Para o Direito, prova é todo elemento que pode contribuir para o convencimento do juiz a respeito da veracidade do que foi alegado pelas partes.

 

Em regra, provam-se as afirmações sobre os fatos. Em situações excepcionalíssimas, pode ser necessário que se prove também o direito alegado.

Assim dispõe o art. 337 do CPC: “A parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz”. E o art. 14 da LICC, por sua vez, prevê que “Não conhecendo a lei estrangeira, poderá o juiz exigir de quem a invoca prova do texto e da vigência”.

Considerando tais normas legais como exceção ao aforismo iura novit curiam, segundo o qual o juiz é obrigado a conhecer as leis que integram o ordenamento jurídico do local onde exerce suas funções, uma situação, no mínimo curiosa, poderá resultar da aplicação dos referidos artigos:

Na hipótese de o teor e a vigência do direito estrangeiro não estarem suficientemente comprovados nos autos, como deverá o juiz decidir uma causa cuja solução dependa da aplicação deste direito?

A análise dessa situação é o objetivo do presente artigo.

2. ÔNUS DA PROVA DO DIREITO ESTRANGEIRO

Corolário do brocardo latino quod non est in actis non est in mundo (“o que não está nos autos não está no mundo”), o chamando princípio da necessidade da prova determina que “os fatos afirmados pelas partes hão de ser suficientemente provados no processo, não sendo legítimo que o juiz se valha de seu conhecimento privado para dispensar a produção da prova de algum fato de cuja existência ou veracidade esteja ciente por alguma razão particular.” (BAPTISTA, Ovídio. Teoria Geral do Processo Civil. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 302).

Contudo, é preciso ter em mente que, no ordenamento jurídico brasileiro, este princípio não se aplica à prova de direito estrangeiro. Isso porque, ao contrário do que ocorre em outros ordenamentos jurídicos (na Inglaterra, por ex.), aqui o direito estrangeiro não é considerado fato.

As regras de Direito Internacional Privado vigentes em nosso país, tais como as contidas na Lei de Introdução ao Código Civil, são normas cogentes. O juiz tem que as aplicar, exceto se atentatórias à ordem pública, à soberania nacional e aos bons costumes (art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil).

Ainda que a parte interessada não demonstre o teor e a vigência do direito alegado, tal fato não será empecilho à solução da causa caso o próprio juiz tenha ciência de seu exato teor e vigência.

Se a lei estrangeira for desconhecida pelo juiz, deverá o mesmo diligenciar na busca de seu teor. Pode, ainda, determinar às partes que produzam essa prova.

Na verdade, a aplicação do direito estrangeiro não depende nem mesmo de sua invocação por uma das partes.

Nesse sentido, o Código de Bustamante, ratificado por nosso País e promulgado pelo Decreto n° 18.871, de 13.8.29, dispõe em seu art. 408: “Os juízes e tribunais de cada Estado contratante aplicarão de ofício, quando for o caso, as leis dos demais, sem prejuízo dos meios probatórios a que este capítulo se refere”. E, em seu art. 410: “na falta de prova ou se, por qualquer motivo, o juiz ou o tribunal a julgar insuficiente, um ou outro poderá solicitar de ofício pela via diplomática, antes de decidir, que o Estado, de cuja legislação se trate, forneça um relatório sobre o texto, vigência e sentido do direito aplicável.

Entretanto, suponhamos que o juiz não conheça o direito estrangeiro que dá supedâneo à pretensão posta nos autos e, apesar de ter diligenciado na busca de tal texto, não logrou êxito em obtê-lo. A parte interessada tampouco se desincumbiu satisfatoriamente de seu ônus de comprovar o teor e a vigência da norma estrangeira.

Nessa situação, como deverá o juiz julgar a causa, uma vez que o ordenamento pátrio veda o non liquet (art. 126 do CPC)?

3. INSUFICIÊNCIA DE PROVA DO DIREITO ESTRANGEIRO. COMO DEVE O JUIZ PROCEDER NESTE CASO?

No direito nacional e no comparado várias são as soluções jurisprudenciais e doutrinárias para a situação que se apresenta, as quais podem ser reunidas em três grupos:

1ª. Deverá o juiz rejeitar a pretensão da parte a quem aproveitaria a aplicação do direito estrangeiro.

2ª. Deverá o juiz aplicar o direito que seria “provavelmente vigente” no sistema estrangeiro.

3ª. Deverá o juiz aplicar a lei nacional, presumindo-a idêntica à estrangeira.

A primeira solução aventada: a falta de comprovação do direito estrangeiro implicaria na improcedência da pretensão da parte a quem aproveitaria a aplicação desse direito, já foi adotada, por exemplo, pela Justiça dos Estados Unidos, no julgamento do caso Leo WALTON, Plaintiff v. Arabian American Oil. Company.

Naquela ocasião, a Corte Federal de Apelação dos Estados Unidos salientou que “The general federal rule is that the ‘law’ of a foreign country is a fact which must be proved”.

Contudo, tal solução não encontra guarida em nosso ordenamento jurídico.

Isso porque, como dito anteriormente, no Brasil o direito estrangeiro não é considerado fato, mas direito, sendo certo que “o juiz não se exime de sentenciar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”. (Art. 126 do CPC).

Outros autores, por sua vez, defendem que na falta de comprovação do direito estrangeiro o juiz deve aplicar o direito que seria “provavelmente vigente” naquele sistema jurídico.

Para essa corrente, se o magistrado não conseguir o teor do direito estrangeiro que seria aplicável ao caso sob sua jurisdição, deverá socorrer-se da norma que entenda ser a provavelmente vigente.

Assim, "Se o juiz não consegue obter uma nova edição do Código Civil boliviano, ele tem que supor que o texto de 1830 está em vigor. (...) De acordo com este critério, se o juiz não consegue provar o common law dos Estados Unidos, deverá aplicar o direito do qual ele deriva: o common law inglês" (MARTIN Wollf, Derecho Internacional Privado, trad. Esp. de José Rovira y Ermengol, Barcelona: Labor, 1936, p. 140).

O Prof. Alexandre Freitas Câmara, citando o ilustre jurista Jacob Dolinger, registra que “em recentíssima manifestação sobre o tema, um dos mais ilustres juristas brasileiros afirmou que, a seu juízo, a preferência deve ser dada à solução preconizada por Martin Wollf, aplicando-se o direito ‘provavelmente vigente’, mas que isto só deveria ser feito quando a probabilidade fosse muito forte. Em caso contrário, dever-se-ia optar pela aplicação da lei brasileira (Jacob Dolinger, “Aplicação, Prova e Interpretação do Direito Estrangeiro: Um Estudo Comparado do Direito Internacional Privado”, in Revista de Direito Renovar, vol. V, 1996, p. 43).” (CÂMARA, Alexandre. Lições de Direito Processual Civil. 9. ed. V. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris. p. 398).

Por último, há os que entendem que a melhor solução para os casos em que o juiz não consiga o teor do direito estrangeiro seria a aplicação da lei nacional, presumindo-a idêntica à estrangeira.

Para essa escola, que conta com a maior adesão no Brasil e no exterior, inexistindo prova sobre o direito estrangeiro, e como o juiz tem que julgar a causa, ele deverá aplicar a lei nacional, presumindo-a idêntica à estrangeira.

A justificativa para tal proceder seria a presunção de que todos os sistemas legislativos são inspirados por princípios comuns. Logo, como o ordenamento jurídico desconhece lacunas e sendo vedado ao juiz solucionar a causa pelo non liquet, deve o magistrado aplicar a lex fori, a qual se presume de teor semelhante à lei estrangeira desconhecida.

Nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como se depreende do seguinte aresto:

“Direito estrangeiro. Prova. Sendo caso de aplicação de direito estrangeiro, consoante as normas do Direito Internacional Privado, caberá ao Juiz fazê-lo, ainda de ofício. Não se poderá, entretanto, carregar à parte o ônus de trazer a prova de seu teor e vigência, salvo quando por ela invocado. Não sendo viável produzir-se essa prova, como não pode o litígio ficar sem solução, o Juiz aplicará o direito nacional”. (REsp 254544/MG - STG - TERCEIRA TURMA

Ministro Eduardo Ribeiro - DJ 14/08/2000 p. 170) (grifo acrescido)

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conclusão, temos que no ordenamento jurídico pátrio o direito estrangeiro não é tratado como fato, mas sim como direito.

Dessa forma, a aplicação do direito estrangeiro incidente sobre determinada causa não fica ao arbítrio do juiz. É um imperativo, salvo se tratar-se de norma atentatórias à ordem pública, à soberania nacional e aos bons costumes.

Ainda que a parte interessada não demonstre o teor e a vigência do direito estrangeiro alegado, deve o magistrado diligenciar na busca de seu teor.

Contudo, caso o direito estrangeiro com base no qual deveria ser julgada a causa não restar suficientemente comprovado, apesar de todos os esforços do juiz e das partes nesse sentido, três são as soluções possíveis: 1ª. deverá o juiz rejeitar a pretensão da parte a quem aproveitaria a aplicação do direito estrangeiro; 2ª. deverá o juiz aplicar o direito que seria “provavelmente vigente” no sistema estrangeiro; ou, ainda, 3ª. deverá o juiz aplicar a lei nacional, presumindo-a idêntica à estrangeira.

A primeira solução listada não se aplica ao ordenamento jurídico brasileiro, em razão da norma insculpida no art. 126 do CPC, uma vez que aqui o direito estrangeiro não é considerado fato.

Dentre as outras duas, a que conta com a maior adesão no Brasil e no exterior é aquela que defenda a aplicação da lei nacional, presumindo-a idêntica à estrangeira.

Também a jurisprudência pátria majoritariamente adota esta solução, que tem como principal justificativa a presunção de que todos os sistemas legislativos são inspirados por princípios comuns.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Código de Processo Civil. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

_______. Legislação de Direito Internacional. 2. ed. São Paula: Saraiva, 2009.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 9. ed. V. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

GOMES, José Jairo. Lei de Introdução ao Código Civil em Perspectiva. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

MARTIN Wollf. Derecho Internacional Privado, trad. esp. de José Rovira y Ermengol, Barcelona: Labor, 1936.

NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 36. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

SILVA, Ovídio A. Batista da; GOMES, Fábio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

 

 

 

 

Data de elaboração: janeiro/2010

 

Como citar o texto:

CAMPOLINA, Flávio de Paula ..Aplicação e prova do direito estrangeiro na jurisdição brasileira. . Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/2070/aplicacao-prova-direito-estrangeiro-jurisdicao-brasileira-. Acesso em 13 dez. 2010.

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