’, ‘Direito Comercial’ etc. Cuida-se, em última análise, de um microssistema jurídico, na medida em que não apenas convive com outros institutos já preexistentes e encerrados nos corpos de normas mencionadas, como também cria enfoque próprio (cf. art. 4 º) e aperfeiçoa outros institutos jurídicos, como no caso dos vícios rebiditórios, responsabilidade civil, teoria geral dos contratos e tutela coletiva dos consumidores.”

O tema abordado neste trabalho suscita ousadia quando permite ampliar mais ainda o entendimento do ilustre professor quando tratou da convivência e do aperfeiçoamento em relação a outros institutos jurídicos, para se sustentar que além da responsabilidade civil, teoria geral dos contratos e tutela coletiva dos consumidores, é possível transplantar a teoria do abuso de direito para a relação jurídica de consumo com vistas a satisfazer o ideal de boa-fé, harmonia e equidade que deve lastrear os contratos entre consumidores e fornecedores, considerando não somente os interesses envolvidos inter partes, mas, acima de tudo, o social.       

É neste contexto que surge o que uma renomada parte da doutrina denomina de “Diálogo das Fontes”, a qual deve ser entendida como uma conexão intersistemática existente entre o CDC e outros diplomas legais, principalmente, o Código Civil, com o objetivo de possibilitar maiores benefícios e mecanismos de defesa para o consumidor, por excelência, e para o fornecedor quando se encontrar prejudicado pela eventual má-fé e abuso de direito por parte do consumidor, ou seja, garantir a harmonia e equidade nas relações de consumo.

O Novo Código Civil possibilitou o surgimento de uma nova teoria geral dos contratos, baseada em princípios importantíssimos para se evitar os excessos que a obrigatoriedade da convenção (“pacta sunt servanda”) trazia para as relações contratuais. Novos princípios foram introduzidos nesta teoria, aproximando-a, e muito, do Código de Defesa do Consumidor, quais sejam, função social do contrato e boa-fé objetiva (arts. 421 e 424 do Código Civil, respectivamente).

A teoria do Diálogo das Fontes encontrou seu fundamento no Enunciado nº. 167 (III Jornada de Direito Civil, idealizada pelo Ministro Ruy Rosado Aguiar, promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), realizada em Brasília em dezembro de 2004), o qual assim expressou:

“167 – Arts. 421 a 424: Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor, no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos.”

Com efeito, esta idéia foi utilizada por CLÁUDIA LIMA MARQUES, ANTÔNIO HERMAN BENJAMIN E BRUNO MIRAGEM (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2004), para fundamentar a referida teoria, haja vista que, já preconizava a necessidade de uma discussão necessária entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil, para se adotar uma única teoria geral dos contratos.

Atualmente, com a nova codificação civil, está explicito nos princípios nela existente, que as inovações trazidas pela legislação consumerista foram nela incorporadas.

Portanto, é importante sopesar que se vive em uma nova era do Direito, onde o que realmente importa é a função do mesmo e não a sua estrutura, uma vez que, o Direito não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de realização de justiça e paz social. O Estado Democrático de Direito preconiza objetivos e ideais a serem alcançados pela sociedade, certo de que os meios de realização de suas finalidades necessitam ser relativizados sob pena de não se atingir o que é mais importante, a garantia das liberdades contratuais sem comprometer o bem estar social que pertence a todos, independentemente, de condição política, social ou econômica. 

5. O Princípio da Boa-fé nas Relações de Consumo:

O princípio da boa-fé encontra-se previsto no inciso III do art. 4º da Lei 8.078/90, sendo um dos mais importantes esteios da harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo. Além do mais, a referida lei é considerada a pioneira em dispor sobre a boa-fé objetiva.

A lei consumerista incorpora a boa-fé objetiva, diversa daquela encontrada em vários preceitos do Código Civil como, por exemplo, no art. 1.567, quando trata dos efeitos do casamento putativo, nos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, no art. 879, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc., trata-se, pois, nestes casos, de boa-fé subjetiva.

A boa-fé objetiva no âmbito da lei 8.078/90 deve ser compreendida como a conduta que se espera dos participantes da relação de consumo embasada sempre em determinados parâmetros da virtude humana como a lealdade e a honestidade que devem se fazer presentes com vistas à lisura, ao equilíbrio e à equidade.

RIZZATTO NUNES (Op. Cit, p. 128) define com muita propriedade a boa-fé objetiva à luz do Código de Defesa do Consumidor (CDC) quando escreve:

“Deste modo, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes. A boa-fé objetiva é uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal. Toda vez que no caso concreto, por exemplo, o magistrado tiver de avaliar o caso para identificar o tipo de abuso, deve levar em consideração essa condição ideal a priori, na qual as partes respeitam-se mutuamente, de forma adequada e justa. O princípio da boa-fé estampado no art. 4º da lei consumerista tem, então, como função viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica, compatibilizando interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico. Com isso, tem-se que a boa-fé não serve somente para a defesa do débil, mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora da ordem econômica, que, como vimos, tem na harmonia dos princípios constitucionais do art. 170 sua razão de ser.”

É de suma importância para os operadores do direito a noção dualista da lei 8.078/90, a qual não pode ser visualizada como norma garantidora somente do equilíbrio, harmonia e equidade em prol do consumidor, mas sim da relação de consumo como um todo a ser considerado em razão do que dispõe a Constituição Federal no seu art. 170, de forma dirigente e principiológica.

Toda e qualquer conduta contrária aos ditames de boa-fé, seja por parte do fornecedor, seja por parte do consumidor é extremamente lesiva e prejudicial, devendo ser rechaçada de igual modo, pois o que se está garantindo é muito além dos interesses privados dos contratantes.

Para CLÓVES COUTO E SILVA ( apud SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade Civil no Código de defesa do consumidor e a defesa do fornecedor. 2002, p.54) a boa-fé deve ser definida:

"Como um modelo ideal de conduta, que se exige de todos os integrantes da relação obrigacional (devedor e credor) na busca do correto adimplemento da obrigação, que é sua finalidade." 

Ademais, para MARCELO KOKKE GOMES (Responsabilidade civil dano e defesa do consumidor. 2001, p.144):

“(...) é dever tanto do consumidor quanto do fornecedor atuarem de boa-fé em relação à parte contrária, ou seja, pautarem seus comportamentos pela correção e lealdade. Que negociem e busquem cada um melhor vantagem, mas sem utilizar-se de artifícios escusos para induzir a parte contrária em erro.”

O Poder Judiciário exerce um relevante papel de adaptar a lei ao caso concreto, quando de sua atividade precípua de resolver os conflitos de interesses, que se transformam em verdadeiras demandas judiciais. No caso da boa-fé objetiva nas relações de consumo, tal presunção muitas vezes choca-se com uma percepção negativa, a qual é tremendamente prejudicial e que ambas as partes da relação contratual podem estar sujeitas, qual seja, a má-fé.

São corriqueiros, conhecidos e bastante abordados pela doutrina e jurisprudência os abusos por parte dos fornecedores que agindo de má-fé desarmonizam a relação de consumo de forma a lesionar os direitos básicos dos consumidores (abuso do poder econômico, propaganda enganosa, cláusulas abusivas em contratos de adesão etc.), desequilibrando-a, porém não se pode ignorar a realidade que se tem observado nos últimos anos de o consumidor agir de má-fé em detrimento da harmonização de interesses tão visada pela lei consumerista em consentâneo com o art. 170 da Constituição Federal, não somente em relação à necessidade de defesa do consumidor, mas também em relação aos outros ditames necessários ao desenvolvimento econômico e tecnológico como a livre iniciativa, propriedade privada e livre concorrência que compõem a ordem econômica.        

A título de ilustração de diversas situações jurídicas que retratam este quadro, objetos de apreciação pelo Poder Judiciário, em que o consumidor age de má-fé na tentativa de fazer uso de seus direitos previstos no CDC, destacam-se as seguintes jurisprudências:

AÇÃO CAUTELAR. DEVEDOR. CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO NOS ÓRGÃOS PROTETIVOS DE CRÉDITO. DISCUSSÃO DO DÉBITO EM JUÍZO. NÃO COMPROVAÇÃO. AGRAVO PROVIDO.

Se, de um lado, tem-se admitido o ajuizamento de ações cautelares, pelo devedor, com o escopo de retirar seu nome do banco de dados de órgãos protetivos ao crédito, como a SERASA, SPC/CDL, CADIN e similares, de outro, para que as mesmas prosperem, faz-se mister que a discussão do respectivo débito esteja sendo objeto de procedimento judicial regularmente instaurado com essa finalidade e com a indicação do credor para figurar no pólo passivo da relação processual. Ora, existindo dívidas, como de fato há, sem que os devedores tenham sequer consignado os valores não questionados, lícitas se afiguraram tanto a inclusão dos nomes dos agravados nos arquivos da agravante (grifo nosso) como também a adoção de todas as medidas daí decorrentes, máxime quando, por conta da liminar hostilizada, foram excluídas as anotações de diversos protestos, cheques emitidos sem a devida provisão de fundos, além de outras pendências bancárias. À unanimidade de votos, deu-se provimento ao agravo, para reformar a decisão agravada.

(Pernambuco, 4ª Câmara Civil. Agravo de Instrumento n.º.60459-1, Rel. Des. Jones Figueiredo, julgado em 30-11-00).

RESPONSABILIDADE CIVIL – Estacionamento de veículo – Automóvel perseguido por outro veículo ocupado por marginais.

Autor que larga o carro na porta do restaurante e ingressa em seu interior sem apanhar o "ticket", sendo logo em seguida o veículo subtraído pelos assaltantes – Responsabilidade do prestador de serviço afastada – Dano causado por terceiro – Artigo 14, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor – Comprovada má-fé do autor - Embargos infringentes acolhidos (Embargos Infringentes nº. 930.845-6 – São Paulo – 23ª Câmaras de Direito Privado - Relator: Rizzatto Nunes – 16.08.06 – V.U. – Voto n. 5.613).

No primeiro caso supramencionado, o consumidor foi beneficiado, por meio de uma liminar concedida na justiça, através de uma alegação feita de má-fé, tendo em vista uma interpretação restritiva que se fez dos dispositivos que tratam sobre a cobrança de dívidas por parte do fornecedor (art. 42 e 71 do CDC), o que muitas vezes, dependendo do caso, quebra a harmonia pretendida pela própria sistematização da lei com vistas à proteção da relação de consumo, como no caso em apreço.

Por sua vez, o segundo caso, julgado pelo Poder Judiciário Paulista, trata-se de má-fé do consumidor ao tentar receber indenização do prestador de serviço, sem que o mesmo tivesse dado causa ao alegado prejuízo oriundo de um suposto roubo de seu veículo, o qual foi seguido por “marginais” até o local do fato, sendo que o consumidor adentra no restaurante sem pegar o “ticket” do estacionamento, fato que despertou suspeitas até mesmo sobre eventual “armação” (malícia).  

Ademais, não se pode deixar de citar a Súmula 61 do Superior Tribunal de Justiça –  STJ que ao dispor que: “O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado” revela uma importante interpretação judicial no sentido de se vislumbrar a possibilidade de malícia por parte do consumidor, bem como a necessidade de coibi-la, em nome da boa-fé que deve prevalecer em ambos os lados da relação de consumo.    

Neste diapasão, as lições de RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR (In Revista de Direito do Consumidor, n. 14, pp. 20 a 27, abr./jun. 1995), revela a importância da boa-fé nas relações de consumo: 

“A boa-fé significa a aceitação da interferência de elementos externos na intimidade da relação obrigacional, com poder limitador da autonomia contratual, pois através dela pode ser regulada a extensão e o exercício do direito subjetivo. A força e a abrangência dessa limitação dependem da filosofia que orienta o sistema, e da preferência dada a um ou outro dos princípios em confronto. Na relação de consumo, há nítida preocupação protetiva para com o consumidor, a ser compatibilizada com o princípio da liberdade contratual e com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico.”

Para o mestre JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO (In Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. São Paulo: Forense, 2005, p. 68):

“A filosofia imprimida ao Código do Consumidor, como já asseverado, aponta no sentido de uma busca da harmonia das relações de consumo, harmonia esta não somente fundada no tratamento das partes envolvidas, como também na adoção de parâmetros até de ordem prática. Assim é que, se é certo que o consumidor é a parte vulnerável nas sobreditas relações de consumo, não se compreendem exageros nessa perspectiva, a ponto de, por exemplo, obstar-se o progresso tecnológico e econômico.”

O art. 4º da lei 8.078/90, que por sinal, deve ser considerado como princípio geral revela a finalidade do Código de Defesa do Consumidor como uma norma não só de proteção do consumidor como também da harmonia e equilíbrio capazes de elidir até mesmo eventual abuso de direito praticado por ambos os sujeitos da relação jurídica, o que permite, através de uma interpretação conforme a Constituição Federal, se compreender melhor a extensão dos Princípios basilares previstos no próprio CDC com vistas à harmonia, equilíbrio e boa-fé nas relações entre fornecedores e consumidores.

Não é razoável se compreender a harmonia almejada pela lei através de uma Política Nacional de Relação de Consumo, apenas considerando o seu aspecto imediato de suprir a desigualdade existente entre consumidor e fornecedor, quanto à vulnerabilidade do primeiro frente à força econômica do segundo, bem como ao seu domínio, em todos os aspectos, dos meios de produção.       

Tal harmonização extrapola os limites da relação entre as partes e adentra no campo do interesse social, pois se assim não fosse a boa-fé não haveria de ser considerada um dever que cabe a ambos os seus partícipes na tentativa de se compatibilizar a defesa do consumidor com o desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico, o qual só poder ser alcançado através da liberdade contratual associada à valorização dos interesses em questão, afinal a lei 8.078/90 é acima de tudo uma norma de ordem pública e interesse social, geral e principiológica.    

Mais uma vez, recorro às lições do Professor FILOMENO (Manual de Direitos do Consumidor. 8. ed. 2005, p. 13) quando, categoricamente, ensina que:

“A harmonização de que cuida o inciso III, do art. 4º, a seu turno, refere-se à tranqüilidade, ou, antes até, ao estado de paz, sem conflitos, que devem existir entre a proteção dos interesses dos consumidores, de forma geral, de um lado, e a busca de novas conquistas e inovações tecnológicas, de outro, viabilizando-se, em conseqüência, o desenvolvimento econômico, tal como previsto no art. 170 da Constituição Federal, que, como já vimos, estabelece as bases para a ordem econômica idealizada. Referida tranqüilidade deve sempre ser baseada na boa-fé e no equilíbrio nas relações fornecedores/ consumidores.”      

Com efeito, o princípio da boa-fé, adotado expressamente pelo legislador consumerista no artigo 4º, deve ser interpretado dentro de uma relação de consumo, como um princípio norteador da conduta de ambas as partes em consonância com os ditames dos bons costumes sociais necessários ao alcance da tão almejada harmonia, mas não como um princípio de proteção direcionado exclusivamente ao consumidor (a exemplo da vulnerabilidade e da hipossuficiência).

Assim, conforme salienta MENEZES CORDEIRO (Apud SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código de defesa do consumidor e a defesa do consumidor e a defesa do fornecedor. 2002, p. 60) a boa-fé deve atuar: 

“Como princípio informador do teor geral da colaboração intersubjetiva que reina na nossa disciplina, aplica-se sem qualquer dúvida a todos os comportamentos que tenham lugar a responsabilidade civil, esclarecendo as normas e situações implicadas.”

Portanto, vislumbra-se que a boa-fé é primordialmente um princípio geral do Direito que deve, adequando-se a qualquer norma jurídica específica, superar as peculiaridades legislativas. Deve ser definido, conforme as palavras de Carlos Maximiliano (Apud NEMEZIO, Auta França de Oliveira. O Princípio da boa-fé e sua abrangência. Disponível em < http://www.bpdir.adv.Br/04_ar.htm > acesso em 06/02/07) como um dos "macroprincípios que embasa todo o ordenamento jurídico a ponto de constituir em diretivas idéias de hermenêutica, assim como antecedentes científicos da ordem jurídica", de forma a exercer sua influência na própria formação dos institutos jurídicos. No caso do Direito do Consumidor é de se questionar, portanto, qual será o grau de aplicabilidade do princípio da boa-fé para a efetiva busca da harmonização dos interesses dos participantes (inclui-se aqui fornecedor de boa-fé) das relações de consumo.

Analisando a lei 8.078/90 vislumbra-se que em todos os capítulos, mesmo que em alguns de forma implícita, existem menções sobre a responsabilidade civil objetiva do fornecedor e da necessidade de sua atuação consubstanciada na boa-fé objetiva nas relações de consumo, sendo que o legislador consumerista, em relação ao consumidor, não fez nenhuma ressalva expressa da necessidade de conduta leal, honesta, consciente do exercício de seus direitos.

Todavia, é importante ressaltar que, quando o legislador no artigo 4º, inciso III, faz alusão à harmonização de interesses, é perfeitamente perceptível uma necessidade da boa-fé objetiva nos tramites das relações de consumo e não apenas em situações específicas ou a uma das partes, senão vejamos:     

A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.  (grifo nosso).

Neste exato sentido corrobora mais uma vez PAULO SANSEVERINO (Op. Cit., p. 62) ao ressaltar que:

“O princípio da boa-fé objetiva, que é uma estrada de duas mãos no vínculo que une fornecedor e consumidor, apresenta uma relevância especial. Em muitos casos, a forte proteção concedida pelo microssistema do CDC tem servido de escudo para consumidores que, agindo de forma desleal, contrariamente aos ditames da boa-fé, busquem indenizações de prejuízo para cuja produção tiveram decisiva colaboração.”

Tal afirmação acima revela uma situação bastante comum atualmente e bem discutida nas lides referentes às relações de consumo, especialmente quando os juristas se deparam com situações onde, por exemplo, as duas partes atuam imbuídas de boa-fé, bem como nas situações em que na análise do caso em concreto se constata pretensões e atitudes confrontantes com os ditames deste princípio por uma das partes (seja fornecedor, seja consumidor).

A conclusão que se permite chegar, data máxima vênia, aos que assim não entendem, é que toda conduta do fornecedor, assim como a do consumidor, deve ser analisada à luz do princípio da boa-fé objetiva, devendo também se utilizar às disposições do CDC e, principalmente, a do artigo 4º (norma principiológica) no intuito de proteger igualmente o fornecedor de boa-fé nas relações de consumo, pois só assim é possível se compreender a finalidade e o alcance da harmonização como um princípio necessário à equidade nas relações jurídicas de consumo, a qual é objetivo primário da própria Política Nacional das Relações de Consumo associada à defesa da ordem econômica.

6. O Abuso de Direito frente à Política Nacional das Relações de Consumo:

Segundo o postulado de CUNHA DE SÁ (Abuso do Direito. Coimbra: Almedina, 1997, p. 465-466), existem três hipóteses em que o titular do direito subjetivo poderá comportar-se, senão vejamos:

a) “O comportamento do indivíduo se coaduna com a estrutura formal do direito subjetivo exercido, bem como com o valor normativo que lhe é inerente. Nesta circunstância estar-se-ia diante de um exercício regular e legítimo de um direito.”;

b) “O comportamento do titular do direito subjetivo não se conforma com a estrutura formal de tal direito. Esta possibilidade configuraria a incidência de um ato ilícito.”;

c) “O comportamento do sujeito conforma-se com a estrutura formal do direito subjetivo que se pretende exercer, todavia, contraria o sentido normativo interno de tal direito, isto é, o valor que se apresenta como seu fundamento jurídico. Seria o caso, portanto, da caracterização do abuso de direito.”

Com efeito, se faz mister salientar que o instituto do abuso de direito não se vincula exclusivamente aos direitos subjetivos, uma vez que, deve ser aplicado a outras prerrogativas individuais, a exemplo das liberdades, faculdades, funções ou poderes, tendo em vista que também possuem um fundamento axiológico.

Assim, para se caracterizar o abuso de direito se faz necessária a identificação do seu motivo legítimo, o qual deve ser extraído, conforme leciona HELOÍSA CARPENA (Abuso de Direito nos Contratos de Consumo. Rio de Janeiro. Renovar, 2001):

"Das condições objetivas nas quais o direito foi exercido, cotejando-as com sua finalidade e com a missão social que lhe é atribuída, com o padrão de comportamento dado pela boa-fé e com a consciência jurídica dominante."

Corroborando com tal raciocínio torna-se imperioso fazer alusão a CRISTIANO CHAVES DE FARIAS (Direito Civil – Teoria Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 521) quando afirma que:

“(...) não se pode deixar de reconhecer uma íntima ligação entre a teoria do abuso de direito e a boa-fé objetiva – princípio vetor dos negócios jurídicos no Brasil (arts. 113 e 421, CC) – porque uma das funções da boa-fé objetiva é, exatamente, limitar o exercício de direitos subjetivos (e de quaisquer manifestações jurídicas)contratualmente estabelecidos em favor das partes, obstando um desequilíbrio negocial.”

A doutrina do abuso de direito está em sintonia com a atual tendência de consagração dos princípios como valores fundamentais do sistema jurídico nacional, os quais, em sua maioria, se encontram constitucionalizados, como por exemplo, em se tratando, especificamente, das relações de consumo, os princípios que norteiam a ordem econômica, previstos no art. 170 em consentâneo com os princípios gerais previstos na lei 8.078/90 como a boa-fé, harmonia e equidade.

Ademais, o abuso de direito, atualmente definido expressamente pelo Código Civil (art. 187), quando se trata de relação de consumo, pode ser identificado como um desdobramento do próprio princípio da boa-fé, relacionado à figura do consumidor que age maliciosamente em detrimento à atividade exercida pelo fornecedor de produtos ou serviços. Tal situação abre um horizonte bastante vasto no sentido de questionar se o CDC é apenas compatível para a defesa do consumidor ou se, de acordo com o caso concreto, é necessário interpretá-lo como norma geral de tutela da relação de consumo como um todo e não isoladamente, ainda que se apliquem institutos e legislações suplementares como a analogia, princípios gerais de direito e legislação ordinária interna (Código Civil, por exemplo), conforme prescreve o art. 7º da referida Lei. 

Considerando, por um lado, a vulnerabilidade do consumidor prevista no inciso I do art. 4º do CDC frente aos avanços dos mercados e suas técnicas relacionadas ao domínio da atividade exercida e o poderio econômico dos fornecedores e por outro lado, a possibilidade de má-fé e abuso de direto por parte, também, do consumidor em detrimento à própria atividade exercida pelos fornecedores, fato que tem se evidenciado nos últimos tempos, é possível sustentar que o CDC é uma norma também protetiva da relação de consumo e não somente do consumidor.       

Na interpretação de WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA (Introdução ao direito, v. II, p. 856), após fazer uma profunda análise do abuso de direito, remontando até o direito romano e passando pelas teorias de Josserand, Ripert, Planiol, Lacambra dentre outros, o ilustre pensador brasileiro conclui que:

"Temos, portanto, a seguinte escala das limitações ao exercício dos direitos: os atos ilegais, que violam os limites objetivos do direito, que infringem a letra da lei; os atos abusivos, que não violam a letra da lei, mas violam o seu espírito, a finalidade da instituição, transpondo seus limites subjetivos; os atos excessivos, exercidos nos termos da lei e dentro do espírito da instituição, mas que provocam prejuízos excepcionais a terceiros, acarretando responsabilidade puramente objetiva, sem atenção ao requisito da culpa."

Neste mesmo sentido, o saudoso mestre SILVIO RODRIGUES (Direito civil, v. 1, p. 311) é enfático quando ensina:

"Acredito que a teoria (do abuso do direito) atingiu seu pleno desenvolvimento com a concepção de Josserand, segundo a qual há abuso de direito quando ele não é exercido de acordo com a finalidade social para a qual foi conferido, pois como diz este jurista, os direitos são conferidos ao homem para serem usados de uma forma que se acomode ao interesse coletivo, obedecendo à sua finalidade, segundo o espírito da instituição.”

Não restam dúvidas quanto à necessidade de um sistema jurídico que proteja os direitos do consumidor em prol do equilíbrio que deve nortear a relação jurídica de consumo, tendo em vista que a vulnerabilidade do mesmo é uma conseqüência natural do desenvolvimento dos mercados, através do avanço dos meios de produção e das técnicas de marketing, as quais tornam o consumidor cada vez mais susceptível aos abusos contra ao seu direito de informação, saúde, segurança entre outros.

Contudo, não se pode ignorar o fato de que pode haver o desequilíbrio pelo excesso de proteção, de forma que o consumidor possa abusar de seus direitos amplamente previstos na Lei, como instrumento de vantagens e oportunismos que são extremamente lesivos à relação de consumo, cuja proteção também corresponde à finalidade da Política Nacional das Relações de Consumo.      

Sobre esse assunto, CLAUDIA LIMA MARQUES (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4ª edição, 2002, RT, São Paulo, p. 175) leciona:

“À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.” 

Não se trata da extinção da autonomia da vontade nem de mudança no conceito de negócio jurídico e nem tampouco de menosprezo à necessidade de proteção do consumidor como a parte mais fraca, mas sim de uma adequação desses conceitos à nova realidade social. Trata-se da aplicação e interpretação das normas da lei 8.078/90 nas relações de consumo, buscando um equilíbrio entre as partes, sendo esta a nova concepção, em linhas gerais, do contrato no Estado Social, em que a vontade deixa de ser o elemento principal do contrato, cedendo lugar ao interesse social.

Essa concepção corresponde a uma maior intervenção do Estado nas relações de consumo para que o princípio da boa-fé objetiva vise, acima de tudo, concretizar a função social do contrato como um princípio também, fortemente,  inerente às relações de consumo.

7. A Necessidade de Harmonização dos Interesses entre Consumidores e Fornecedores com vistas a Garantia da Ordem Econômica:

A defesa do consumidor é tanto uma garantia fundamental previsto no art. 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal de 1988, quanto um dos importantes princípios norteadores da ordem econômica previsto no art. 170 da referida Carta Política.

Ademais, a lei 8.078/90 consiste em uma legislação que conforme a Constituição cria normas que visam à proteção do consumidor, por meio de seus princípios específicos e regras de conduta, com a finalidade de equilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores.

Sendo assim, a análise sistemática do princípio constitucional da defesa do consumidor revela que se buscam dois valores essenciais: a manutenção sustentável da qualidade de vida do ser humano e o equilíbrio nas relações econômicas. A referida legislação deve ser considerada o instrumento maior desse diapasão, uma vez que, traça nos seus artigos 4º, 5º e 6º as diretrizes para implementação das políticas públicas e interpretação das normas consumeristas, possuindo como objetivo fomentar a coalizão de órgãos públicos e privados de maneira que autuem em conjunto, influenciando o modo de operação das empresas na busca de produtos que apresentem padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

Todavia, conforme observa TIAGO CARDOSO ZAPATER (In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, nº. 40, p. 190), não há hierarquia entre os preceitos condicionadores da ordem econômica, sendo a defesa do consumidor tão importante quanto à propriedade privada, a defesa do meio ambiente, a livre iniciativa, etc. Na verdade, o princípio da defesa do consumidor é um comando programático e normativo que limita a atuação dos agentes econômicos e, ao mesmo tempo, também é limitado pelos demais princípios constitucionais.

Com efeito, é importante ressaltar que deverá existir um equilíbrio entre esses princípios, de modo a não eliminar por completo qualquer deles, mas, de acordo com a razoabilidade e a proporcionalidade, ponderá-los em situações concretas, ou seja, sempre buscar a harmonização dos interesses que adequadamente atendidos possibilitam a necessária compatibilização da defesa do consumidor e do desenvolvimento econômico e tecnológico nos moldes do art. 170 da Constituição Federal.

Desta forma, a proteção do consumidor não pode se exceder a ponto de, por exemplo, prejudicar a livre iniciativa ou a propriedade privada, mas sim, deve buscar o equilíbrio das relações entre os agentes econômicos, com adoção de medidas de caráter pragmático que incentivem o progresso tecnológico e econômico associada à qualidade de vida.

ANDRÉ RAMOS TAVARES (Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2003, p.187), esclarece com muita propriedade que:

“Torna-se nítido, pois, que o denominado princípio da liberdade congrega, nas relações de consumo, duas forças que atuam em sentido opostos. Para um lado, atua a força empresarial, calcada em respectiva liberdade de iniciativa, produção e concorrência. Para outro lado, contudo, atua a liberdade do consumidor, em informar-se, realizar opções e, eventualmente, adquirir ou não certos produtos e novidades colocados no mercado de consumo e impostos pela comunicação em massa. [...] ambas devendo conviver harmonicamente, sem que uma possa sobrepor-se à outra.”

É por essa razão que a Política Nacional de Relações de Consumo tem como um de seus objetivos “a transparência e harmonia das relações de consumo”, sendo que, tal objetivo se sustenta, especialmente, no princípio da “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico”, viabilizando, assim, “os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e no equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”, conforme dispõe o inciso III do art. 4º da lei 8.078/90.

Neste sentido, é de suma importância citar mais uma vez a lição de RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR em seu trabalho intitulado “A boa-fé na relação de consumo” (In Revista de Direito do Consumidor, n. 14, pp. 20 a 27, abr./jun. 1995):

“A norma-objetivo do art. 4º, de caráter nitidamente protetivo do consumidor, tem seu contraponto no princípio da harmonização de interesses conflitantes, de tal sorte que aquela necessidade de proteção deve ser compatibilizada com a de desenvolvimento econômico e tecnológico.”                              

No Estado Democrático de Direito não se pode vislumbrar poderes absolutos, exercidos de forma ilimitada, assim como é insusceptível de direitos ou garantias exercidos de maneira indiscriminada e sem levar em consideração o interesse social que deve ser o horizonte para o qual deve caminhar o Estado na sua função dirigente, afinal o art. 3º da Constituição Federal prescreve que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, sendo que não é coerente desvincular tais objetivos dos princípios que constituem a ordem econômica (art. 170), os quais devem ser interpretados harmonicamente para a consecução de sua finalidade.

Portanto, a harmonia dos interesses dos agentes econômicos que compõem as relações de consumo é tão relevante quanto à necessidade de proteção do consumidor, através do reconhecimento de sua vulnerabilidade e a tutela de seus direitos por meio de uma sistematização lógica. Isso significa que se deve evitar o ultra-protecionismo em detrimento do desenvolvimento econômico e tecnológico, os quais também são condições necessárias aos objetivos da República como fora visto, uma vez que, não se pode garantir o desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza sem a produção de riquezas, assim como, também, não se pode promover o bem de todos sem o incentivo aos meios materiais que propiciam quantidade, qualidade, facilidade e eficiência, através da modernização de todos os setores da sociedade que compreendem desde os institutos jurídicos até os meios de produção.

Equivocam-se aqueles que pensam que a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais associada à simples concepção de justiça encontram a sua razão de ser na riqueza ou nos meios para a sua produção, uma vez que, o problema está na distribuição da mesma, ou seja, não basta somente o fornecedor ou o consumidor cumprirem seus respectivos papéis na economia de mercado, cabe ao Estado promover a sua organização e a distribuição de riquezas com vistas ao interesse de todos.        

O ultra-protecionismo do consumidor, que significa, em última análise, uma liberdade ilimitada de ser e agir (aqui se inclui o abuso de direito do consumidor) é tão prejudicial quanto à impunidade em relação aos abusos do poder econômico praticados pelos fornecedores no exercício de suas atividades, pois ambos desequilibram a relação, comprometendo, acima de tudo, o interesse social, o qual, por excelência, deve se sobrepujar a qualquer outro interesse de caráter privado, seja de um lado ou de outro. 

Por fim, não se pode deixar de sopesar que tudo que compromete a equidade na relação jurídica de consumo deve ser rechaçado à luz da harmonização entre a lei 8.078/90 (suas regras e princípios), outras legislações compatíveis e a própria Constituição Federal no que concerne aos seus princípios dirigentes, especialmente, os relacionados à ordem econômica, tendo em vista a possibilidade da aplicação de institutos como a analogia e os princípios gerais de direito, que inclusive se encontram expressamente dispostos na referida lei consumerista (art. 7º), para a integração de interesses em prol da relação de consumo como um todo e não isoladamente considerada.   

8. Conclusão:

O mercado de consumo é tão imprescindível para o sistema capitalista como o oxigênio o é para a sobrevivência do ser humano, de forma que tais aspectos vitais devem estar sempre equilibrados em prol da longanimidade seja do homem, seja da sociedade organizada como fruto de um sistema político-econômico.

Partindo desse pressuposto, vislumbra-se a importância, quanto aos efeitos e ao alcance da Lei 8.078/90, que devem ser produzidos na sociedade brasileira ao criar normas de proteção às relações de consumo com vistas ao equilíbrio necessário ao bem-estar social. 

A compreensão teleológica que se deve ter da lei consumerista só é possível quando a interpretação parte da Constituição Federal como o único referencial político, econômico e social, que vincula todo e qualquer sistema normativo, sendo a harmonização seu principal instrumento.

Compreendida sua razão de ser, automaticamente, torna-se necessário o pragmatismo a fim de que a concepção jurídico-social formada não seja apenas um ideal, mas interfira nas relações humanas concretizando a justiça, a dignidade e a sobrevivência de maneira equilibrada e eqüitativa.

Doravante, a lei 8.078/90, também denominada de Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, precisa ser visto como uma norma de ordem pública e interesse social, cuja extensão deve ultrapassar os interesses privados de quaisquer dos partícipes, impondo diretrizes, as quais em consentâneo com a Constituição Federal, buscam o bem-estar social relacionado à compatibilização da necessidade de se defender a dignidade e sobrevivência do homem social (cidadão) com o imprescindível desenvolvimento econômico e tecnológico, através da produção de riquezas. 

Com efeito, é cediça a relevância jurídica, social e econômica de se coibir os abusos de quem detém os meios de produção, através de um sistema de normas que predeterminem condutas a serem consideradas ilícitas, bem como garantam o exercício de direitos, tudo com base na boa-fé, visando à proteção do mais fraco (aquele que está submetido aos meios de produção e suas técnicas de marketing, porém elemento precípuo à produção da riqueza como condição fundamental ao sistema econômico) como forma de equilíbrio da própria relação jurídica.

Contudo, além do princípio da defesa do consumidor, devem ser considerados outros princípios que constituem a ordem econômica prevista no art. 170 da Carta Magna como a livre iniciativa, a propriedade privada, o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas e sediadas no País, bem como princípios fundamentais como a valorização do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF/88), a garantia do desenvolvimento nacional e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I e II, CF/88).

Sendo assim, é evidente o dualismo de interesses privados que se chocam quando tais princípios são interpretados isoladamente, sem que se busque uma harmonização entre os mesmos, para que não haja exclusão de um em função do outro quanto a sua aplicabilidade e alcance.

A Constituição brasileira é fundada no equilíbrio entre seus princípios quando permite e protege o desenvolvimento econômico e tecnológico como Carta Política de uma sociedade capitalista assim como também garante a dignidade da pessoa humana, o respeito às diferenças e a promoção do bem-estar de todos como Lei social em prol da sobrevivência humana frente à voracidade do próprio sistema econômico. 

Neste sentido, o mestre J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. São Paulo: Almedina, 1997, p. 1.168) define com muita propriedade:

“Considerar a Constituição como uma ordem ou sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significa esquecer, desde logo, que ela é, muitas vezes, o resultado de um compromisso entre vários actores sociais, transportadores de idéias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos e contraditórios (...). Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma ‘lógica do tudo ou nada’, antes podem ser objeto de ponderação e concordância prática o seu ‘peso’ e as circunstâncias do caso.”

Com efeito, em se tratando, especificamente, das relações de consumo, quando não se usa “a lógica do tudo ou nada” na interpretação dos princípios aplicáveis seja na lei 8.078/90, seja, principalmente, na Constituição Federal, torna-se perceptível a necessidade de se compatibilizar os interesses dos partícipes, de forma que um não se sobreponha em prejuízo do outro.

A defesa da livre iniciativa, da livre concorrência, da propriedade privada dos meios de produção e incentivo ao desenvolvimento econômico e tecnológico não devem ser aplicados somente como instrumento de domínio econômico (abusos do poder econômico) em detrimento da dignidade da pessoa humana, defesa do consumidor e bem-estar social.

Por sua vez, a defesa do consumidor como forma de se alcançar a dignidade da pessoa humana com vistas ao bem-estar social, não deve ser obstáculo ao desenvolvimento econômico e tecnológico com base na necessidade de se defender a propriedade privada dos meios de produção e a livre iniciativa econômica.

É nesse diapasão que o abuso de direito nas relações de consumo como sendo o comportamento lesivo ao direito alheio e ao interesse coletivo, pois não é exercido de acordo com a finalidade social para a qual foi conferido, torna-se relevante para a compreensão da harmonização de interesses não somente como razão lógica constitucional, mas também como objetivo fundamental da Política Nacional das Relações de Consumo previsto no art. 4º, inciso III da lei 8.078/90. 

O abuso de direito não encontra espaço dentre as diversas disposições expressas que compõem a lei consumerista, salvo quando o art. 7º da referida lei, revelando seu caráter dinâmico, autônomo, interdisciplinar e sistêmico, recorre à analogia, princípios gerais de direito e outras legislações ordinárias, quando compatíveis, como instrumentos de consecução de sua finalidade que deve ser a defesa do consumidor sem comprometer a boa-fé, a harmonia e a equidade que deve prevalecer na relação entre consumidor e fornecedor, sempre com base na defesa da ordem econômica prevista no art. 170 da Carta magna.

Considerando que o abuso de direito é um desdobramento da boa-fé em qualquer relação jurídico-contratual e que vai muito além do prejuízo inter partes, não é absurdo sustentar que tanto o fornecedor através de práticas ou cláusulas abusivas se justificando em seu direito de livre iniciativa e propriedade sobre os meios de produção, quanto o consumidor se utilizando da proteção especial definida em lei, inclusive com a presunção de vulnerabilidade e hipossuficiência, em razão de vantagens econômicas, podem cometer abuso de direito prejudicando-se entre si, sendo que, em relação ao consumidor, a dificuldade e a necessidade de cautela de se identificar tal patologia jurídica são latentes.   

Para fins de ilustração, deve ser considerado abuso de direito (má-fé) não somente o fato de uma empresa de consórcio, com intuito de locupletar-se, não proceder à devolução das parcelas pagas ao consumidor-consorciado (deduzidos os valores referentes à taxa de administração entre outras), quando da rescisão do contrato, como também o fato de um consumidor-comprador, utilizando-se do direito de arrependimento previsto no art. 49 da lei consumerista, devolve o bem, objeto do contrato, bastante avariado ou desgastado, o que sem sombra de dúvidas, causa tremendos prejuízos ao fornecedor, podendo inclusive comprometer sua permanência no mercado, caso haja repetidas situações como esta em razão de uma interpretação restritiva que se faça do referido dispositivo legal em prol somente dos interesses dos consumidores.     

A teoria do risco do negócio, bastante em voga, para muitas vezes justificar uma interpretação absolutamente favorável ao consumidor de determinadas disposições previstas na lei 8.078/90, como a acima citada, de forma alguma, deve ser utilizada em detrimento à razoabilidade que se deve buscar muitas vezes com vistas ao equilíbrio e equidade nas relações de consumo, que têm como pressuposto a necessidade de tanto o fornecedor quanto o consumidor agirem de boa-fé no exercício regular de seus direitos.

Com efeito, é com base numa interpretação teleológica do art. 4º do referido diploma legal é que se vislumbra a necessidade de proteção do consumidor sem exageros ou exorbitâncias que comprometam outros valores ou princípios que também possuem relevância para o desiderato constitucional, tendo em vista o interesse social que deve prevalecer acima de tudo.

Portanto, a verdadeira razão de ser do presente trabalho consistiu em vislumbrar uma segunda concepção acerca da intenção do legislador ao cumprir o comando constitucional previsto no art. 5º, XXXII, à luz de uma interpretação dos princípios constitucionais associada a uma compreensão lógico-sistemática, evidenciando, assim, a importância do Poder Judiciário, quando no caso concreto (no qual se vislumbra abuso de direito tanto do fornecedor quanto do consumidor), o Magistrado se utilizando do livre convencimento motivado, pode, através do art. 7º da lei 8.078/90 (princípios gerais do direito, analogia e outras legislações aplicáveis) bem como de uma interpretação racional, porém não menos harmônica, dos princípios constitucionais, especialmente os previstos no art. 170, buscar uma solução razoável com base na necessidade de boa-fé, equilíbrio e equidade entre os interesses dos partícipes da relação de consumo, cujos ditames de ordem pública e interesse social devem sobrepujar acima de tudo e de todos.

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Data de elaboração: dezembro/2006

 

Como citar o texto:

BRANDÃO, Caio Rogério da Costa..O abuso de direito frente à finalidade do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 5, nº 263. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-do-consumidor/1922/o-abuso-direito-frente-finalidade-codigo-defesa-consumidor-lei-8-07890-. Acesso em 14 jul. 2008.

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