Introdução

 

A sociedade passa por constantes transformações, isso ocorre na conjuntura política, social e econômica. Logo, o direito, precisa acompanhar minuciosamente estas mudanças para conseguir garantir a realização do seu papel na sociedade de conformador da paz social. Estabilizador da paz social, garantidor da dignidade da pessoa humana, promovedor das regras sociais que propiciam a vida em comunidade, o direito precisa evoluir juntamente com os anseios e necessidades do povo. Dessa forma, o poder público, precisa respaldar o desenvolvimento da sociedade nos seus diversos matizes, através de uma função legislativa, executiva e judicial eficaz, o que nem sempre acontece.

O Direito Civil, um dos ramos do direito que mais se encontra presente na vida em sociedade, precisa assim, se transformar diante dos desafios surgidos com a evolução e transformação da comunidade, num direito material que propicie de forma equânime e justa os direitos do homem conformados com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB).

O Código Civil de 1916, denominado pela doutrina de código beviláqua, homenagem devido ao seu instituidor se chamar Clóvis Beviláqua, era um ordenamento de leis civis que visava proteger principalmente o patrimônio das pessoas, tendo em vista que ainda não havia esta preocupação primacial com os direitos do homem.

Com a evolução sócio-política engendrada com a nova Assembléia Nacional Constituinte, adveio a Constituição Federal de 1988 propondo de modo sistemático a defesa dos direitos do cidadão, a garantia de uma dignidade do homem, enfim perpetrando os direitos humanos como uma máxima a ser garantido pelo estado constitucional de direito, em especial no seu artigo 5º.

Diante dessa conjuntura jurídica, com uma constituição federal garantista que primava pelos valores humanos e dignitários, houve a necessidade dos legisladores readaptarem a legislação infraconstitucional aos anseios buscados pela nova carta magna. Uma dessas readaptações foi a elaboração do Novo Código Civil publicado em 2002. Este, por sua vez, passou a corresponder em grande parte, aos anseios de uma constituição moderna, preocupada com os valores de um estado democrático de direito e que colocasse o cidadão em primeiro plano.

A veste patrimonialista que arraigava o código civil de 1916 dá lugar agora, a um código que exalta a dignidade da pessoa humana e coloca o patrimônio em segundo plano. Destarte, o direito civil como um todo, passa por uma despatrimonialização, chamados por muitos doutrinadores até mesmo de publicização, pois os valores amainados na CRFB perpassam de forma muito coesa e louvável ao Novo Código Civil (NCCB).

Portanto os valores éticos, a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a boa fé objetiva, a lealdade, honestidade, bem como outros valores passam a ser incorporados no NCCB, uns implícito outros explicitamente, de modo a assegurar ao homem, com o seu direito da personalidade intocável, valores até então nunca obtidos pela nação brasileira.

Logo as relações jurídicas, passam a serem tuteladas por institutos jurídicos que dimanam de princípios da própria carta magna e que, por sua vez, se encontram no NCCB devido a leitura constitucionalista imprimida pelo legislador ao elaborá-lo em consonância com a mesma.

Um desses princípios axiomáticos que regem as relações jurídicas, incorporados de forma bastante eficaz ao direito civil constitucionalizado, é o princípio da boa fé objetiva. Tal princípio é o vetor principal que ampara o princípio da proibição do comportamento contraditório, tema central deste trabalho monográfico.

A proibição do comportamento contraditório (Nemo potest venire contra factum proprium) é modalidade de abuso de direito que surge da violação ao princípio da confiança, no qual decorre da função integrativa e limitadora da boa fé objetiva, insculpido expressamente no artigo 422 do Código Civil. Embora não haja menção expressa no NCCB, ou no ordenamento jurídico como um todo sobre a vedação do comportamento incoerente, proibição do comportamento ou nemo potest venire contra factum proprium, ao implementar uma hermenêutica distanciada das amarras do positivismo, percebe-se que tal instituto é consectário natural da repressão ao abuso de direito, sendo perfeitamente aplicável ao direito brasileiro .

Ademais, vale salientar que tal tema será trabalhado, depois de perpassar-se pelos desdobramentos e nuances da constitucionalização do direito civil e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas, bem como a abordagem do seu princípio dorsal, boa fé objetiva no novo código civil lido sob os auspícios da CRFB. Todos esses institutos, sequências e evoluções do direito, que corroboraram à criação do instituto central em análise.

 

Desenvolvimento

Capítulo 1.

Evolução Civilista

1.1 Constitucionalização do direito civil

Não obstante, haja alguns doutrinadores que afirmem que o direito civil passou a ser de direito público, indubitavelmente o direito civil é um ramo de direito privado por mais que tenha passado por uma constitucionalização. Etimologicamente, Direito Civil vem do latim cives (cidadão) e se dirige à regulamentação das relações sociais travadas entre as pessoas, desde o nascimento (e mesmo antes dele, em especial na sociedade pós-moderna devido ao avanço tecnológico e descobrimentos científicos). É o ramo do direito privado que rege as relações humanas, comum a todas as pessoas, que disciplina o seu modo de ser e de agir. Logo, toda a vida social está impregnada de direito civil , por esse tutelar a simples doação de uma moeda até situações jurídicas complexas como casamento ou a compra e venda de um imóvel.

Com o avanço social, científico, político e econômico, surge a necessidade de alterações nas concepções jurídicas do sistema. Novos tempos de evolução, exige um direito com uma nova roupagem jusfilsófica, especialmente o Direito Civil. Direito esse, que precisa ser aberto, poroso e sensível à capacidade intelectual do homem e que se revele capaz de pacificar os novos conflitos que se desabrocham na sociedade hodierna.

Este Direito Civil deve ser um direito legitimado numa leitura constitucional, abalizado nos princípios constitucionais da carta cidadã, com o propósito de se moldar a cada tempo e lugar, na busca da garantia da dignidade do homem – por quem e para quem foi criado. Por isso, é que a fonte primária do Direito Civil e de todo o ordenamento jurídico deve ser a Constituição da República .

A carta cidadã, liberta do regime ditatorial dos anos 70, adquiriu força normativa e então passa a ser, mesmo que tardiamente, o centro do sistema jurídico, fundamento e modelo de filtragem de toda a legislação infraconstitucional. Sua supremacia neste instante passa de mera formalidade para importante efetividade .

Diante deste quadro jurídico – incontroversa supremacia constitucional -, os doutrinadores captam a necessidade de implementarem um releitura de conceitos e institutos jurídicos clássicos (propriedade, contrato e entre outros), de elaboração e desenvolvimento de novas categorias jurídicas dinâmicas, presentes no contexto social do cidadão ( ex: união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar), além de uma interação entre os variados campos da ciência jurídica, superando a velha dicotomia e engessamento do direito.

Valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade substancial marcam inequivocamente a mudança de concepção do direito civil contemporâneo. Destarte, a CRFB passa a funcionar como tábua axiomática, informando com princípios e normas as relações privadas, determinando as bases estruturais do sistema de direito privado e reunificando o sistema civilista.

Consoante preleção de Tepedino , temos:

que as normas constitucionais, e particularmente o rol dos direitos e garantias individuais, possuam direta eficácia nas relações de direito civil parece pouco a pouco a constituir um consenso para a melhor doutrina, animada sobretudo pelos debates doutrinários desenvolvidos na Alemanha, na Itália e em Portugal, nos últimos trinta anos.

A lex mater oxigenou a norma civil abrindo-a para um mundo real, palpável e concreto que reclama e exige uma tutela jurídica de direito material adequada às necessidades urgentes e presentes.

Os textos constitucionais passam a definirem princípios relacionados, até então, a temas exclusivos do Código Civil como função social da propriedade, limites da atividade econômica, organização da família, matérias típicas do direito privado, que passam nesse momento a terem uma roupagem de ordem pública constitucional.

Ademais, esse novo sistema de normas e princípios, reguladores da vida privada, que se referem a proteção da pessoa nas suas mais diferentes dimensões fundamentais (dos valores existenciais aos patrimoniais) integrados pela Constituição, denomina-se Direito Civil Constitucional ou Direito Civil Constitucionalizado.

É importante salientar que a constitucionalização do direito civil não significa o mero estabelecimento de limites externos à atividade privada. A constitucionalização do direito civil é uma releitura dos institutos fundamentais do Direito Civil à luz da Constituição Federal de 1988 em razão da reformulação interna do seu conteúdo. Portanto, trata-se de uma alteração na estrutura intrínseca dos institutos e conceitos fundamentais de Direito Civil ressignificando-o através de uma nova tábua valorativa, Constituição cidadã.

É preciso compreender a estrutura interna da norma civil a partir da legalidade constitucional modificando, se necessário, seus contornos e conseqüências para que estejam adaptados à perspectiva constitucional. Desta feita, só haverá propriedade privada se houver a função social. Não que a função social seja um mero limite ao direito de propriedade, mas sim a parte fundamental que integra o próprio corpo deste conteúdo jurídico .

Os problemas hodiernos que permeiam a civilística necessitam de soluções a partir de princípios constitucionais e que valorizem a existência da pessoa humana. A possibilidade de mudança do registro civil do transexual, a união afetiva de pessoas do mesmo sexo, a legitimidade da prisão do devedor depositário infiel, a permissão para experimentos científicos em corpos humanos, tudo isso, exige interpretação afinada com o princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade substancial. Caso ocorra o contrário, haverá um solapamento da dinâmica constitucional que necessariamente deve estar presente no sistema jurídico.

A retórica da implementação dos princípios e valores constitucionais no conteúdo civilista faz emergir uma proteção aos grupos minoritários, antes abandonados ao acaso, sem tutela jurídica expressiva como as minorias étnicas, religiosas e sexuais. Nitidamente percebe-se que o texto constitucional, sem sufocar a vida privada, garante certas prerrogativas e direitos a coletividade, ao bem comum, ao cidadão marginalizado, propiciando dessa maneira a efetivação real e concreta da igualdade substancial, proporcionando um estado republicano de direito preocupado com a liberdade individual, mas desde que exercida com dignidade e respeito aos direitos de outrem, ao bem público comum e à coletividade.

A tutela jurídica deixa de corresponder aos anseios de pessoas que trazem um dos lemas da revolução francesa (liberdade), que antes eram premidas da necessidade de um estado democrático, logo necessitavam de um estado liberal que não interviesse na vida das pessoas, um estado baseado no laissez fare. Neste instante a sociedade necessita de um estado que efetive a fraternidade, um estado que desenvolva ações afirmativas para que garanta os direitos fundamentais do homem, para que realize a dignidade da pessoa humana tratando desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Caso o estado não haja dessa maneira, haverá injustiças, desmandos e flagelos sociais, pois o Poder Público é o sujeito principal na efetivação e garantia desses direitos. Direitos de uma sociedade, que não mais necessita de uma liberdade desenfreada e inconseqüente, pois nessa sociedade há diferenças, e as diferenças devem ser tratadas com atitudes diferentes, reinserindo dignamente o viciado em drogas, o homossexual, a prostituta, os deficientes físicos e mentais, os aidéticos, os presidiários, o favelado, o analfabeto, o judeu e entre outros.

Depois de certas considerações é louvável salientar a distinção de Direito Civil Constitucional ou constitucionalização de direito civil para publicização do Direito Civil. Não obstante, a similitude conceitual pareça existir, não é inteligível achar que o movimento de constitucionalização do direito civil implicou na imputação de ordem pública às leis e normas de caráter privado por vias transversas. Aufere-se que a constitucionalização não atingiu a natureza privada da norma de Direito Civil. Porém, é notório que hodiernamente o legislador opte publicizar relações jurídicas basicamente privadas, através de uma interferência estatal com o objetivo de reequilibrá-la, eliminando desigualdades fáticas advindas das diferentes posições das partes . Trata-se de um dirigismo contratual por parte do Poder Público evitando que a superioridade econômica de uma delas prejudique a outra e conferindo certa dose de caráter público a uma relação originariamente de natureza privada. Já a constitucionalização do Direito Civil importa na migração das regras e princípios fundamentais do direito privado para a sede constitucional, sem alterar a natureza privada da norma jurídica. Temos como exemplo o fato de a relação familiar (de ordem privada) estar disciplinada na Constituição Federal nos artigos 226 e 227. Já o exemplo de publicização do direito civil, temos o fato da relação empregatícia ser disciplinada na Consolidação das leis do trabalho, uma situação da vida privada, que diz respeito a dois particulares, é dirigida pelo estado através da lei para proteger o hipossuficiente, o trabalhador que está em desequilíbrio financeiro com o empregador.

A sociedade pós- moderna é aberta, porosa, multifacetada e globalizada, trazendo consigo um caráter humanista, aspirando uma proteção mais relevante dos direitos sociais, com uma nova postura jurídica. Diante dessa conjuntura é necessário o rompimento definitivo com o tradicionalismo patrimonialista e individualista que permeava o direito civil em sua completude. Logo, não se trata de uma reciclagem funcional do direito civil realizada pela influência simplista de valores constitucionais, mas da recomposição do vínculo e dedicação a partir de uma conduta estribada na remodelação dos afazeres didáticos e de pesquisa .

O Direito Civil deve ser um direito que preconiza a aptidão e eficácia em defender a vida humana em sua integralidade, contemporâneo com a sociedade que lhe cabe pacificar. Nesse contexto, o cidadão passa a ter o direito a um patrimônio pessoal mínimo que lhe garanta uma vida digna a partir da igualdade substancial e solidariedade social.

 

 

1.2 Eficácia horizontal dos direitos fundamentais

Em decorrência da constitucionalização do Direito Civil, advém o reconhecimento da inequívoca aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas. Isto se dá pelo fato dos direitos fundamentais constituírem cláusulas pétreas, garantias constitucionais, razão que justifica sua aplicação não somente no direito público. Destarte, as relações jurídicas entabulada entre particulares não pode lesar os direitos fundamentais. Tal preceito denomina-se horizontalização dos direitos fundamentais. Assim, se dois particulares resolvem realizar um negócio jurídico, aquele que foi lesado em seu direito, poderá se valer da constituição cidadã para fazer valer sua garantia fundamental. Um exemplo prático e considerado um dos primeiros casos a ser implementado esse pensamento, foi quando o Supremo Tribunal Federal ordenou a reintegração à União Brasileira de Compositores um sócio que tinha sido expulso sem contraditório e ampla defesa. (RE 201819/RJ. Notem que as garantias constitucionais do contraditório e ampla defesa foram evidentemente aplicadas até mesmo na administração interna de uma associação sem fins lucrativos, que teve sua autonomia privada limitada por não respeitar princípios constitucionais atinentes a terceiro, no caso em tela, o próprio sócio . Tal autonomia privada só deve ser permitida desde que não lese os direitos fundamentais de outrem, o que garante a efetivação concreta do princípio da dignidade da pessoa humana.

Os direitos fundamentais são garantias constitucionais universais, são cláusulas pétreas, razão pelo qual não se pode pretender fechá-la somente nas relações de direito público. Se acontecesse tal engano, o Direito Civil, seria um ramo da ciência jurídica estranho à norma constitucional, e assim perderia sua roupagem protetora dos direitos fundamentais.

Nas lições de Dirley da Cunha Júnior , o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, resultou como conseqüência ímpar, a aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas. O que garantiu um progresso inolvidável para uma sociedade ávida por uma tutela privada imbuída de valores públicos e garantistas, respaldados na carta cidadã.

Imiscuindo de tais idéias, é condição de validade para a relação privada, o respeito às garantias fundamentais constitucionais, principalmente no Direito civil, ramo do direito que tutela a relação jurídica entre particulares. Assim, o passado não tão remoto de se aprisionar os direitos fundamentais ao âmbito estritamente publicista, como no direito penal por exemplo, dá espaço a uma interpenetração de direitos e valores constitucionais-fundamentais ao direito privado, em especial, o direito civil, aplicando-se por, sua vez, os direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas.

 

 

 

Capítulo 2.

Princípio basilar

2.1Paradigmas do Novo Código Civil

O Novo Código Civil trouxe como espinha dorsal de seus valores, três paradigmas bastante relevantes para sua compreensão como um todo. Esses três paradigmas são socialidade, eticidade e operabilidade. Muito importantes no direito obrigacional para orientar como deve se pautar a conduta dos possíveis contratantes, os paradigmas do NCCB concedem os benefícios atinentes ao respeito de determinadas regras.

A socialidade consiste na manutenção de uma relação de cooperação entre seus participantes, e entre seus participantes e a sociedade com o objetivo primordial de garantir o bem público comum da relação jurídica, que é a execução contratual, o adimplemento das obrigações. Visa a obtenção do adimplemento da obrigação de forma mais satisfativa ao credor e menos onerosa ao devedor que pretende resgatar sua liberdade . O interesse geral, o bem comum é o limite à realização de direitos individuais subjetivos do credor. Acima dos direitos do credor e do devedor, há direitos ainda maiores e mais importantes que são os da sociedade.

Fernado Noronha nos ensina que o interesse da coletividade, o bem comum, faz parte de um limite à realização dos interesses individuais subjetivos do credor. Quem afigura-se no pólo do credor tem obrigatoriamente um interesse em que o devedor realize a prestação, desde que tais direitos a serem adimplidos não sejam fúteis ou estranhos ao bem comum.

No paradigma da eticidade, pode-se compreender a ética como a ciência do fim para o qual a conduta humana deve se permear. Deve ser o ideal em que o homem necessita de se respaldar nas suas condutas e atitudes. E se a ética é a ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada, no Direito, o ideal para o qual uma sociedade orientará os seus fins e ações será perfeitamente na afirmação dos valores da justiça. Assim, a eticidade penetrará no NCCB através das cláusulas gerais transformando o ordenamento civilista em um sistema aberto e poroso que capte o universo axiológico-valorativo que lhe fornece sustentáculo. As cláusulas gerais são normas de conteúdo vago e impreciso com multiplicidade semântica. São normas que não prescrevem uma certa conduta, mas definem parâmetros e valores hermenêuticos que possibilita ao julgador adequar ao caso concreto a finalidade e os valores das normas buscados pelo senso de justiça na prestação da tutela jurisdicional. No direito das obrigações, o princípio da eticidade será concretizado principalmente nas cláusula geral da boa fé, função social, abuso de direito, equidade e bons costumes.

Para Karl Larenz , as cláusulas gerais são uma porta de entrada para o princípio do respeito à pessoa no direito privado. Logo é notório que o fundamento de que o respeito recíproco não abrange somente os direitos fundamentais, mas atravessa e abrange também todo o ordenamento jurídico, tanto os direitos fundamentais como os direitos privados. Sendo, por sua vez, subjacente a qualquer relação contratual, seja pública ou privada.

Pelo princípio da operabilidade ou concretude, vislumbra-se que o NCCB deseja ardentemente alcançar a pessoa concreta, sua dignidade, o seu ser em suas diversas peculiaridades, que o diferencia de qualquer outro ser vivo. Daí o motivo da inserção do termo pessoa no artigo 1º do Código Civil que diz:

“toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”

O princípio da concretude ou da operabilidade também alcança as rápidas formas de solucionar pretensões para evitar que os conflitos e as lides permaneçam por tempo indeterminado no judiciário. O século XX foi da era dos direitos, agora, o século XXI é o da efetividade dos direitos, pois eles existem para ser exercitados .

A prestação principal do negócio jurídico, seja dar, fazer, e não fazer é fator que decorre da vontade. Porém, outros deveres se impõem na relação jurídica obrigacional que se desvinculam da vontade dos seus participantes. São os chamados deveres anexos, deveres acessórios ou deveres de tutela. Daí surge a importância da boa fé objetiva com sua função integrativa, como fonte normativa do direito obrigacional na estrutura civilística contemporânea. Da boa fé objetiva irá decorrer os deveres que todos os contratantes devem se pautar quando implementarem negócios jurídicos, como a informação, lealdade, respeito, probidade, garantia e entre outros. É a colaboração mútua de parte a parte que possibilita a transparência e honestidade quando da realização da avença. Todas essas características propiciam um elastecimento do conteúdo contratual, pelo qual não decorre implicitamente da vontade das partes, mas sim de uma direta intervenção heterônoma legitimada pela retórica de que o contrato deva atender precipuamente a finalidade social .

2.2 Princípio da boa fé objetiva

Insta salientar que a boa - fé objetiva é uma cláusula geral, de conceitos abertos que permite ao magistrado adequar a aplicação do Direito ao caso concreto de modo que atenda os valores sociais e axiológicos do momento oportuno na sociedade. Nota-se que o princípio da operabilidade começa a tomar contorno através dessa exemplificação, ao passo que as cláusulas abertas propiciem a prestação efetiva da tutela jurisdicional por meio da extensão do conteúdo semântico em que o juiz pode se valer para desenvolver normas jurídicas através do reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; elementos esses, que fundamentarão a decisão.

Existem duas acepções da boa - fé, uma subjetiva e a outra objetiva. A boa – fé objetiva, que circunscreve-se ao campo do direito obrigacional, compreende um modelo ético de conduta social, verdadeira regra de conduta consubstanciada com certos padrões sociais de lisura, honestidade e correção para que não se frustre a legítima expectativa de confiança da outra parte.

A boa – fé objetiva pressupõe as seguintes características:

a) Relação jurídica que liga duas pessoas, impondo-lhes especiais deveres mútuos de conduta;

b) Padrões de comportamento exigíveis do profissional competente

c) Reunião de condições suficientes para motivar na outra parte um estado de confiança no negócio entabulado;

Já a boa – subjetiva, é o que a pessoa pensa a respeito de determinado assunto baseado na própria boa – fé, o que nem sempre condiz com a boa – fé objetiva, pois nem sempre os valores que a pessoa traz consigo condizem com a realidade da lealdade e probidade. Por isso, Cláudio Godoy afirma que o contratante pode perfeitamente ignorar ou desconhecer a ilegalidade de sua conduta, agindo de boa – fé subjetiva, mas contrariando a boa – fé objetiva, pressuposto da legítima expectativa de direito do outro contratante .

Um exemplo interessante e famoso que foi noticiário da imprensa aconteceu com o conhecido cantor chamado “Zeca Pagodinho”. Tal cantor rompeu um contrato publicitário com uma empresa que fabricava cervejas e passou a ser garoto-propaganda de sua concorrente. Alegou o cantor que não sabia de seu compromisso de exclusividade com a empresa. Não obstante, sem discutir a eventual presença ou não da boa – fé subjetiva, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a quebra do princípio da boa-fé objetiva, em razão da violação de deveres anexos do contrato, como os deveres de probidade, honestidade, respeito e lealdade. Portanto, por mais que pra ele, cantor Zeca Pagodinho, possa ter agido com boa-fé (subjetiva), ele não agiu com boa – fé objetiva. Assim, a boa – fé objetiva é analisada externamente, a aferição é dirigida à conduta do indivíduo, pouco importando a sua convicção íntima (boa – fé subjetiva).

O contrário da boa – fé objetiva não é a má – fé, mas a ausência de boa – fé, que pauta seu interesse no bem público comum, na coletividade, para que as pessoas pautem seu agir através de cooperação, lealdade, com sentimento de justiça social e com repressão a todas as formas de condutas que importem em desvio dos parâmetros palmilhados pela honestidade e retidão.

Por todas essas razões, a boa – fé objetiva é fonte de obrigações, que impõe comportamentos aos contratantes, de acordo com regras de boa conduta e em conformidade com o homem respectivo daquele meio social.

Eugênio Kruchewsky sustenta que a boa – fé objetiva “afirma-se como um comportamento leal, uma atitude de efetiva colaboração com o direito do outro”. Enfim, em palavras rápidas, trata-se da exigência de que todas as partes que confluem numa relação obrigacional “tenham atitude pró-ativa, zelando pela realização do direito alheio, a fim de que tudo quanto programado (...) seja efetivamente atingido”.

A dignidade da pessoa humana é ao mesmo tempo valor e princípio, constituindo elemento decisivo na formação e constituição de qualquer estado democrático de direito. Nessa perspectiva, a dignidade humana assume o modelo de cláusula geral apta a condicionar todo o restante do ordenamento jurídico. Ao ter como tábua valorativa-axiológica a dignidade da pessoa humana, o Direito Civil e a Constituição Federal manterão intenso vínculo comunicativo, com repercussão material dos princípios que lhes são idênticos. Observando a conjuntura estrutural das obrigações por este prisma, a boa-fé objetiva passa a ser a pedra de toque, ou o princípio da dignidade no campo do direito obrigacional.

Enquanto o ser humano necessita da dignidade para viver em suas relações afetivas, no campo de suas relações obrigacionais o ser humano necessita da boa-fé objetiva, significando a mais próxima tradução da confiança, que sustenta todas as formas de convivência em sociedade. A despatrimonialização do direito privado, representada pela mudança de enfoque ao passar do “ter” para o “ser”, é legitimada tanto pela Constituição Federal quanto pelo Código Civil.

A boa-fé é a maior demonstração de eticidade do ordenamento civilista. A eticidade, por sua vez, relaciona-se de forma mais próxima com a noção de moralidade, uma forma de comportamento suportável em determinado tempo e lugar. Destarte, o julgador se valerá da boa fé objetiva para se valer de parâmetros na eleição de condutas que guardem correlação objetiva entre meios e fins. A boa-fé será utilizada no caso concreto, em consonância com os dados fáticos elencados e revelados pela situação jurídica existente.

Segundo Renan Lotufo , o destinatário da vontade não pode ater-se somente ao sentido literal da declaração, pois lhe é incumbido o dever de diligenciar a precisão do conteúdo volitivo do negócio, conforme a boa-fé. Neste caso, se o destinatário cumpre esse requisito, sua fé merecerá proteção, bem como sua confiança, caso em que será válida a declaração com o significado que extraiu.

Segundo Judith Martins-Costa a boa-fé é multifuncional, pois tem operatividade em três áreas no NCCB:

a) Desempenha papel de paradigma interpretativo na teoria dos negócios jurídicos;

b) Assume caráter de controle limitador e restritivo, impedindo o abuso de direito subjetivo;

c) Desempenha uma função integrativa, impondo deveres anexos, laterais presentes nas mais diversas situações negociais como probidade, lealdade, honestidade e entre outros;

Vale lembrar que todos os deveres anexos impostos pela boa-fé objetiva não precisam estar expressos no contrato ou negócio jurídico, pois esses deveres acessórios e laterais são implícitos em qualquer relação jurídica. Quando se faz um negócio jurídico, não é preciso ir longe para descobrir que um espera do outro, um comportamento justo, digno, pautado na lealdade, no caráter de honestidade e probidade, levando um a crer no outro de que irão executar a avença de modo digno e escorreito. Entrementes, é necessário de que no conteúdo da relação obrigacional tenha a fixação do dever principal da avença, ou seja, a disposição das obrigações inerentes a cada parte, o que cabe a cada um fazer, não fazer ou executar, tudo isso com os deveres acessórios implícitos da boa-fé.

Ademais, o artigo 113 do NCCB é explícito ao dispor que os negócios jurídicos serão interpretados de acordo com a boa-fé. Isso, faz com que a otimização do comportamento contratual tenha substrato na teoria da confiança, e não mais na teoria da vontade (em que predominava a vontade interna das partes sobre a declaração) ou na teoria da declaração (em que predominava o texto do contrato, ignorando o aspecto psíquico das partes). De certa maneira, a teoria da confiança é a junção dessas duas teorias, é um ecletismo dessas duas teorias. Por essa teoria, o julgador analisará a vontade objetiva do contrato, buscará como parâmetro o que pessoas honestas e leais do mesmo meio social dos contratantes entenderiam a respeito do significado das cláusulas postas em divergência.

Nessa esteira, Renan Lotufo defende:

o destinatário não pode ater-se simplesmente ao sentido literal da declaração, porque lhe incumbe também o dever de diligência na precisão do conteúdo volitivo do negócio, conforme a boa-fé. Se o destinatário cumpre esse requisito, merece proteção sua fé, sua confiança, em que a declaração é válida com o significado que extraiu.

Além de servir à interpretação do negócio jurídico, a boa-fé é fonte de integração da norma que cria deveres jurídicos que devem ser aplicados antes da realização do contrato, durante a realização do contrato e até mesmo depois da realização do contrato. É uma responsabilidade pré-contratual e pós-contratual que pode ser reclamada por uma das partes lesadas, caso alguma das partes não implementem tais responsabilidades na suas condutas. Os remédios habituais são ação indenizatória, resolução contratual ou alegação da exceptio non adimpleti,ou melhor, exceção do contrato não cumprido. A função integrativa da boa-fé se encontra no artigo 422 do novo código civil que diz:

“os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa fé”.

Interessante precedente jurisprudencial de quebra dos deveres de probidade e boa-fé que pode-se vislumbrar foi quando o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu a responsabilidade civil de uma indústria de gêneros alimentícios. Observa-se a ementa:

“Responsabilidade da empresa alimentícia, industrializadora de tomates, que distribui sementes, no tempo do plantio, e então manifesta a intenção de adquirir o produto, mas depois resolve, por sua conveniência, não mais industrializá-lo naquele ano, assim causando prejuízo ao agricultor, que sofre a frustração da expectativa de venda da safra, uma vez que o produto ficou sem possibilidade de colocação” (TJ/RS, Ac. 5ª Cam.Cív., ApCÍv.591028295 – comarca de Canguçu, rel.Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, j. 6.6.91, in RJTJRS 154:378)

Nesse instante, vale pontuar que o ponto de partida para o entendimento dos deveres de conduta é a compreensão da realidade jurídica como um todo, em que devedor e credor devem pautar-se com condutas leais e justas para que assumam não uma postura de opositores, mas sim de colaboradores rumo ao adimplemento e ao bem comum .

O artigo 187 do Código Civil reza:

“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Diante de tal preceito legal, nota-se a “função limite” ao exercício do direito subjetivo, pois aquele que é titular de um direito, não pode exercê-lo transpassando a boa-fé de modo abusivo pelo simples fato de ser detentor de liberdade negocial.

Ao contrário do ato ilícito baseado na culpa, o abuso do direito dispensa o elemento intencional do agente, a necessidade de prejudicar o ofendido. Ao exercitar um direito subjetivo é suficiente que o agente somente agrida os limites éticos do ordenamento jurídico, sem estar sua conduta calcada na intenção íntima de causar prejuízo a outrem. Portanto, mesmo se a conduta estiver adequada ao direito objetivo, for tutelada pela lei, o seu titular que abusou do direito será censurado pela boa-fé.

A proibição ao abuso de direito demonstra que na atualidade jurídico-social, não mais é louvável e nem possibilitado pelo direito o brocardo “tudo que não é proibido é permitido”, pois existem situações jurídicas que não violam certas normas de modo formal, mas são permeadas de antijuridicidade por ofender de modo material os objetivos do sistema e a própria alma do Direito.

O desafio dos juízes e desembargadores se pauta na tentativa efetiva de possibilitar uma real operabilidade da boa-fé, fazendo com que essa atue de modo eficaz nas relações jurídicas para permitir a ética, lealdade, probidade e honestidade nas relações sociais a fim de que tal princípio não se afigure apenas como referência ética e metajurídica sem qualquer concretização no plano operacional.

 

 

Capítulo 3.

Vedação do comportamento incoerente

3.1 Aspectos Gerais

A teoria do abuso do direito veio a lume no final do século XIX, como superação de concepções individualistas que tinham como lema a liberdade e entendia o direito subjetivo como poder da vontade e da expressão maior da liberdade individual. Com a teoria do abuso do direito, houve uma relativização do direito subjetivo do indivíduo, que muitas vezes se excedia no seu exercício tornando o seu direito uma ofensa aos direitos do próximo. Desta feita, a concepção da teoria do abuso do direito passa a consistir nas seguintes bases estruturais: titularidade de um direito subjetivo, utilização do direito nos limites traçados pela norma, confrontação do elemento pessoal (subjetivo) com a função finalística do direito em causa (elemento social ou objetivo).

A análise da investigação de tal teoria remete-se para o campo interno e estrutural do direito subjetivo, identificando a sua espinha dorsal no confronto entre o exercício formal do direito e o seu fundamento valorativo. Se aparentemente o comportamento do titular atende ao direito, talvez no ato concreto do seu exercício haja uma violação de ordem material, descumprindo-se então o sentido axiológico da norma.

A teoria do abuso do direito está expressamente consagrada no NCCB em seu artigo 187 que diz:

“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

O abuso do direito é constatado no instante da violação do aspecto axiológico da norma. E esse essencial valorativo do abuso do direito se dá pela boa-fé, pelos bons costumes e pela função essencial e econômica dos direitos. No direito obrigacional, o citado artigo é a cláusula geral mais rica existente, pois fornece uma gama de interpretações que se pautam na honestidade, lealdade e probidade, atributos esses que são indispensáveis em qualquer relação jurídica. Deste modo, o exercício de um direito contrário ao interesse geral será ilícito, antijurídico, caracterizando o abuso de direito.

A Constituição Federal no seu artigo 170 assevera que a ordem econômica será submetida aos princípios da justiça e solidariedade. Destarte, se não ocorrer tal respeito, deverá haver uma intervenção no âmbito da liberdade contratual se acaso o contratante atuar de modo lesivo ao bem comum. Esses são os preceitos que o titular do direito deve exercitar para que não haja necessidade de intervenção do estado para garantir o exercício dos direitos do seu titular conformados com a boa-fé, bem público comum, proporcionalidade e razoabilidade, valores permeados pela nova roupagem civilista-constitucional.

Note-se que a teoria do abuso do direito é objetivo-finalística , não residindo no plano psicológico da culpabilidade, mas no desvio do direito de sua finalidade função social. Este entendimento está preconizado no enunciado 37 das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal:

“A responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe da culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

O artigo 187 do NCCB traduz uma grande corroboração dos valores impregnados no artigo 3º, I, da Constituição Federal, propiciando uma lídima ponderação entre o exercício da autonomia privada do sujeito e os valores solidários que fundamentam o ordenamento. Toda essa dinâmica tem um fim específico de garantir a harmonização dos referidos princípios sempre com vista ao valor supremo da preservação da dignidade da pessoa humana.

Um dos comportamentos abusivos do direito é o tema central do presente trabalho. Nemo potest venire contra factum proprium, proibição do comportamento contraditório, princípio da tutela da confiança legítima ou vedação do comportamento incoerente. Tal instituto demonstra a essência imediata de uma obrigação que deve se pautar conforme a boa-fé objetiva, senso ético esperado por todos. É modalidade de abuso de direito que decorre da violação do princípio da confiança advindo da função integrativa e limitadora da boa-fé objetiva.

Relaciona-se com o solidarismo social , impondo ao Estado o direito de intervir nas relações privadas para efetivar a dignidade da pessoa humana na medida em que houver contradição no comportamento do titular do direito. Traduz-se no balizamento de condutas e comportamentos de indivíduos visando a realização da solidariedade social. Deve-se analisar as condutas e os seus efeitos de acordo com a lógica da coerência.

Insta salientar que a vedação do comportamento incoerente não está contemplada expressamente no ordenamento jurídico, mas ao perpetrar uma hermenêutica liberta do positivismo dogmático, percebe-se claramente que o venire contra factum proprium é consectário lógico da repressão ao abuso de direito, o que propicia perfeitamente sua aplicação no direito brasileiro.

3.2 Definição e características do instituto

A vedação do comportamento contraditório impede que alguém possa contradizer seu próprio comportamento após ter produzido em outrem uma legítima expectativa. Prioriza-se a proibição de uma inesperada mudança de comportamento ao contradizer uma conduta anterior que surtiu uma expectativa legítima em terceiros . Em suma, defende a idéia de que ninguém poderá se opor ao fato que ele mesmo ocasionou.

Aldemiro Rezende Dantas define o contra factum proprium como

uma seqüência de dois comportamentos que se mostram contraditórios entre si e que são independentes um do outro, cada um deles podendo ser omissivo ou comissivo e sendo capaz de repercutir na esfera jurídica alheia, de modo tal que o primeiro se mostra suficiente para fazer surgir em pessoa mediana a confiança de que uma determinada situação jurídica será concluída ou mantida.

Da lição de Aldemiro Rezende acima citada, pode-se extrair os seguintes elementos caracterizadores do instituto em comento:

a) Conduta inicial;

b) Legítima confiança despertada por conta dessa conduta inicial;

c) Um comportamento contraditório em relação à conduta inicial;

d) Um prejuízo concreto ou potencial decorrente da contradição

A aplicação da proibição do comportamento contraditório já está bastante presente na jurisprudência brasileira. O Superior Tribunal de Justiça, admitindo e aplicando o venire contra factum proprium em nosso ordenamento, já decidira que em "havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior". (Resp. n° 9553-9 – SP – Min. Ruy Rosado de Aguiar).

No mesmo julgado do STJ temos:

“Promessa de compra e venda. Consentimento da mulher. Atos posteriores. Venire contra factum proprium. Boa-fé.(...)

A mulher que deixa de assinar o contrato de promessa de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juízo, expressamente admite a existência e validade do contrato, fundamento para denunciação de outra lide, e nada impugna contra a execução do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissários compradores exerceram pacificamente a posse sobre o imóvel, não pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos próprios” (STJ, AC. 4ªT. Resp.95539/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 3.9.96).

Em outro julgado do STJ, esse julgou um recurso de um Poder Público Municipal que, após realizar inúmeras promessas de compra e venda de lotes pertencentes a uma gleba de sua propriedade, pretendia anular todos os negócios entabulados, alegando que o parcelamento, que ele mesmo promoveu, não estava regularizado, faltando o indispensável registro. Assim decidiu o STJ: “tendo o município celebrado contrato de promessa de compra e venda de lote localizado em imóvel de sua propriedade, descabe o pedido de anulação dos atos, se possível a regularização do loteamento que ele mesmo está promovendo... A teoria dos atos próprios impede que a Administração Pública retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento” (STJ, AC.4ª T.,Resp. 141879/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 17.10.98)

Perfazendo uma análise dos elementos de tal instituto têm-se:

Factum proprium ou conduta inicial, é o comportamento inicial advindo de um ato humano, podendo ser uma ação ou omissão . Em princípio não é uma ato vinculante, embora seja válido, só se torna vinculante a partir do momento que gera em outrem uma legítima expectativa, atingindo sua confiança e reclamando a aplicação do princípio em comento. Aldemiro Rezende salienta:

Ora, mas, a partir do momento em que o comportamento do sujeito repercute na esfera alheia, passou a ser juridicamente relevante, ou seja, passou a ser um fato jurídico, capaz de provocar conseqüências jurídicas relevantes. Não é demais recordar a clássica lição de Miguel Reale, que, ao falar sobre o fato jurídico, esclarece que se trata de todo e qualquer fato da vida social que venha a corresponder ao modelo de comportamento previsto na norma do direito, ou seja, é o fato capaz de provocar conseqüências jurídicas. Logo, se o factum proprium é aquele que repercute na esfera jurídica alheia, então provoca conseqüências jurídicas, ou seja, é um fato jurídico, é juridicamente relevante. Na verdade, no essencial não há qualquer distinção entre a conclusão alcançada por Anderson Schreiber e a que foi por nós mencionada (...) o factum proprium deverá, necessariamente, repercutir na esfera jurídica alheia.

Legítima confiança é uma adesão ao sentido objetivamente extraído do factum proprium, e não um estado psicológico subjetivamente criado pelo receptor do comportamento inicial. Existem alguns critérios que transmite essa idéia objetiva da legítima confiança que são gastos e despesas decorrentes do factum proprium, divulgação pública das expectativas do contratante motivado pelo comportamento inicial, adoção de medidas e abstenção de atos por razão de comportamento proprium, grau elevado de repercussão exterior e entre outros.

Para comprovar-se a confiança, não é necessária uma demonstração rigorosa, basta o julgador vislumbrar, através do fato concreto que realmente o prejudicado levou prejuízo por ter aderido à conduta anterior do contratante incoerente, pois se acaso não tivesse aderido, não levaria prejuízo. A análise da legítima expectativa deve ser realizada de forma objetiva, assim como o contratante obteve essa expectativa, qualquer pessoa, pelo fato próprio ocorrido, teria também criado uma legítima expectativa.

O ato posterior contraditório é a conduta posterior que contraria o comportamento inicial, é o segundo comportamento incoerente com o que foi manifestado no primeiro. Aqui também, tal comportamento contraditório é analisado de forma objetiva em decorrência do princípio da boa-fé objetiva não se perquirindo a vontade do agente e sim somente o seu ato de modo objetivo.

O que deve ser analisado de modo objetivo é se de fato houve uma contradição do comportamento posterior com o comportamento anterior, pouco importando se houve erro ou dolo na prática do ato. Também não se exige ilicitude da conduta, pelo contrário, a conduta é lícita. Basta apenas haver incoerência entre dois comportamentos. Ainda nos dizeres de Aldemiro Rezende Dantas Júnior :

No venire, cada um dos comportamentos, quando individualmente considerado, mostra-se válido (ou, pelo menos, aparentemente válido), mesmo porque, se não o fosse, não estaríamos na seara do venire contra factum proprium, mas no puro e simples campo da ilegalidade. O que vem a se mostrar ilícito, portanto, não é o considerar isolado de qualquer dos dois comportamentos, mas a conduta do sujeito considerada de modo global, ou seja, a conduta considerada como o conjunto dos dois comportamentos mencionados”.

Se o segundo comportamento ocorre através de um ato ilícito, as sanções a esse ato ilícito virão do próprio ordenamento que contém meios de combatê-lo e não de meios que protegem a solidariedade e a confiança das relações privadas, ou seja, havendo ilicitude não se faz o uso do comportamento contraditório para combater tal ato , mas sim de normas específicas para combatê-lo como anulabilidade, nulidade de negócio jurídico e entre outros. Logo, o venire é uma conduta aparentemente lícita que se torna abusiva ou ilícita em decorrência da ofensa da boa-fé e legítima expectativa através do comportamento incoerente. Destarte, o primeiro comportamento, ainda que não vincule o sujeito, induz no outro a idéia, a expectativa de que aquele atuará de uma certa maneira, com um determinado comportamento, e o que ocorre é uma atitude incompatível com a qual ele criou no outro, contradizendo então seu comportamento anterior. Vale ressaltar que este comportamento posterior deve ser injustificado, pois se houver um motivo relevante haverá o afastamento do Nemo potest venire contra factum proprium. Ademais, não se exige um lapso de tempo para praticar o ato incoerente, pode ser até mesmo simultâneo, desde que a repercussão do dano tenha sido sofrida pelo lesado em momentos diferentes.

O dano efetivo ou potencial é o dano realmente ocorrido ou a mera capacidade de ocorrer um dano, respectivamente. Nas lições de Schreiber temos:

O mero potencial lesivo já é suficiente, porque, sendo bem sucedido em seu efeito primordial, o nemo potest venire contra factum proprium impedirá mesmo a produção de qualquer prejuízo, obstando o comportamento contraditório. Se, todavia, o comportamento contraditório não puder ser obstado a tempo, e dano se verificar, assumirá o princípio um efeito reparatório, impondo o desfazimento da conduta posterior ou ressarcimento pecuniário dos danos, conforme o caso.

Regra geral os danos ocorridos no venire são materiais, podendo se falar em danos morais em algumas situações peculiares analisadas pelo juiz no caso concreto, quando, além da conduta contraditória ter ofendido o patrimônio do lesado, tenha agredido também seu direito da personalidade.

Ao analisar os elementos caracterizadores da proibição do comportamento contraditório é imperioso fazer um estudo da função de tal instituto no ordenamento jurídico. O que passa-se adiante.

A boa-fé objetiva, como citado no presente trabalho, tem três funções no ordenamento jurídico: interpretativa, integrativa ou criadora de deveres anexos à prestação principal e controladora ou limitadora do exercício de direitos. A função precípua do Nemo potest venire contra factum proprium se apresenta mais estreita com a terceira função (limitadora do exercício de direitos), embora tenha traços marcantes com a segunda também (criação de deveres anexos).

Esta função principal do instituto em comento – limitação do exercício de direitos – tem o escopo de impedir o exercício de posições jurídicas que contrariem a lealdade e a confiança que deve orientar as relações jurídicas. Trata-se da boa-fé em seu sentido negativo ou proibitivo. Schreiber preleciona:

A terceira função geralmente atribuída à boa-fé objetiva é a de impedir o exercício de direitos em contrariedade à recíproca lealdade e confiança que deve imperar nas relações privadas. Trata-se de uma aplicação da boa-fé em seu sentido negativo ou proibitivo: vedando comportamentos que, embora legal ou contratualmente assegurados, não se conforme aos standards impostos pela cláusula geral. Aqui, a doutrina utiliza frequentemente a expressão exercício inadmissível de direitos, referindo-se ao exercício aparentemente lícito, mas vedado por contrariar a boa-fé.

Aquele que remete uma atitude a terceiro criando uma legítima expectativa, não pode exercer seu direito posteriormente abusando da coerência, lealdade, excedendo na manifestação de seu direito e contrariando o seu comportamento anterior. Entra em ação a função da boa-fé de impedir esse ato contraditório, conformando as atitudes dos incoerentes a um comportamento justo, ético e condizente com o primeiro . Portanto a função primordial do venire contra factum proprium é tutelar a confiança por meio da vedação à incoerência, aplicando essa cláusula geral da boa-fé com a finalidade de se proteger as legítimas expectativas criadas em outrem.

 

 

 

 

Conclusão

A dogmática jurídica passou por transformações exponenciais na pós-modernidade. Enlevada pelo espírito do estado republicano de direito, o hermeneuta buscou a compreensão da realidade social através da lei, modelo ético e justo que representa a democracia republicana dirigida por um estado legalizado e legitimado pela vontade do povo. Com o progresso indubitável do Estado Federativo Brasileiro, surgiu em 1988 a Constituição cidadã, pedra fundamental de toda construção normativa jurídica que repercutiu e até hoje vem repercutindo nos variados campos do direito.

Um destes direitos que ganhou um redimensionamento ímpar foi o direito civil, regulador e promovedor dessa arte espetacular que é a convivência numa comunidade social. Instituidor de regramentos que antecedem o nascimento de uma criança até o seu falecimento, perpassando por sua vida, dispondo acerca de suas relações jurídicas, afetivas e sociais, o direito civil sofreu uma transformação, no mínimo extraordinária. Ao implementar em seus institutos e textos legais estes valores primorosos esculpidos na carta magna, o direito civil possibilitou um alcance tremendo no que toca aos anseios sociais. E esse é o espírito do direito, garantir a justiça aos anseios da sociedade, conforme suas necessidades prementes pautando como essência de tudo a ética, a boa-fé, a igualdade substancial, o solidarismo social, a probidade, a lealdade, a justiça e em suma, o amor. Amor esse pregado por Jesus de Nazaré há mais de dois mil anos, que resumia todos estes atributos fantásticos relacionados anteriormente. Essa é alma que deve ser permeada não só nos textos de lei, nem tampouco na cabeça dos juízes, mas sim na consciência do ser humano, como ser racional que consegue analisar, pensar, raciocinar, evoluir e modificar a sua própria realidade, pelo bem próprio e principalmente pelo bem de todos.

Enquanto estes ideais axiológicos não chegam à consciência de todos os homens existentes na Terra, é preciso que este Estado de Direito, oportunizado pela teoria do contrato social de Rosseau, garanta não só a disposição desses direitos na carta magna ou no código civil e sim que garanta a real efetividade de tais a fim de que a justiça e a dignidade imperem no seio das relações sociais através das ações afirmativas tanto no campo das relações jurídicas públicas quanto nas privadas.

No momento em que o direito atender as prerrogativas do cidadão, e este titular exceder manifestamente o seu direito e atentar contra tais valores supracitados, surge o abuso de direito, surge a quebra da confiança, a destruição de valores essenciais num estado democrático de direito. Assim é que o poder público deve dirigir de forma ponderada o livre arbítrio daqueles que não tem capacidade de coadunar suas ações com valores de justiça e boa-fé.

Nesse ínterim entra em ação uma das teorias que combate o abuso de direito. A proibição do comportamento contraditório vem a calhar de modo bastante eficaz para impedir injustiças e desmandos nas relações jurídicas privadas e até mesmo públicas. Permeada pela função integrativa e limitadora da boa-fé objetiva, a vedação do comportamento incoerente invade o campo da autonomia privada e cerceia a liberdade do indivíduo que não conformou suas atitudes pela lealdade, probidade e ética.

Sem existir disposição expressa acerca de tal modalidade de abuso de direito, o venire contra factum proprium é decorrência natural da cláusula geral da boa-fé objetiva, essa expressa no Código Civil. Note a importância das cláusulas gerais, valores insculpidos nos textos legais que propiciam a busca de outros valores com aqueles conformados na medida em que surge uma necessidade prática jurídica para o juiz aplicar o direito. As cláusula gerais pautadas pela operabilidade, a justiça e a boa-fé pautadas pela eticidade e a convivência harmônica e salutar pelos indivíduos em sociedade pautadas pela socialidade denota a grande evolução do direito civil para o ordenamento jurídico. A dignidade da pessoa humana é pedra de toque de todos estes parâmetros valorativos almejados pela sociedade, pelo direito, pela política, pela religião, enfim pela consciência do homem que cumpre seu dever e procura respaldar suas atitudes naquelas que ele queria que fossem a ele dirigidas.

 

 

 

 

 

 

Referências

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Data de elaboração: janeiro/2011

 

Como citar o texto:

FILEMON, Wainer Augusto Melo..Proibição do comportamento contraditório. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/2335/proibicao-comportamento-contraditorio. Acesso em 16 out. 2011.

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