Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional - PEC 471/2005 - com o propósito de outorgar a delegação definitiva dos Serviços Notariais e de Registro aos atuais substitutos.

Os Serviços Notariais e de Registro são serviços eminentemente públicos, prestados pelo Estado sob a forma de delegação (art. 236, caput, CF).

Nos regimes constitucionais anteriores, a delegação desses serviços era uma prática privilegiadora, onde os administradores públicos outorgavam os serviços notariais a parentes e a amigos próximos.

O favorecimento aos parentes é uma prática bastante conhecida dos brasileiros e recebe o nome de nepotismo. A origem etimológica da palavra nepotismo deriva do latim “nepos” que significa neto, ou “nepotis”, cujo significado é sobrinho (1). Assim, o nepotismo sempre foi reconhecido como a existência de favorecimento aos parentes em detrimento dos demais membros da sociedade.

 

Buscando acabar com essa prática imoral, o constituinte originário de 1988, dando efetivo cumprimento ao princípio constitucional da igualdade, da impessoalidade, e sobremaneira ao princípio da moralidade, determinou a realização de concursos públicos para o provimento das funções notariais e registrais, como prevê o artigo 236, § 3° da Constituição Federal.

Nesse aspecto – exigência de concurso público para provimento dos serviços notariais e de registro - a Constituição de 1988 não vem sendo adequadamente cumprida.

Isso porque, passados quase 18 anos após a Constituição de 1988 fixar que o concurso público é o instrumento mais democrático para se preencher os cargos e empregos públicos, em inúmeros Estados da federação não foi realizado nenhum concurso público. E mais, em afronta ao Poder Constituinte Originário foi aprovada na CCJ – Comissão de Constituição e Justiça -, a PEC 471/2005, que agride claramente princípios constitucionais explícitos, e ainda o art. 60, § 4°, inc. IV da CF.

A exigência de concurso público para se obter a delegação nas funções notariais e registrais como prevê o artigo 236, § 3° da CF trata-se de norma constitucional específica, que decorre e se interliga ao art. 37, “caput”, da CF, dando cumprimento concreto aos princípios da moralidade e da eficiência, e que, ainda, se embriona na Carta Magna em seu art. 5º, “caput”, ao materializar o princípio da igualdade, democratizando o acesso de todos os cidadãos às funções públicas, respeitadas as exigências de qualificação.

O princípio da igualdade se irradia para todo o texto da carta magna, de modo que qualquer norma oriunda do poder constituinte derivado, alterando o conteúdo do direito à igualdade, é inconstitucional por ferir o artigo 60, § 4°, inc. IV da CF. Dessa  forma, aprovando a PEC 471/2005 estará o constituinte derivado, por vias  transversas, esvaziando o conteúdo do direito à igualdade – um dos  direitos e garantias fundamentais – que está arrolado como cláusula pétrea no  artigo 60, § 4° da CF. 

Esse dispositivo constitucional – art. 60, § 4° da CF – encerra limites materiais à atividade do legislador constituinte derivado, e é uma garantia contra a afronta aos direitos individuais, dentre eles o direito à igualdade (CF, art. 5º, caput). De ver-se, portanto, que o princípio da igualdade é cláusula pétrea, estando o poder constituinte derivado subordinado a essa limitação.

Vejamos agora o voto do relator referente ao frágil e insustentável parecer aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania relativamente à PEC acima transcrita:

    

“A proposta de emenda à constituição em exame atende aos requisitos constitucionais do § 4º do art. 60.

Não vislumbramos em suas disposições nenhuma tendência para abolição da forma federativa do Estado, do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação dos Poderes ou dos direitos e garantias individuais. (grifamos)

Não constatamos quaisquer incompatibilidades com a alteração proposta e os demais princípios e normas fundamentais que alicerçam a Constituição da República Federativa do Brasil.” ( 2 )

Ora, conforme se aduziu acima, e ao contrário do exposto no referido parecer, a PEC 471/05 além de ferir os princípios da impessoalidade e da moralidade, fere claramente os direitos e garantias individuais dos cidadãos brasileiros, uma vez que colide com o princípio da igualdade.

O STF, de forma reiterada, tem decidido que é obrigatória a realização de Concurso Público, de provas e títulos, para a Delegação das funções notariais e registrais. Entre dezenas de decisões, veja-se a seguinte:

“1. Depende da realização de concurso público de provas e títulos a investidura na titularidade de serventia cuja vaga tenha ocorrido após a promulgação da Constituição Federal de 1988.  (grifamos)

2. Direito adquirido ao provimento, por parte de quem haja preenchido, como substituto, o tempo de serviço contemplado no art. 208 da EC-01/69. Inexistência. (grifamos)

Recurso extraordinário conhecido e provido para cassar a segurança. Prejudicado o recurso da segunda recorrente.” ( 3 )

 

Não bastasse a Constituição fixar os princípios constitucionais da igualdade, da moralidade e da impessoalidade, a sociedade vem dando claras demonstrações de que o privilégio, ou o apaniguamento a determinadas classes sociais ou categoriais profissionais (entidades de classe e seus integrantes) deve ser banido.

Não por outro motivo que, atendendo a essa determinação constitucional e ao clamor social, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público acabaram com o nepotismo no âmbito no Poder Judiciário e do Ministério Público.

Na contramão de todos esses acontecimentos caminha a PEC n° 471/2005, através da qual o Congresso Nacional agasalhará no mais importante texto legal do País, senão a volta do nepotismo, mas com certeza o privilégio e o favorecimento. 

É de se frisar que os atuais substitutos respondem pelo serviço até que seja realizado o concurso público. Tais substitutos são, na sua imensa maioria, advogados e possuem vasto conhecimento jurídico seja na área notarial e registral, seja em outros ramos do direito. Dessa forma, nada os impedem de participarem do concurso publico juntamente com todos os demais candidatos. E mais, possuindo larga experiência na área, os mesmos lograrão melhores resultados do que os candidatos que não trabalham nos cartórios. Acresce-se ainda, que apesar de ser uma atividade eminentemente técnico-jurídica, a Lei n° 8.935/94 assegura àqueles que possuem mais de 10 anos de trabalho em cartório o direito de participar do concurso, independentemente de ser bacharel em direito. Por todo o exposto não é forçoso concluir: Não bastaram as várias décadas de nepotismo. Querem agora o privilégio de efetivar-se na função sem passar pela via constitucional e democrática do concurso público. NOTAS: 1 - TORRINHA, Francisco. Dicionário Latino-Português. 3a ed. Universidade     do Porto/Junta Nacional de Educação. Edições Marânus, 1945. 2 - site oficial da Câmara dos Deputados. 3 - STF – RE 191.794/RS – Rel. Min. Maurício Corrêa – 2ª Turma, V.U. –     j. 25.11.1997 – DJU 06.03.1998.

 

Data de elaboração: janeiro/2008

 

Como citar o texto:

SILVA, Adriano Joaquim da..Do nepotismo ao privilégio: considerações acerca da inconstitucionalidade da PEC 471/05. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 9, nº 505. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-notarial-e-registral/1933/do-nepotismo-ao-privilegio-consideracoes-acerca-inconstitucionalidade-pec-47105. Acesso em 1 jan. 2009.

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