RESUMO

 

O artigo busca analisar o instituto da imunidade parlamentar em seus pontos proeminentes e, frente às inovações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 35 de 2001, tecer uma digressão objetiva a respeito da imunidade parlamentar, tanto em seu aspecto material quanto formal. O texto constitucional concernente ao instituto, alterado pela citada Emenda, é apreciado comparativamente ao corpo das Constituições Brasileiras precedentes. Delineia-se um escorço histórico objetivando visualizar uma seqüência do instituto no âmbito do direito internacional e nacional e, assim, esclarecer o entendimento teórico quanto ao tema. O estudo, concomitantemente à apreciação histórica, apresenta a fundamentação doutrinária e jurisprudencial do instituto da imunidade parlamentar.

Palavras - chaves: imunidade parlamentar, material, formal, separação de poderes, Emenda Constitucional n.º 35.

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

Na estrutura que o Estado Democrático de Direito implementa, na medida em que busca a materialização de fins essenciais ao corpo social, alguns aspectos se destacam, a exemplo do principio da separação de poderes. Assim, mecanismos que se conjugam para a proteção de tais aspectos adquirem, igualmente, fundamental importância no arcabouço jurídico pátrio. Nessa situação, tem-se o instituto das imunidades parlamentares.

Ao longo da história constitucional brasileira, o instituto da imunidade parlamentar sofreu diversas alterações. O objetivo original seria não permitir ingerências arbitrárias de outros poderes na esfera do Poder Legislativo. Contudo, seu modelo constitucional, por diversas vezes, representou um fomentador institucionalizado da impunidade. Na esteira da insatisfação social advinda da atuação do corpo legislativo, diversos setores da sociedade brasileira propugnaram modificações na estrutura vigente - resultado verificado com as alterações promovidas pela Emenda Constitucional nº 35 de 2001.

Desse modo, a partir do recorte proposto, atribui-se enorme importância ao estudo dos conceitos e institutos que se moldaram na praxe jurisprudencial e à verificação das nuances históricas que moldaram o instituto da imunidade parlamentar até a forma aplicada atualmente. Nesse aspecto, na realidade jurídica brasileira, delineia-se a compreensão do objeto de estudo a partir da verificação do entendimento do Supremo Tribunal Federal, bem como da consideração teórica quanto ao tema.

Evidentemente, na proposta de compreensão do objeto de estudo, não se prescinde de uma análise epistemológica da Constituição Federal. Forma-se, por assim dizer, uma operação metodológica consubstanciada na observação conjunta da teoria, do discurso jurisprudencial da Corte Suprema e da dogmática pátria.

1 O INSTITUTO DA IMUNIDADE PARLAMENTAR: ORIGEM E FUNDAMENTOS

Historicamente, o instituto da imunidade parlamentar surgiu na Inglaterra, como medida de defesa contra a Coroa, especialmente durante a época das dinastias dos Tudor e dos Stuart. Inicialmente, abrangia apenas a liberdade de opinião - freedom of speech - instituída por lei em 1512. Tal lei determinou que todo processo dirigido contra parlamentar em razão de qualquer declaração sobre matéria em tramitação no Parlamento seria considerado nulo em seus efeitos. Buscava-se, dessa forma, proteger a liberdade na deliberação parlamentar.

Posteriormente, por volta de 1603, seu conceito recebeu considerável dilargamento por meio de uma nova prerrogativa, consagrada na doutrina inglesa com a expressão freedom from arrest, cujo principal objetivo era impedir a prisão por dívidas - prática muito usual à época, sendo notório o caso da prisão de um dos membros da Câmara dos Comuns, Sir Tomas Shirley. Na ocasião, determinou-se a soltura do parlamentar. Não sendo atendida, a Câmara expediu mandado para prender o próprio guardião carcerário (Prison Warden) . A prerrogativa alcançou outro patamar, de modo que o congressista passou igualmente a ser protegido contra prisões arbitrárias e processos tendenciosos.

As imunidades parlamentares surgiram como corolário da defesa da independência do parlamento no sistema constitucional inglês, estabelecendo-se firmemente a partir do advento do Bill of Rights em 1688 . Contudo, na esteira de sua finalidade libertadora, o instituto se difundiu proficuamente, vindo a se consolidar historicamente no Direito Público Europeu .

O contexto sociopolítico da época evocava mudanças paradigmáticas, revoluções que se subsidiaram nos fundamentos teóricos de distintos pensadores, tais quais Charles-Louis de Secondat, senhor de La Bredé e Barão de Montesquieu, ou simplesmente Montesquieu. Em sua obra “O Espírito das Leis”, publicada em 1748, Montesquieu lançou bases teóricas fundamentais a respeito da separação de poderes do Estado. Sabe-se que Platão e Aristóteles, à época da Grécia Antiga, incursionaram pelo tema, porém, a teoria encontrou o momento de difusão apropriado somente no séc. XVIII. Essa influência recaiu sobre a totalidade da experiência democrática ocidental.

Nesse pensamento, Montesquieu advertia que era essencial que o poder político estivesse devidamente separado, a fim de evitar a perniciosidade advinda de sua concentração. Em sua análise, todos aqueles que detêm parcela mínima de poder tendem ao seu abuso. Essa separação se daria na estrutura proposta ao Estado: definindo-se o Poder Legislativo, Executivo e Judiciário; e delimitando-se as respectivas esferas de funções típicas e atípicas das instituições.

Assim, a idéia de separação dos poderes legitima-se na medida em que busca concretizar os meios para que cada esfera governamental possa exercer suas atribuições sem interferências indevidas dos membros dos demais poderes. E, para consolidar a independência entre os poderes – sem independência não há efetiva separação – concebeu-se garantias específicas aos membros das instituições estatais que, eventualmente, poderiam ser utilizadas em face de seus pares. Nesse aspecto, figuram-se as imunidades parlamentares, as quais se estabelecem normativamente como instrumento essencial à independência e liberdade dos membros do Parlamento.

A teoria compreende o instituto da imunidade em duas esferas distintas de aplicabilidade, quais sejam, a imunidade material e a imunidade formal. Desse modo, considerando a sua finalidade constitutiva, pode-se definir o instituto da imunidade como uma garantia funcional, eivada de prerrogativas delineadas para a proteção do mandato legislativo e de outros direitos consectários.

A imunidade material, chamada pela doutrina alemã de indenidade parlamentar, garante aos membros do Legislativo uma margem de liberdade de atuação sem interferência de óbices de natureza legal e política decorrentes de processos judiciais tendenciosos ou da perseguição de governo “desejoso de desembaraçar-se de um opositor perigoso” . Por conseguinte, permite-se que deputados e senadores exerçam suas funções, a partir de suas opiniões, palavras e votos, da forma mais eficiente.

Observa-se que a imunidade material restringe-se aos atos cometidos no exercício das atribuições parlamentares, ou seja, deve existir nexo entre o pronunciamento e a condição de agente político. Nesse sentido:

A garantia da imunidade material estende-se ao desempenho das funções de representante do Poder Legislativo, qualquer que seja o âmbito dessa atuação – parlamentar ou extraparlamentar – desde que exercida ratione muneris .

Ressalta-se que a imunidade material não encontra delimitação temporal. Desse modo, sendo as opiniões, palavras e votos proferidos à época do mandato legislativo e verificando-se que guardam relação com o exercício da função, o parlamentar jamais responderá por tais pronunciamentos – diz-se caracterizar uma prerrogativa perpétua . Igualmente ressalvada a necessidade do nexo entre o pronunciamento proferido com a função exercida, as prerrogativas decorrentes da imunidade não se delimitam ao espaço da Casa a que pertence o parlamentar. Observa-se decisão do Ministro Carlos Ayres Britto:

A inviolabilidade não se restringe ao âmbito espacial da Casa a que pertence o parlamentar, acompanhando-o muro a fora ou externa corporis, mas com uma ressalva: sua atuação tem que se enquadrar nos marcos de um comportamento que se constitua em expressão do múnus parlamentar, ou num prolongamento natural desse mister. Assim, não pode ser um predicamento intuitu personae, mas rigorosamente intuitu funcionae, alojando-se no campo mais estreito, determinável e formal das relações institucionais públicas, seja diretamente, seja por natural desdobramento; e nunca nas inumeráveis e abertas e coloquiais interações que permeiam o dia-a-dia da sociedade civil .

Nesse mesmo sentido, destaca-se passagem da decisão do Ministro Celso de Mello no Agravo de Instrumento de n.º 401.600/DF:

Impõe-se registrar, por necessário, na linha dos precedentes referidos, que o exercício do mandato atua como verdadeiro suposto constitucional, apto a legitimar a invocação dessa especial prerrogativa jurídica, destinada a proteger, por suas “opiniões, palavras e votos”, o membro do Poder Legislativo, independentemente do “locus” em que proferidas as expressões eventualmente contumeliosas, ainda que no contexto de uma entrevista jornalística.

Isso porque a inviolabilidade emergente da cláusula inscrita no art. 53, “caput”, da Constituição da República, na redação dada pela EC nº 35/2001, não sofre condicionamentos normativos que a subordinem a critérios de espacialidade. É irrelevante, por isso mesmo, para efeito de legítima invocação da imunidade parlamentar material, que o ato por ela amparado tenha ocorrido, ou não, na sede ou em instalações ou perante órgãos da Câmara Legislativa .

Cumpre ressaltar a divergência da doutrina no que tange à natureza jurídica do instituto da imunidade material. Fernando Capez sintetiza tal problemática em duas vertentes: a) a natureza jurídica da imunidade material é a exclusão da ilicitude, sendo o ilícito componente elementar do conceito de crime, conseqüentemente não há o crime; b) a natureza jurídica decorre de causa pessoal de exclusão de pena ou ainda causa de incapacidade penal por razões políticas, ou seja, o agente pratica crime, mas fica isento de pena em decorrência de sua condição pessoal de parlamentar. Contudo, independentemente da discussão, os efeitos práticos são os mesmos, quais sejam, a irresponsabilidade geral e a impossibilidade do parlamentar ser condenado .

A doutrina concorda quanto à atribuição das garantias à própria instituição. Os parlamentares, por sua vez, são aqueles que exercem tais garantias constitucionais e estatutárias, concedidas unicamente em razão do exercício de suas funções. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “estas são exceções ao regime comum, decorrentes não de seu interesse pessoal (pois se assim fosse seriam privilégios), mas do interesse público no bom exercício do mandato” .

Não por outro motivo, tais imunidades são irrenunciáveis, haja vista se tratarem de prerrogativas de ordem pública pertencentes à instituição legislativa e que se destacam para uma finalidade coletiva determinada, diga-se, o devido funcionamento das estruturas estatais. É nesse mesmo sentido que se firma a concepção da representação popular na fundamentação da imunidade parlamentar. Observa-se:

O instituto está ancorado igualmente na teoria da representação popular, no sentido de que um parlamentar, eleito diretamente pelo povo, para cumprir mandato com prazo certo e determinado, não deve ter seu mister interrompido por decisão de outro poder, a respeito de circunstâncias que não guardam relação com o processo pelo qual recebeu o parlamentar a representação do povo .

A despeito das divergências que eventualmente se verificam na teoria tangente, a construção do escorço histórico e a apresentação da fundamentação do instituto da imunidade parlamentar trazem à lume contradições antes não verificadas, em especial no que tange a imunidade formal. Explica-se.

O advento do Estado Liberal de Direito, no século XIX, determinou substanciais transformações na estrutura política e jurídica da sociedade da época. Uma realidade construída ao longo dos desenlaces históricos das revoluções burguesas dos séculos XVI e XVII. Na estrutura propugnada pelo Estado Liberal, a imunidade parlamentar possui maior importância, haja vista o Poder Legislativo ocupar posição primordial na organização da sociedade.

Contudo, as duas Grandes Guerras modificaram em definitivo diversos parâmetros da sociedade. As transformações do séc. XX determinaram a transição paulatina do modelo do Estado Liberal para o Estado Social, o chamado Welfare State. Nesse ínterim, a crítica ao pensamento anticoletivista do Estado Liberal e o anseio crescente da sociedade pela implementação dos direitos sociais inevitavelmente resultou no questionamento da legitimidade do instituto da imunidade parlamentar. “Se, no Estado Social, o direito é visto como instrumento de realização da igualdade, como preservar intacto o conteúdo da imunidade parlamentar?”

Com o advento do Estado Democrático de Direito, o tema definitivamente não se pacifica. A legitimidade do instituto, que por vezes sofreu questionamentos, acaba por sucumbir face ao primado da igualdade de todos perante a lei. De resto, a teoria concorda apenas quanto à necessidade da imunidade material. A imunidade formal, por sua vez, não se justifica, visto que acaba por evidenciar, na prática, um privilégio pessoal do parlamentar. Nesse sentido:

[...] Pela imunidade formal, a política exerce uma função própria do sistema jurídico, incompatível com o conceito de cidadania. Trata-se da subversão do direito pelo sistema político, que produz privilégios e impunidade. Na ordem contemporânea, a imunidade processual converte-se de prerrogativa institucional em privilégio pessoal, inaceitável e inadmissível pela lógica e principiologia de um verdadeiro Estado Democrático de Direito .

Destarte, como dito, o enfoque da origem e da fundamentação da imunidade parlamentar possibilita vislumbrar o novo enfrentamento que se dará à temática, aquele que evidencia a não legitimidade do instituto e refuta quaisquer mecanismos que porventura possam esboçar desarrazoados privilégios pessoais .

2 A IMUNIDADE PARLAMENTAR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL: O ADVENTO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 35

No contexto do ordenamento brasileiro, o instituto da imunidade está disposto no artigo 53 da Constituição Federal, cuja redação foi substancialmente alterada pela Emenda Constitucional n.º 35, de 2001. O propósito da modificação constitucional não foi outro senão por um fim ao descontrole institucional que se verificava no Poder Legislativo. Interessante observar o empenho participativo do Parlamento no processo de aprovação de tal Emenda. Na Câmara dos Deputados, presentes à sessão 444 deputados, a Emenda Constitucional n.º 35 foi aprovada com 441 votos, com um voto contra e duas abstenções. No Senado Federal, presentes 67 senadores, a votação a favor da aprovação foi unânime.

A imunidade material pode ser visualizada no caput do art. 53, o qual dispõe que “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões”. As expressões “civil e penalmente” foram inseridas pela Emenda Constitucional n.º 35/01, pacificando-se que a prerrogativa alcança tanto a seara civil quanto a criminal.

Na esfera cível, impede-se qualquer ação indenizatória daqueles que porventura se sintam ofendidos pela manifestação do Deputado ou Senador e, na esfera penal, a conduta do parlamentar não se subsume a qualquer tipo criminal. Entendimento que igualmente se materializa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

Mostra-se oportuno observar, presente esse contexto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, mesmo antes da promulgação da EC 35/2001, que deu nova fórmula redacional à regra inscrita no art. 53, “caput”, da Constituição, já havia firmado entendimento no sentido de estender o alcance da imunidade material ao plano da responsabilidade civil, em ordem a impedir que o membro do Poder Legislativo pudesse ser condenado ao pagamento de indenização pecuniária, por palavras, opiniões, votos ou críticas resultantes da prática do ofício legislativo .

A Emenda Constitucional n.º 35/01 ainda acrescentou o vocábulo “quaisquer” ao caput do art. 53 da Constituição Federal. Evidentemente, o vocábulo não permite concluir pelo caráter ilimitado da imunidade material. Como dito, a prerrogativa se restringe na medida de sua utilidade funcional para o parlamentar, afastando-se o disparate – por vezes comum – da crença em um manto de imunidade absoluta. Atualmente, tem-se visto, de uma forma muitas vezes inusitada, a relativização de tal imunidade em decorrência de um maior apelo ao decoro parlamentar.

A imunidade formal ou imunidade processual está relacionada à prisão dos parlamentares. A prerrogativa isenta o detentor de mandato eletivo do Poder Legislativo da possibilidade de ser ou permanecer preso pela prática de quaisquer crimes comuns inafiançáveis.

Antes da EC 35/01, a imunidade formal vinha disciplinada no art. 53 §1º da Constituição Federal, dispondo que “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa”.

Dessa maneira, para que um Deputado ou Senador pudesse ser preso ou processado pela prática de crime comum, era necessária uma prévia autorização da sua respectiva Casa. A licença deveria ser remetida ao Supremo Tribunal Federal e, somente dessa forma, poderia se efetivar a prisão ou dar continuidade à persecução penal. Não sendo dada a licença, o processo ficaria paralisado e o inquérito continuaria no cartório do juízo criminal, restando a possibilidade de se retomar a ação somente quando cessassem as imunidades pela extinção do mandato eletivo. A omissão ou o indeferimento da licença implicavam na suspensão da prescrição - em decorrência da própria suspensão do processo.

A única exceção prevista no texto original da Constituição Federal para a prisão de um parlamentar era na circunstância de flagrante de crime inafiançável. Ainda assim, os autos eram remetidos, dentro de vinte e quatro horas, à Casa respectiva para que, pelo voto secreto da maioria de seus membros, fosse deliberado sobre a prisão e autorizada, ou não, a formação de culpa (art. 53, § 3º).

A imunidade formal, nos termos que se estabelecia no texto constitucional, passou a ser criticada por diversos setores da sociedade brasileira. A distorção se evidenciava na prática do “corporativismo” entre os parlamentares, visto que poucas vezes a licença requerida pelo Supremo Tribunal Federal era aprovada.

A prerrogativa tornara-se privilégio, em poucas palavras, proteção ilegítima e ilegal a favor de interesses pessoais. Assim, na esteira das alterações que se verificaram na concepção da imunidade material, a Emenda Constitucional nº 35, de 2001, igualmente alterou a imunidade formal. Assim, transcrevendo in verbis os dispositivos do art. 53, alterados pela emenda:

§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

§ 3º Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.

§ 4º O pedido de sustação será apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias do seu recebimento pela Mesa Diretora.

§ 5º A sustação do processo suspende a prescrição, enquanto durar o mandato.

A partir do novo texto, em caso de denúncia de detentor de mandato eletivo por crime comum, o Supremo Tribunal Federal não mais precisará solicitar autorização - prévia licença - da respectiva Casa Legislativa para a instauração do feito. A Corte Suprema dará seguimento normal ao processo criminal, devendo apenas comunicar à Casa Legislativa a qual pertence o parlamentar. Nesse sentido:

Houve, pois, um redimensionamento da imunidade, que não mais é automática, por assim dizer. Agora, para que o processo seja suspenso, há que obter a manifestação expressa da Casa respectiva do parlamentar processado perante o Supremo Tribunal Federal. A respectiva Casa deliberará, então, não mais acerca do pedido de licença (que é automático), mas sim, agora, acerca da paralisação do processo já em trâmite normal. Trata-se de um julgamento pelos pares do parlamentar, que analisarão, nessa ocasião, a conveniência política de ver processado, naquele momento, determinado congressista .

A possibilidade de sustar o andamento do processo encontra sua razão em fatores ligados à conjectura governamental, tais quais, conveniência, oportunidade, gravidade do fato. Esses critérios deverão nortear a deliberação da instituição a respeito da sustação da ação penal, a qual deverá ocorrer no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias (§ 4º). Contudo, cumpre destacar que, nas circunstâncias definidas no § 3º, do art. 53, caberá à Casa legislativa e, especialmente, ao partido do parlamentar acusado justificarem publicamente a decisão de sustação do processo . Inevitavelmente, tamanha mobilização partidária ocasionaria excessivo desgaste político. As acusações de defesa da impunidade, que antes recaiam sobre o parlamento como um todo, com a nova disposição constitucional, poderão recair especificamente sobre o partido do parlamentar acusado.

A circunstância de flagrante de crime inafiançável igualmente sofreu alterações, com a ausência da necessidade de votação secreta dos membros da Casa, e também pela retirada da prerrogativa desta em decidir a respeito da formação de culpa do parlamentar (§ 2º).

É importante assinalar que o Supremo Tribunal Federal, após a emenda constitucional nº 35, deu prosseguimento aos processos criminais que estavam aguardando a deliberação legislativa a respeito da licença e também aos que porventura haviam sido impedidos de continuar em decorrência do indeferimento do pedido de licença.

Pautando esse aspecto dos efeitos advindos das modificações constitucionais, destaca-se passagem da decisão do Ministro Sepúlveda Pertence, na oportunidade relator, em questão de ordem arguida no Inquérito n. º 1.566:

Imunidade parlamentar: abolição da licença prévia pela EC 35/01: aplicabilidade imediata e conseqüente retomada do curso da prescrição. 1. A licença prévia da sua Casa para a instauração ou a seqüência de processo penal contra os membros do Congresso Nacional, como exigida pelo texto originário do art. 53, § 1º, da Constituição configurava condição de procedibilidade, instituto de natureza processual, a qual, enquanto não implementada, representava empecilho ao exercício da jurisdição sobre o fato e acarretava, por conseguinte, a suspensão do curso da prescrição, conforme o primitivo art. 53, § 2º, da Lei Fundamental. 2. Da natureza meramente processual do instituto, resulta que a abolição pela EC 35/01 de tal condicionamento da instauração ou do curso do processo é de aplicabilidade imediata, independentemente da indagação sobre a eficácia temporal das emendas à Constituição: em conseqüência, desde a publicação da EC 35/01, tornou-se prejudicado o pedido de licença pendente de apreciação pela Câmara competente ou sem efeito a sua denegação, se já deliberada, devendo prosseguir o feito do ponto em que paralisado. 3. Da remoção do empecilho à instauração ou à seqüência do processo contra o membro do Congresso nacional, decorre retomar o seu curso, desde a publicação da EC 35/01, a prescrição anteriormente suspensa .

Antes do advento da Emenda Constitucional nº. 35, pode-se afirmar que a imunidade parlamentar possuía certo caráter retroativo ao mandato, tendo em vista que o crime praticado antes da investidura no cargo que já estivesse em tramitação processual também dependia para o seu normal prosseguimento da licença da respectiva Casa Legislativa. Extinta a necessidade de prévia licença, a única hipótese que pode obstar o prosseguimento normal do processo criminal contra parlamentar é a do pedido de suspensão descrito no corpo constitucional, todavia a aplicação desse mecanismo somente é válida para crimes praticados após a diplomação do Deputado ou Senador. Assim, graças à alteração da emenda nº 35, a prerrogativa da imunidade formal parlamentar passa a abranger somente os crimes comuns praticados pelos parlamentares após o momento da diplomação pela Justiça Eleitoral.

Vale acrescentar referência ao chamado foro privilegiado, prerrogativa também integrante da imunidade processual. Segundo a Constituição Federal em seu art.53, § 1º, “Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. A constituição determina que desde a expedição do diploma, documento que certifica a eleição para o Congresso Nacional, os parlamentares só serão processados e julgados, criminalmente, pelo Supremo Tribunal Federal. O foro privilegiado restringe-se às ações penais, visto que ações referentes a outros ramos jurídicos - ações trabalhistas, cíveis - são julgadas perante juízes comuns. Tal prerrogativa é motivo de discussão entre os juristas brasileiros. Para alguns, o privilégio de foro legitima-se na necessidade de proteção do mandato exercido pelo parlamentar, daí também ser chamado de foro por prerrogativa de função. Considerando o privilégio de foro espécie do gênero imunidade, aquele segue conceitualmente este, de modo que também é uma prerrogativa pertencente à instituição legislativa, e não aos parlamentares, seus meros exercentes. No entendimento do Ministro Sidney Sanches, em decisão paradigmática em questão de ordem suscitada no Inquérito 687-SP:

A prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce, e menos ainda quem deixa de exercê-lo, porque as prerrogativas de foro, pelo privilégio que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos .

Todavia, outros juristas acreditam que tal prerrogativa não passa de um privilégio constitucionalizado, ou seja, de um dispositivo materialmente inconstitucional que fere o princípio basilar da Igualdade. O privilégio de foro seria mais um exemplo do Poder Legislativo atuando em causa própria. Ainda dispõe o art. 53 da Constituição Federal:

§ 6º Os Deputados e Senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações.

§ 7º A incorporação às Forças Armadas de Deputados e Senadores, embora militares e ainda que em tempo de guerra, dependerá de prévia licença da Casa respectiva.

§ 8º As imunidades de Deputados ou Senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida.

O §6º do art. 53 apresenta uma inovação do Poder Constituinte Reformador, a saber, a limitação quanto ao dever de testemunhar. O parlamentar não é obrigado a testemunhar sobre informações, por ele obtidas, vinculadas ao exercício de seu mandato, tampouco é obrigado a revelar tais fontes informativas. A isenção do serviço militar, normatizada no § 7º, também é prerrogativa parlamentar, cabendo a este a possibilidade de declinar frente à tal obrigação comum. Assim, nem que o parlamentar deseje poderá exercer a função militar, para isso teria que renunciar ao mandato ou a Casa respectiva deliberar quanto a sua eventual incorporação às Forças Armadas.

Por fim, ressalta-se que as imunidades dos parlamentares não poderão ser suspensas durante a vigência do estado de sitio. A exceção para tal dispositivo pressupõe a ocorrência de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional que sejam incompatíveis com o próprio estado de sitio, bem como a decisão de dois terços dos membros da respectiva Casa favoráveis à suspensão.

2.3 Imunidade Parlamentar Estadual e Municipal

Anteriormente ao advento da Constituição Federal de 1988, a Súmula n.º 03, publicada em 1964, disciplinava a imunidade parlamentar estadual. Determinava-se que a concessão da prerrogativa se restringia à justiça do Estado. Entretanto, por decisão da Corte Suprema, tal súmula resta-se superada, haja vista a Constituição de 1988 ter tornado aplicável, sem restrições, aos membros das Assembléias Legislativas dos Estados e do Distrito Federal, as normas sobre imunidades parlamentares referentes aos integrantes do Congresso Nacional.

A respeito dos membros das Assembléias Legislativas dos Estados e do Distrito Federal, a Constituição Federal em seu art 27 § 1º traz a seguinte disposição:

Será de quatro anos mandato dos Deputados Estaduais, aplicando-sê-lhes as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.

Podemos concluir que, a respeito da imunidade parlamentar, os deputados estaduais são resguardados tanto no âmbito material quanto no processual.

Quanto aos vereadores, membros do Legislativo Municipal, exercem apenas a imunidade material, a chamada inviolabilidade parlamentar, e ainda restrita aos limites territoriais do Município, consoante ao art. 29, VIII da Constituição Federal .

Igualmente, a teoria entende que “o vereador municipal somente terá imunidade material e na circunscrição municipal, não lhe tendo sido atribuída a imunidade formal ou processual” . Nesse diapasão, tem-se decisão do Supremo Tribunal Federal:

Tratando-se de Vereador, a inviolabilidade constitucional que o ampara no exercício da atividade legislativa estende-se às opiniões, palavras e votos por ele proferidos, mesmo fora do recinto da própria Câmara Municipal, desde que nos estritos limites territoriais do Município a que se acha funcionalmente vinculado .

Assim, os municípios reger-se-ão por lei orgânica, a qual deverá concordar com as disposições constitucionais em destaque e com a jurisprudência assente da Suprema Corte.

 

 

CONCLUSÃO

O instituto da imunidade parlamentar permanece como objeto de estudo da teoria jurídica. Esse ininterrupto interesse deve-se à essencial importância que o instituto adquire na estrutura do Estado Democrático de Direito, na medida em que torna factíveis os princípios fundamentais da República Federativa. Na concepção de Montesquieu, diga-se, aquela que previa a separação de poderes do Estado, a imunidade parlamentar destaca-se como importante mecanismo para coibir ingerências indevidas entre as instituições.

Igualmente, verifica-se que o escorço histórico e a apresentação da fundamentação originária do instituto da imunidade parlamentar evidenciam contradições antes não verificadas, em especial no que tange a imunidade formal. Não por outro motivo, permanecem pontos não pacificados no âmbito teórico.

Na realidade brasileira, de fato, a incongruência do instituto - na forma e finalidade como foi concebido - com a prática que se verifica no legislativo resultou no descontentamento da sociedade. Nesse contexto, tem-se a Emenda Constitucional n.º 35, de 2001, que reestruturou por completo o instituto da imunidade parlamentar no ordenamento pátrio.

E, ainda que modificações estruturais do instituto sejam comuns na história constitucional brasileira, ressalta-se que a imunidade parlamentar ainda procura a suficiente legitimidade para não sucumbir face ao primado da igualdade de todos perante a lei.

Nesse sentido, destaca-se que a teoria concorda com a necessidade da imunidade material. Por sua vez, a imunidade formal não mais se justificaria, haja vista representar, em poucas palavras, um privilégio pessoal do parlamentar. Tal consideração tem sido igualmente ventilada no próprio Poder Legislativo, haja vista as Propostas de Emenda à Constituição que atualmente tramitam e possuem como objetivo a própria extinção da imunidade formal.

De fato, a Emenda n.º 35 trouxe inovações substanciais, reduzindo o alcance das imunidades parlamentares, mantendo a imunidade material e restringindo a imunidade formal - tais efeitos se visualizam na retomada dos processos pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, verificando-se necessário, novas modificações podem vir a ocorrer, bastando que tais prerrogativas, historicamente consagradas como mecanismos elementares da democracia representativa, venham a ser novamente deturpadas pela prática abusiva dos parlamentares.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

? AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo, 24ª edição, SP, Ed.Malheiros, 2005.

? BINENBOJM, Gustavo. Os direitos econômicos, sociais e culturais e o processo democrático. ORTIZ, Maria Elena Rodrigues Ortiz (org.). Justiça Social: uma questão de direito. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2004

? CAPEZ, Fernando e tal. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

? FERREIRA, Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno, 6º edição, São Paulo, Saraiva, 1983

? GONÇALVES FERREIRA FILHO, Manoel. Curso de Direito Constitucional, 31ª edição, SP, Ed. Saraiva,2005.

? KRIEGER, Jorge Roberto. Imunidade Parlamentar: histórico e evolução do Instituto no Brasil, Santa Catarina, Letras Contemporâneas; Oficina Editora, 2004, vol. 1

? KRIEGER, Jorge Roberto. Imunidade Parlamentar: histórico e evolução do Instituto no Brasil, Santa Catarina, Letras Contemporâneas; Oficina Editora, 2004, Vol. 1.

? LEMOS JOVEMY, DANIELA. A imunidade parlamentar formal, com o advento da Emenda Constitucional nº 35/01, Monografia, Brasil, UniCeub, Direito, 1º semestre de 2002.

? LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12ª Edição, São Paulo, Saraiva, 2007

? MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 17º edição, São Paulo, Atlas, 2007,

? PIOVESAN, Flávia; GONÇALVES, Guilherme Figueiredo Leite. A imunidade parlamentar no estado democrático de direito, Revista de Direito Constitucional e Internacional, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, ano 11, n.º 42. jan/mar. 2003.

? TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 3ª edição, SP, Ed Saraiva, 2006.

? TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 7ª Edição, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 1192.

 

Data de elaboração: janeiro/2011

 

Como citar o texto:

BICALHO, Luis Felipe..O Instituto da imunidade parlamentar - Considerações históricas e a realidade do Estado Brasileiro.. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/2225/o-instituto-imunidade-parlamentar-consideracoes-historicas-realidade-estado-brasileiro-. Acesso em 17 mar. 2011.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.