RESUMO: Não há dúvidas de que o século XXI será marcante na História do Direito. Com a globalização, a tecnologia e a forma que o mundo responde a essa transformação, hoje, o Direito Penal Brasileiro, ramo do Direito de maior garantia e segurança jurídica, sofre por um processo de transição mais gigantesco de todos. O maior alicerce do Estado passa por uma discussão sobre sua própria essência, das suas funções e atribuições. Há uma séria revisão de seus próprios princípios, de sua tutela e de seus bens jurídicos. A saber: caminhamos para um Direito Penal Contemporâneo. Foi-se o tempo em que a proteção de bens jurídicos individuais como a vida, a honra, o patrimônio, bastasse para o controle da ordem social. Hoje se fala em bens jurídicos universais, difusos e coletivos, direitos da coletividade, muito mais delicados e de difícil regulamentação para alcançar sua proteção efetiva, que reclamam cada vez uma resposta estatal imediata para manter o equilíbrio social. Não bastasse isso, há confronto entre a doutrina clássica e moderna sobre: de que forma tutelar esses bens? Quais os meios assecuratórios para essa tutela? É necessária a atuação do Direito Penal? Outro ramo do Direito poderia fazer? Entre outras questões. O Direito, o Direito Penal, foi atingido pela evolução.

 

Palavras-chave: Direito Penal. Bem Jurídico. Tutela.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Desde a entrada deste século, em uma pesquisa atenta e minuciosa sobre a marcha do Direito Penal Brasileiro no que tange ao seu comportamento, os conceitos que edificam sua estrutura, seus recursos e mecanismos, e o método de aplicação destes e daqueles na prática, claro e evidente que a esfera criminal passa por um período de transformação brusca, face o crescimento incessante da tecnologia, a evolução da sociedade, a mudança de pensamento, as novas formas de crimes e o aumento da criminalidade, que age cada vez mais com destreza, de maneira inteligente, despercebida, quase impune.

Inevitável que o Direito Penal é atormentado por um processo de transição mais gigantesco de todos. Tudo isso porque uma nova sociedade se apresentou. O fundamento é a globalização, patrocinada por uma avalanche de tecnologia, de velocidade de informação. E isto é evolução, porque é mudança, é passagem sucessiva de acontecimentos.

É o que a sociologia nos ensinou e recentemente (2011) o Supremo Tribunal Federal reforçou: “onde há sociedade, há o Direito. Se a sociedade evolui, o Direito também evolui”. Acrescente-se, ainda, um “e vice-versa”, pois, quando o Direito muda, mais tarde a sociedade também muda e o ciclo se repete.

Todavia, a questão preocupante não é a evolução em si, mas a maneira que o Direito Penal está respondendo a ela. Professor Pablo Rodrigo Alflen da Silva, bem resplandece a situação que vive o Direito Penal: “o problema atual não é mais a luta contra um Direito Penal moralizador, o que se levou adiante com as armas da filosofia política do Iluminismo, mas sim contra um Direito Penal inspirado nas modernas teorias sociológicas orientadas segundo um modelo globalizante, que no Direito Penal tem se refletido segundo a perspectiva do risco...”.

Como é cediço pelos estudiosos do direito, o Direito Penal tem por função, como ressalta Hassemer, tutelar bens jurídicos por meio de proteção de valores éticos-sociais contra as ações mais elementares.

Antigamente, a seara criminal se assentava em garantir os direitos e liberdades fundamentais das pessoas, proteger assiduamente os bens jurídicos de maior relevância social, os bens jurídicos individualmente, representados pela vida, a honra, a liberdade, o patrimônio, a integridade física, entre outros.

Aparentemente é nítido e simples seu propósito. Mas intrigante que sua atuação jamais se deu de forma livre e desimpedida. Princípios fortes revestem o Direito Penal. Diga-se: Legalidade, Taxatividade, Lesividade, Intervenção Mínima, Fragmentariedade, Subsidiariedade, Proporcionalidade, entre outros.

Tais princípios existem para reduzir as arbitrariedades do Estado; porque quando se invoca o Direito Penal, o direito fundamental/bem jurídico “liberdade” é colocado em risco pela persecutio criminis; porque as normas, em regra, devem ser fechadas, certas, claras, sempre com precisão; porque o Direito Penal só atua quando nenhum outro ramo do Direito for eficaz para proteger os bens jurídicos; porque é a última ratio; porque Ele ampara somente bens jurídicos dignos de tutela penal; porque se pune as condutas mais graves, condutas que causem lesão ao bem; porque requer sejam suas medidas adequadas, razoáveis, proporcionais ao dano causado.

E com a evolução social decorrente da corrida tecnológica, outros bens jurídicos passaram a carecer de tutela. Hoje há a presença intensa de bens jurídicos universais, que como se verá a seguir, podem ser divididos, em geral, em difusos ou coletivos. São bens jurídicos pertencentes à sociedade como um todo, que quando afetados causam um vasto dano, de difícil reparação atingindo um grande número de pessoas, muitas vezes indeterminável.

Daí, coerente dizer que houve uma extensão do Direito Penal em se preocupar severamente com a proteção de outros bens jurídicos, agindo de maneira diversa de seu caráter tradicional, confrontando com o seu classicismo. É o ponto chave dessa evolução. É um novo Direito Penal, que atua preventivamente, moderno, contemporâneo.

Assim, inicialmente, é essencial nesse trabalho um escorço histórico dos bens jurídicos e em seguida um exame passageiro de seu conceito, para assim compreender a categoria dos bens jurídicos universais que nos possibilite uma análise crítica sobre a forma de sua tutela, como ela se ostenta, estabelecendo, ainda, um paralelo com os bens jurídicos individuais.

Finalmente, o objeto deste trabalho é a discussão doutrinária sobre a tutela dos bens jurídicos universais, que se dá de forma preventiva, que exige a mitigação de alguns princípios penais, que garanta efetivamente sua proteção, que implica um distinto Direito Penal para responder ao novo modelo social.

2 BENS JURÍDICOS

2.1 Abordagem histórica

Historicamente, o termo “bem jurídico” há muito tempo está intimamente ligado ao campo conceitual do Direito Penal.

Como bem ressalta Arturo Rocco, a finalidade do Direito Penal é “assegurar as condições de existência da sociedade, em garantir as condições fundamentais e indispensáveis da vida em comum” (p. 462). E “bem”, de modo geral, é tudo aquilo que tem valor para o ser humano, é tudo que se relacionada com utilidade para atender as necessidades humanas.

Daí, como instrumento de um Estado Democrático de Direito, a existência do Direito Penal se justifica na tarefa de assegurar a proteção dos valores mais transcendentes da sociedade, regulando o comportamento dos indivíduos para sua convivência harmônica social, reprimindo condutas e aplicando sanções. Em suma, o Direito Penal tem por escopo tutelar os bens jurídicos da sociedade.

Na história, o marco inicial dos bens jurídicos foi no Iluminismo, movimento que determinou significativa mudança da sociedade. Foi uma época em que não se falava em bens jurídicos propriamente ditos, mas de proteção dos bens individuais contra as arbitrariedades do Estado.

Na fase pós-iluminista, ao final do século XVIII, a discussão sobre o a concepção material de delito ganhou força da qual se configurava como uma violação de um direito subjetivo. Esse posicionamento foi decorrente da teoria contratualista, defendida por Von Feuerbach, que entendia o bem jurídico como um contrato, mas com limites.

No século XIX, face à evolução do delito, a doutrina mostrou imperiosa necessidade de atribuir um conceito ao bem jurídico. Johann Michael Franz Birnbaum então, em 1843, introduziu a definição de bem jurídico no contexto jurídico-penal. Para ele, o delito configurava uma lesão ou ameaça de lesão a bens jurídicos, e não a direitos, que deve ser regulamentado por norma penal, através da atuação do Estado que tutelará os bens definidos pela sociedade.

Posteriormente, Karl binding, adepto à uma teoria positivista-normativista, entende que o delito é a lesão de um direito subjetivo do Estado. O bem jurídico é tudo aquilo que o legislador decidir como importante para a ordem jurídica.

Contrário ao proposto por Binding, o positivista naturalista Franz Von Liszt assevera que quem elege os bens jurídicos é a vida, e não a lei. O Direito tem por finalidade proteger os interesses humanos da qual preexistem à intervenção normativa.

Mais tarde, diante da evolução da noção de bem jurídico, surgiram concepções modernas como as teorias sociológicas, tendo como alguns percussores Jakobs, afirmando o Direito Penal como responsável pela eficácia das normas jurídicas através de imputação de condutas para manter a ordem social; Otto sobre os bens jurídicos como relação real ou fática do sujeito com um objeto; Hassemer, entre outros. Porém nenhuma teoria sociológica estabeleceu um conceito material de bem jurídico a ser aderido.

2.2 Conceito de bem jurídico

Somente após a Segunda Guerra Mundial, com a criação dos Tribunais de Noorenberg, Hans Welzel, numa concepção de valores ético-sociais, foi o primeiro doutrinador a definir o bem jurídico como um “bem vital da comunidade ou do indivíduo, que por sua significação social é protegido juridicamente” (p.15).

Depois, conceito relevante foi o de Claus Roxin entendendo bens jurídicos como “pressupostos imprescindíveis para a existência em comum, que se caracteriza numa série de situações valiosas, como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de atuação...” (p. 27-28).

Na doutrina clássica do Direito Penal, Francisco de Assis Toledo afirma que bens jurídicos “são valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas” (p. 16). E, brilhantemente, Heleno Cláudio Fragoso, que “bem jurídico é um bem protegido pelo direito: é, portanto, um valor da vida humana que o direito reconhece, e a cuja preservação é disposta a norma”.

2.3 Bens jurídicos universais

Os bens jurídicos podem ser divididos em bens jurídicos individuais e bens jurídicos universais. A doutrina reconhece a existência de bens jurídicos universais que podem ser igualmente denominados por bens jurídicos transindividuais, metaindividuais ou até mesmo coletivos.

Os bens jurídicos individuais são aqueles em que sua titularidade pertence a cada um dos cidadãos individualmente. Afetam diretamente as pessoas isoladamente. São bens jurídicos divisíveis em relação ao seu titular. São os exemplos clássicos: vida, patrimônio, a honra, liberdade, integridade física, propriedade.

Por sua vez, os bens jurídicos universais ou transindividuais são aqueles pertencentes a uma massa abstrata, de interesse de toda a coletividade. O ataque contra esses bens lesiona a sociedade, afetando um número indeterminável de pessoas. Exemplo são o meio ambiente, a ordem econômica e tributária, a paz pública, incolumidade pública. Os bens jurídicos universais subdividem-se em bens jurídicos difusos e coletivos.

Os bens jurídicos difusos são aqueles pertencentes a um número indeterminável de pessoas, ou seja, referem-se à coletividade; são titulares de um objeto divisível. As pessoas estão relacionadas entre si por um vínculo fático; não há mensurar exatamente quantas pessoas sofreram lesões, a extensão do dano, em razão os interesses difusos pertencerem a vítimas indetermináveis. Exemplo: contaminar uma praia. É impossível calcular quantas pessoas estavam ali, até onde a contaminação pode alcançar cidadãos que residem ou frequentam a região; Meio ambiente.

Os bens jurídicos coletivos, todavia, pertencem a um grupo de pessoas determinadas; também são titulares de um objeto indivisível, porém as pessoas estão ligadas por um vínculo jurídico prévio; é possível mensurar quantas vítimas foram afetadas pelo dano, pois as pessoas são mais ou menos determináveis. Exemplo: um dano dentro de um clube. É possível identificar todos os sócios que frequentam o clube. Afeta muitas pessoas, porém passível de verificar os sócios lesados; saúde pública.

Para o Direito Penal não interessa muito essa distinção, como bem ressalta Eugênio Raúl Zaffaroni, não há diferença qualitativa entre bens supraindividuais e bens individuais. Todavia há existência de bens jurídicos de sujeito múltiplo, da qual um não pode dispor do bem individualmente sem lesionar a disponibilidade de outro.

Em síntese, a lesão aos interesses transindividuais ou supraindividuais, difusos ou coletivos, universais, que pertencem à coletividade, causam danos de grande monta, afetam demais a sociedade. E a Ciência Jurídica precisa agir contra as ameaças ao seio social, em defesa ao seu meio ambiente, no uso da tecnologia, no controle dos recursos empresariais, no combate à macrocriminalidade.

Por essas razões, há preocupação seríssima com os bens jurídicos universais e estudos cada vez mais aprofundados sobre os direitos da coletividade, os direitos de terceira dimensão/geração, tendo em vista que, nesse período de pós-modernidade, o Direito Penal não protege mais os bens jurídicos individualmente, precisa tutelar os bens jurídicos transindividuais, precisa justificar a necessidade da tutela penal nos direitos difusos e coletivos, e para alcançar isso, o Direito Penal necessita atuar de maneira diferente.

3 TUTELA PENAL DOS BENS JURÍDICOS UNIVERSAIS

A importância de se definir um bem jurídico traduz na limitação de atuação do Estado, no controle de suas arbitrariedades. O Direito Penal se preocupa somente com a ocorrência de lesão ao bem jurídico, ou seja, só importa se o bem jurídico foi afetado (Princípio da Ofensividade). Daí, o Direito Penal é subsidiário, apenas defende os bens jurídicos que têm dignidade penal, quando nenhuma outra esfera do Direito for capaz de proteger (Princípio da Fragmentariedade).

3.1 Dignidade penal e necessidade de tutela

Os Bens jurídicos portadores de dignidade penal são identificados através do contexto histórico e sociocultural que, com um juízo de valor social, em consonância com os critérios do legislador, serão encontrados, a princípio, na Constituição Federal na forma de garantias e direitos individuais.

Nas palavras de Luís Régis Prado: “Os bens dignos ou merecedores de tutela penal são, em princípio, os de indicação constitucional específica e aqueles que se encontrem em harmonia com a noção de Estado de Direito democrático, ressalvada a liberdade seletiva do legislador quanto à necessidade” (p. 95).

A idoneidade do bem jurídico está ligada com o valor que a sociedade atribui. E o legislador se preocupa em considerar valores fundamentais sem ultrapassar as barreiras do sentido da proteção do bem jurídico.

Portanto, só é necessária a imposição de tutela penal àqueles bens que sofrem ataques socialmente intoleráveis, quer dizer, serão reprimidas condutas graves que ofereçam lesões ou danos aos bens jurídicos. Como bem ensina Luís Régis Prado: “Daí ser importante a congruência entre o bem penalmente tutelado e os valores fundamentais” (p. 101). É respeito ao Princípio da Proporcionalidade.

E como identificar a necessidade de tutela penal ao bem jurídico? Pode se dar de duas formas: 1 – por determinação constitucional, por meio de mandados expressos de criminalização, consistentes em indicações criminalizadoras das quais o legislador ordinário tem a obrigatoriedade de legislar, como dever protetivo do bem jurídico. São exemplos: o racismo, o tráfico ilícito de entorpecentes, a tortura, o terrorismo, pois previstos no artigo 5º XLII, XLIII da Constituição Federal. Não há faculdade de tratar a matéria, o legislador está obrigado a criminalizar condutas previstas na Constituição Federal. Há ainda previsão de mandados implícitos de criminalização que se manifesta na necessidade de proteger, por meio de norma penal, valores constitucionais, convertendo-os em bens jurídicos, quando não houver outra forma de resguardá-los; 2 – por políticas criminais, situações em que há discricionariedade do legislador ordinário em punir condutas à luz de princípios penais como legalidade, lesividade, proporcionalidade, fragmentariedade, lembrando que o Direito Penal deve atuar como ultima ratio e de forma mínima, cabendo em primeiro lugar aos outros ramos do Direito assegurar a proteção eficaz dos bens.

3.2 Tutela penal preventiva dos bens jurídicos universais

A tutela penal dos bens jurídicos será de acordo com sua espécie.

Para a tutela penal dos bens jurídicos individuais, prepondera o Direito Penal Clássico, tradicional, repressivo, aplicando sanções como forma de resposta estatal ao comportamento contrário ao ordenamento. Há presença de tipos penais fechado, tipos penais de dano. Nessa categoria, há estrito respeito aos princípios penais clássicos, quais sejam, a Legalidade (taxatividade penal), Intervenção Mínima (Direito Penal atua como ultima ratio), Ofensividade (os crimes devem causar danos), Culpabilidade, Fragmentariedade. Essa corrente é defendida por Hassemer, Pritwitz, Herzog, Naucke, Muñoz Conde, são as propostas da doutrina clássica da Escola de Frankfurt, na Alemanha.

O que seduziu a doutrina foi a categoria dos bens jurídicos universais, agora existentes com muita força no mundo jurídico pós-modernidade, onde a tutela aparece de forma diferente, com sua dimensão ampliada.

Aos bens jurídicos universais se aplica um Direito Penal moderno ou contemporâneo. A tutela, para ser eficaz, deve ser preventiva. É Direito Penal prospectivo, que enxerga o futuro, e não repressivo. O Direito Penal se antecipa e previne os danos ao bem. Essa corrente da doutrina moderna é muito defendida por Kuhlen e Schünemann, Luís Garcia Martin e Jesus Maria Silva Sanchez, que reforça ainda sobre um possível Direito Penal de duas velocidades.

E na tutela pena preventiva não se fala em tipo penal fechado. Pelo contrário, os tipos penais devem ser abertos, criar crimes de perigo abstrato, utilizar normas penais em branco.

Uma das críticas da doutrina é que esse comportamento do Direito Penal mitiga a taxatividade penal.

Mas por que é necessária haver essa mitigação? Porque a lesão causada aos bens jurídicos difusos e coletivos é muito extensa, de difícil ou impossível reparação. Por exemplo, queimar toda uma floresta, há queda de árvores, poluição no ar, lesão à fauna e a flora. Essas condutas afetam demais um número indeterminável de pessoas, ou seja, atinge a coletividade no seu todo. Se na tutela dos bens jurídicos universais, o Direito Penal optasse pela repressão, tais bens não seriam assegurados, não resultaria eficácia a sua atuação.

Diferente do que ocorre nos bens jurídicos individuais, a lesão afeta ao cidadão individualmente, razão pela qual a repressão da conduta se mostra eficaz para responder à lesão.

Daí o conflito instalado pela doutrina clássica e contemporânea. A doutrina tradicional entende que o Direito Penal não pode intervir para amparar esses bens e tutelar preventivamente, pois, o Direito Penal é o ramo de maiores garantias, é a ultima ratio, e nesse caso, tratando desses bens jurídicos, há certa insegurança jurídica instalada. Em contramão, a doutrina moderna defende que para garantia e proteção dos bens jurídicos difusos e coletivos, somente o Direito Penal seria capaz, justamente por ser a esfera do Direito de mais garantias.

No mais, a doutrina clássica não concorda com a mitigação de alguns princípios penais em prol da tutela preventiva, diga-se, o Princípio da Legalidade/Taxatividade, uma vez que a mesma implica tipos penais de perigo em que se pune a simples exposição do bem jurídico a um risco, seja de perigo concreto ou abstrato, requerendo a utilização de normas penais abertas e tipos penais em branco, em que o conteúdo da norma apresenta-se lacunoso, necessitando de complementação de outra norma jurídica. E as normas, como regras, devem ser claras, certas, precisas e fechadas. Para eles isso causa insegurança jurídica, afinal, se o Direito Penal, que é o último a ser chamado dos direitos, não for capaz de solucionar, quem poderia fazer?

Ademais, na tutela penal preventiva há mitigação do Princípio da Ofensividade/Lesividade em que a conduta será digna de repressão penal se capaz de causar dano ao bem jurídico. Sendo a tutela preventiva, a punição persiste antes mesmo de ocorrer a lesão, bastando a ameaça ou perigo.

Por fim, no que tange aos princípios da Intervenção Mínima, Fragmentariedade, e Subsidiariedade há crítica no sentido de que o Direito Penal é a ultima ratio, posto que não são todos os bens jurídicos que merecem proteção penal e, para que haja tutela penal, é imprescindível ataque perpetrado contra o bem relevante para o seio social. Deste modo, o Direito Penal não pune atos preparatórios, então, impossível a tutela preventiva. Não seria intervenção mínima. Deve, em primeiro lugar, outros ramos do direito como o Direito Administrativo ou o Direito civil preverem as condutas e reprimir, para só depois invocar o Direito Penal.

Aos defensores do Direito Penal Contemporâneo, o Direito Penal deve ser eficaz, isso é fato. A tutela penal preventiva é um meio de proteger os bens jurídicos difusos e coletivos. É solução encontrada pela doutrina diante da globalização, da tecnologia empregada nas novas modalidades de crime, do período de evolução que vive a sociedade.

O Direito Penal Ambiental, por exemplo, é adepto ao Direito Penal Secundário. Há utilização de normas penais em branco, há antecipação da tutela penal, de intervenção penal do legislador, é comum a punição dos delitos de perigo abstrato. Mas a questão não é doutrinária, mas Constitucional, pois há mandado expresso de criminalização na Constituição Federal sobre a ampla responsabilidade das pessoas naturais e jurídicas por infrações lesivas ao meio ambiente. O Direito Penal, segundo a crítica, é de última ratio. Mas, em se tratando de matéria ambiental, a Constituição Federal determina a punição de delitos de perigo abstrato. O Direito Penal Ambiental é secundário, transindividual, difuso (bens de uso comum do povo). É direito penal reparador, não repressivo, não é invocado para punir.

Assim, no Direito Contemporâneo, em matéria de bens difusos ou coletivos, o Direito Penal deve se mostrar eficaz. Seguindo o modelo do Direito Penal Clássico, será falho e inconstitucional. Se mitigar algumas garantias e princípios, com certeza será efetivo. E mitigar algumas garantias não é inconstitucional, mas constitucional, porque deve sempre preponderar a proteção efetiva dos bens jurídicos.

Inequivocadamente, o que é certo é que a função do Direito Penal é proteger os bens jurídicos dos cidadãos e da sociedade.

Em verdade, a corrente contemporânea da tutela penal preventiva dos bens jurídicos universais, como novas concepções teóricas, apenas se esforçaram para adequar ao modelo social experimentado pelos seus membros. E a corrente do Direito Penal Clássico apenas busca manter seu sistema garantista. Ambas com visões divergentes, porém não menos certas, e ambas merecem se harmonizar.

4 CONCLUSÃO

No sistema de controle social, inegável que o Direito Penal é o maior aliado do Estado apto a proteger os bens jurídicos essenciais das pessoas e da sociedade.

Tamanha relevância desempenha o papel do Direito Penal na garantia dos direitos e da ordem social que quando nenhum ramo do ordenamento jurídico for capaz dessa tarefa, incumbirá ao Direito Penal.

E se a globalização ameaçar os interesses sociais, o dever do Estado é buscar uma solução prática.

Há novos bens jurídicos carecedores de amparo. São os bens jurídicos universais, difusos e coletivos. E a medida tomada pelo Estado foi socorrer-se imediatamente do Direito Penal. A resposta encontrada foi tutelar esses bens de maneira preventiva.

A corrente contemporânea mostrou-se presente. Muito bem. O que é inadmissível é pecar pela omissão.

O Direito Penal Clássico defende um sistema rígido de garantias enquanto o Direito Penal Contemporâneo preconiza uma expansão, um novo Direito Penal.

Correto dizer que ainda é preciso caminhar cientificamente sobre a ampliação do Direito Penal para encontrar uma solução teórica e prática que acompanhe a evolução da sociedade frente à globalização. Todavia, frise-se que essa medida é eminente e inevitável, porque a sociedade é dinâmica por natureza e o Direito não pode ficar atrás, obrigatoriamente será sempre mutável.

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Data de elaboração: julho/2011

 

Como citar o texto:

FELICIO, Guilherme Lopes..Tutela Penal dos Bens Jurídicos Universais. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/2326/tutela-penal-bens-juridicos-universais. Acesso em 3 out. 2011.

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