1 INTRODUÇÃO

 

O termo responsabilidade presta-se a diversas acepções. Fala-se em responsabilidade penal, por exemplo, como aquela que pressupõe um indivíduo livre para agir, que falta com o seu dever formulado por uma regra de caráter superior. Trata-se de responsabilidade intimamente relacionada à ideia de culpa, de modo que a sanção deve, por princípio, ser proporcional ao elemento subjetivo da conduta.

Neste trabalho, a noção central é a de responsabilidade civil, assim entendida como aquela caracterizada por aspectos patrimoniais: pressupõe reconhecer um equilíbrio econômico entre dois patrimônios a ser restabelecido. Além do mais, esse artigo versará sobre a responsabilidade civil do Estado, tema sempre atual, ante a multiplicidade dos desafios que diuturnamente se apresentam ao mundo jurídico, em virtude de seu caráter dinâmico, resultando em acelerado evolução.

Nesse sentido, tem se que, para a devida compreensão do fenômeno, é mister a análise de sua evolução histórica, tendo em vista que o Direito, como produto humano, sofre inexoravelmente as influências das coordenadas de espaço e tempo em que está inserido. E, no caso particular da responsabilidade civil do Estado, avulta-se a importância dessa compreensão histórica, sobretudo porque, atualmente, nota-se que essa evolução não se deu na forma de superação de fases, como é comum em outros institutos jurídicos. Na verdade, hoje ainda convivem teorias gestadas nas mais diversas fases, as quais, como se defenderá, são inadequadas para enfrentar os problemas da contemporaneidade.

Ainda há doutrina e jurisprudência que visa sustentar, em plena vigência de um Estado Democrático de Direito, inspirado pelos postulados do neoconstitucionalismo, teorias que se fundavam em concepções autoritárias de poder, típicas do absolutismo – como se observa, por exemplo, nas teorias da irresponsabilidade que ainda prevalecem no âmbito dos danos causados por atividades legislativas e jurisdicionais, apenas excepcionadas, majoritariamente, em estreitos casos.

Registra-se que esse artigo não virá impugnar, uma a uma, as teorias que pretendem defender a irresponsabilidade do Estado nesses âmbitos. Visa-se, aqui, tão somente apontar a incoerência de fundamentar limites a direitos fundamentais dos cidadãos com base em teorias já rechaçadas historicamente pelo pensamento jurídico europeu-continental.

Dessa forma, é necessário firmar posição contra a mera adoção de teorias que não mais se sustentam, à luz da vigente Constituição. Para tanto, é imperioso conhecer as referidas teorias, bem como o contexto histórico em que foram gestadas, de modo a se munir de argumentos para a construção de uma teoria geral da responsabilidade do Estado, legítima e democrática. Aqui se utilizará, para tanto, do esquema metódico proposto por Paul Duez (1938, p. 13-14), que consiste na tripartição metodológica das fases históricas, a que é exaustivamente adotada pelos contemporâneos.

Nesse sentido, este artigo é composto dessa introdução, considerada o primeiro capítulo, mais quatro partes. No segundo, serão abordadas as teorias que pregavam a irresponsabilidade estatal. No terceiro, serão tratadas as teorias ditas civilistas, que, num primeiro momento em que se pensou a responsabilidade do Estado, a identificou com aquela já disciplinada do direito privado. Na quarta, se abordarão as teorias chamadas publicistas, que visam enfrentar a questão à luz de parâmetros peculiares ao direito público, sempre referenciando o contexto histórico das teorias. E, na quinta e última, virá a conclusão, sintetizando as principais ideias do trabalho, indicando algumas correntes de pensamento que ainda se embasam em teorias historicamente defasadas e incompatíveis com o atual desenvolvimento da matéria, sobretudo no bojo de um Estado democrático de Direito.

2 TEORIAS DA IRRESPONSABILIDADE

A tese segundo a qual o Estado não poderia ser demandado a responder pelos danos causados por suas atividades foi uma constante na história pelo menos desde a Roma antiga. Amaro Cavalcanti reconhece a existência de algumas disposições especiais do direito romano, pelas quais se poderia buscar reparação por danos causados por excessos ou abusos de magistrados e outros funcionários públicos, junto a eles próprios. Inexistia, contudo, uma disposição que impusesse ao Estado o dever de reparar os danos causados por seus funcionários, nem solidária, nem subsidiariamente (1905, p. 118).

É verdade que ali se podia encontrar o que poderiam ser fundamentos remotos da responsabilização do Estado pelos atos de seus funcionários no exercício de suas funções, a exemplo da previsão os atos dos representantes de César reputavam-se atos do próprio César (ULPIANUS; PAULUS; CALLUSTRATUS, 1889, p. 17). Havia ainda numerosos textos nos quais se admitia a obrigação de responder por fatos de outrem, a exemplo, da disciplina das relações de mandato, as exercitorias, institorias, quase institorias, dentre outras, que poderiam servir, por analogia, de fundamento à responsabilidade do Estado em casos semelhantes (CAVALCANTI , 1905, p. 118).

Entretanto, os romanos não chegaram a afirmar que o Estado seria responsável pelos seus atos. Isto porque, em Roma, o Estado não poderia ser obrigado a comparecer em juízo, uma vez que aquele ordenamento não reconhecia uma função jurisdicional apartada da executiva. Por consequência, nas clássicas palavras de Ruy Barbosa: “se a administração, cuja é a culpa do damno, se amalgama, nas mesmas mãos, com a lei, que tem de regel-a, e a justiça, que há de julgal-a, impossível é a responsabilidade do estado (p. 1889, p. 39)”. A referida concepção é lastreada na clássica disposição “quod principi placuit, legis habet vigorem” – o que parece bom ao príncipe tem força de lei, pois nele se concentra toda a força e a autoridade (SANDARS, 1853, p. 91). Como os atos dos seus funcionários a ele se imputavam, todos os atos do estado eram sempre legítimos, feitos na suposição do bem comum, inclusive no daquele que pareceu ser lesado pelo ato (CAVALCANTI , 1905, p. 304).

Tal concepção de irresponsabilidade estatal atravessou toda a Idade Média, na qual tomou corpo o conceito de universitas, entendido como entidade solidária com os indivíduos componentes de sua existência comum (BARBOSA, p. 1889, p. 41). As noções de direitos individuais foram substituídas pelas ideias feudais de soberanos e vassalos, contexto no qual se tornava impossível a existência de obrigação jurídica do soberano – que dispunha de amplos poderes sobre o indivíduo – para com seus súditos. Os membros eram concebidos, pois, como porções integrantes e inseparáveis da coletividade, o que ensejou, é verdade, a responsabilidade desta por danos causados por quem lhe fosse estranho. Não se falava, ainda, por conta dessa ideia de não identificação, de responsabilidade da pessoa coletiva por danos causados a seus próprios membros (CAVALCANTI , 1905, p. 305).

Ora, a conclusão era lógica: quando a coletividade causava dano a um cidadão, não se poderia distinguir, realmente, entre o agressor e a vítima: pois aquela seria apenas uma expressão da vontade coletiva, do interesse de todos, inclusive do próprio lesado. Assim, alguém reclamar contra a coletividade seria como reclamar contra si mesmo.

Chegando-se à era os Estados absolutistas, nota-se uma maior preocupação com o tema. Tanto é que foi nesse momento que floresceram os debates e as sistematizações, já que, nessa época, o papel do Estado, durante muito tempo relegado a um papel secundário, retomou seu vigor. O Estado, por meio do soberano, era o titular de uma autoridade incontestável – de origem divina, até – para exercer a tutela do direito. Desta forma, entendia-se que jamais poderia o Estado agir contra o Direito, pois qualquer responsabilidade que lhe fosse atribuída significaria colocá-lo no mesmo patamar do súdito, em desrespeito à sua soberania, com o que se retomou a antiga ideia romana. Assim, restavam justificados os conhecidos adágios the King can do no wrong e le roi ne peut mal faire.

Ainda na segunda metade do século XVIII, ressoavam vozes na defesa da teoria da irresponsabilidade, trazendo fundamentos renovados para sustentá-la. Uma sorte desses argumentos, utilizados, exemplificativamente, por Saleilles, Windscheid e Michoud, fundamentava-se em antigas teorias acerca da pessoa jurídica. Sendo o Estado uma ficção legal, entendia-se que ele era incapaz de ter vontade própria. Desse modo, não poderia ser chamado a responder por atos lesivos a terceiros, já que a existência efetiva de vontade seria condição essencial à imputabilidade do ato. Ademais, como pessoa jurídica, seria o Estado um mero conjunto de direitos e obrigações, exercidos por seus representantes legais, no qual não se inclui o de cometer atos ilícitos. Caso algum funcionário, o cometa, responderia pessoalmente por eles, excluindo a responsabilidade do Estado (CAVALCANTI , 1905, p. 107).

2.1 EXCEÇÕES ÀS TEORIAS DA IRRESPONSABILIDADE

Havia, ressalte-se, vozes que pregavam a responsabilidade do Estado na hipótese, apenas nos casos em que o funcionário nomeado fosse sabidamente indigno ou incapaz. Sendo o Estado e funcionário pessoas distintas, a eventual culpa do funcionário não poderia significar automaticamente culpa do Estado. Ademais, a ação de um funcionário estatal que excedesse ou abusasse de seus poderes, não responsabilizaria o Estado, considerando que o mandante não pode ser responsável pelo excesso do mandato. Tal ideação era decorrência do pensamento de que o mesmo só era investido de poder de agir conforme o direito, de modo que, se o excedesse, contraía obrigação para si próprio, o que legitimava apenas a responsabilização pessoal do agente público. Ainda para os autores que já àquela época adotavam a conhecida teoria do órgão – entendendo que o funcionário não é nem representante, nem mandatário do Estado, mas o próprio Estado em ação, tal ideação tinha lugar. O ato do funcionário seria, destarte, ato do Estado, mas tal teoria só se aplicava enquanto o funcionário agisse dentro da lei. Ao cometer abusos, o funcionário não comprometeria o Estado; por outro lado, enquanto agisse dentro da lei, não se poderia responsabilizar o Estado pela prática de atos que estava ele obrigado a praticar (CAVALCANTI , 1905, p. 108-116).

Deve ser registrado que, mesmo entre os adeptos da teoria da irresponsabilidade, não era incomum a adoção de limites, ainda que em caráter excepcional. Nesse sentido, admitia-se a responsabilidade em caso de existência de previsão legal expressa, ou quando a culpa resultasse de fundamentos especiais, a exemplo do compromisso contratual de indenizar ou da natureza particular de determinado negócio; em casos de danos ocasionados em atividades privadas do Estado ou por atos praticados no interesse de uma propriedade do Estado; ou quando se tratasse de funções relativas à missão acessória (atividades-meio) do Estado, e não à sua função natural (atividades-fim).

Observe-se que tais situações podem fazer parecer que tais juristas deveriam figurar entre os adeptos das teorias civilistas da responsabilidade, na vertente que distingue a atuação estatal em dois grandes domínios – jus imperii e jus gestionis. Contudo, o que lhes garante um lugar nesta seção é o fato de que eles ainda defendem que a irresponsabilidade é a regra geral, sendo a responsabilidade uma exceção. Como adiante se abordará, os partidários da teoria civilista defendem que a regra é a plena responsabilidade do estado, afastando-a excepcionalmente, menos por questões afeitas à personalidade jurídica do que por questões ligadas à atividade desempenhada.

Tomando por exemplo o ordenamento francês, traz-se à lume a Lei 28 Pluvioso do ano VIII, que previa a responsabilidade do estado por conta de obras públicas. Admitia-se, ainda, a responsabilização direta do funcionário, caso a vítima pudesse comprovar sua culpa. Contudo, o art. 75 da Constituição do ano VIII previa que o manejo de ação indenizatória, em ambos os casos, dependia de autorização do Conselho de Estado, nem sempre concedida, o que comprometia tal responsabilização, de todo já excepcional (CAMPOS, 2011, p. 4).

Destarte, percebe-se que mesmo durante o predomínio da teoria da irresponsabilidade, a mesma não foi aplicada, na época sob enfoque, de forma pura, tendo a doutrina desenhado diversas situações em que se reconhecia, ainda que excepcionalmente, a responsabilidade por danos causados por atividades estatais.

Tal concepção perdurou, no sistema europeu continental, até a primeira metade do século XIX, enquanto ainda prevalecia a ideologia do Estado liberal que a inspirava: como tal modelo de Estado tinha limitada atuação, a irresponsabilidade era consequência lógica dessa sua isenção.

2.2 CRÍTICAS ÀS TEORIAS DA IRRESPONSABILIDADE

Com o evolver histórico, várias vozes levantaram-se contra a teoria da irresponsabilidade. A própria evolução do conceito e do entendimento acerca da natureza da pessoa jurídica encarregou-se de retirar a credibilidade dos argumentos tendentes a afastar a responsabilidade pelo fato de ser o Estado uma pessoa jurídica, destituída de vontade, por ser uma mera ficção jurídica. As teorias da representação, num primeiro momento, e do órgão, que afinal veio a prevalecer, lograram fundamentar juridicamente a existência de vontade da pessoa jurídica, relacionando-a com a vontade das pessoas naturais que dela tomam parte. Adicionalmente, as modernas concepções de responsabilidade objetiva e as várias vertentes da teoria do risco retiram da vontade a importância que outrora se lhe atribuiu para a configuração da responsabilidade.

O argumento no sentido de, por ser o Estado o órgão tutor e criador do direito, imunizado estaria contra a obrigação de indenizar contradiz a própria noção do Estado democrático de direito, podendo caber apenas nos antigos Estados absolutos, nos quais a vontade expressa do soberano era o próprio direito.

A adoção da tripartição dos poderes, a seu turno, veio a afastar a dificuldade existente nos Estados da antiguidade: a ausência de um órgão distinto e independente do poder que age, apto a apreciar os seus atos. Na ausência de tal estrutura, o ato executivo era a um só tempo lei e sentença, não havendo possibilidade lógica de ação do particular.

O fato de o Estado não ter fins próprios, mas somente existir para o bem dos próprios súditos não teria relevância para a análise de sua responsabilidade. O argumento no sentido de que os súditos deveriam suportar os ônus decorrentes da ação estatal por ser esta desempenhada em seu favor não deve autorizar o Estado a agir irresponsavelmente, pois a responsabilidade tem mais a ver com os meios adotados do que com os fins visados. A violação de direitos não seria admissível, pois seria contraditório com a própria finalidade do Estado, a quem cabe tutelar o direito em nome do bem comum (CAVALCANTI , 1905, p. 223).

A alegação no sentido de que o Estado ver-se-ia embaraçado em sua ação, ante o receio de seus agentes tampouco procedia. Não se concebe, de há muito, a existência de direitos ou poderes ilimitados – todos têm seus fundamentos e limites encontrados no próprio direito, como regra comum à ação dos indivíduos e do Estado (CAVALCANTI , 1905, p. 224). Desta forma, a atuação de qualquer ator da sociedade deve pautar-se por tais limites, positivos ou negativos, além dos quais, ensejando dano, deverá ser chamado a repará-lo. Seria uma construção ilógica conceber que o receio da responsabilidade pelo não cumprimento de suas obrigações ensejasse a imunidade à responsabilidade, o que estimularia, justamente, o não cumprimento dessas mesmas obrigações. O que é legítimo exigir é a existência de parâmetros claros na fixação dos direitos e obrigações, a fim de que todos, sociedade e Estado, possam, conscientemente, preordenar sua atuação.

Assim, demonstra-se restar superadas historicamente todos os fundamentos das teorias da irresponsabilidade. Destarte, não se pode conceber que tais teorias ainda se prestem a reinar, nem mesmo nos nichos específicos que a doutrina e mais tradicional ainda lhe reserva.

3 TEORIAS CIVILISTAS

À medida do desenvolvimento da sociedade e da transfiguração do Estado em Democrático de Direito, foi tomando corpo a introdução de princípios do Direito Civil para fins de verificação da responsabilidade estatal, apoiando-se na ideia de culpa. Trata-se de uma primeira reação à vetusta ideia da irresponsabilidade estatal.

No âmbito do Direito Civil, era milenar paradigma, herdado do Direito Romano, que não havia responsabilidade sem culpa provada. Nesse diapasão, a vítima, para obter a correspondente reparação por um dano sofrido, deveria demonstrar – já que tradicionalmente o ônus da prova pertence a quem alega o fato – que sofrera um dano, que o autor do fato cometera um ilícito (delito) e que o dano decorria desse delito: dano, conduta culposa e nexo causal, eis os grandes pressupostos da responsabilidade. Sem tal demonstração, era-lhe recusada qualquer indenização (JOSSERAND, 1941, p. 551).

Num meio termo entre as anteriores teorias da irresponsabilidade e a consagração das teorias civilistas, estavam aqueles que, distinguiam os atos de império dos atos de gestão.

Nesse sentido, os atos de império (jure imperii) eram os praticados pelo Estado dentro do exercício de funções que lhe são essenciais ou necessários, que visam assegurar a própria manutenção da ordem jurídica e a existência do próprio Estado. Tratava-se dos atos os atos imputáveis ao rei (que não podia errar), a exemplo da proibição de exportação de certas mercadorias, o estabelecimento ou modificação de tarifas aduaneiras e da mudança de limites de fronteira em consequência de convenções diplomáticas (SOURDAT, 1876, p. 419). Nessas condições, age o Estado no exercício de sua supremacia, em caráter supra-individual (CAHALI, 2007, p. 22). Como consequência, não respondia quanto aos de império, pois estes eram protegidos pelas então vigentes normas protetivas da figura estatal.

Já os atos de gestão (jure gestionis) eram os atos por meio dos quais o Estado agia como uma pessoa privada, equiparando-se ao particular na gestão patrimonial (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 54). São os atos que visam satisfazer necessidades sociais, mas que se contém em funções estatais facultativas ou contingentes (CAHALI, 2007, p. 22). Agia assim o Estado nas mesmas condições de uma empresa privada, que respondia pelos atos de seus representantes ou prepostos, como nos casos de a administração de bens do domínio do Estado, a administração de estabelecimentos de indústria monopolizada, de obras públicas civis ou militares. (SOURDAT, 1876, p. 420). Nesse sentido, era necessário distinguir se havia ou não culpa do funcionário, a fim de reconhecer ou não, respectivamente, eventual responsabilidade estatal.

A contribuição alemã a essa teoria consistiu na elaboração da doutrina do fisco, a qual identificava o Fisco como o Estado nas suas relações de ordem civil ou de direito privado (CAVALCANTI , 1905, p. 158). Nesse sentido, o patrimônio público não pertenceria nem ao príncipe, nem ao Estado soberano, mas a um sujeito jurídico distinto de ambos, regido pelo direito privado. Assim, o Fisco seria, por sua natureza, encarado como o homem ordinário, que administra seu patrimônio e está submetido ao direito civil e à jurisdição civil, sendo um súdito do Estado, como os demais; enquanto o Estado propriamente dito não teria patrimônio, mas se acha investido do poder público, do poder geral de mando (MAYER, 1949, p. 61-62).

Disto deriva que apenas o Fisco responderia pelos seus atos que causassem dano, e não o Estado. O artifício da cisão jurídica da personalidade do Estado permitiu uma flexibilização do rigor derivado da noção de soberania, que impossibilitava ao Estado obrigar-se perante os súditos, e o colocava acima de qualquer limite jurídico. Tal doutrina foi fundamental para atribuir aos particulares direitos em face do Estado, ainda que do ponto de vista estritamente patrimonial, conferindo-lhes alguma proteção (GUIMARÃES, 2010, p. 20-21).

Apesar de representar uma evolução, as dificuldades em precisar quais atos eram especificamente de império ou de gestão, do Estado ou do Fisco, inviabilizaram parcialmente a efetivação da teoria. Tal distinção, nos termos de Veloso, “não tem visos de cientificidade e, por ser sibilina, é de difícil conceituação prática (1987, p. 236)”. De fato, a insuficiência da teorização foi demonstrada pela dificuldade em sistematizar os critérios distintivos, pois nem sempre era possível identificar, objetivamente, os atos do Estado soberano à parte dos atos do Estado fisco.

Ora se dizia que a irresponsabilidade se refere aos atos do poder público, mas não os de sua execução; ora se faziam subdistinções, como no caso de atos de guerra, havendo irresponsabilidade quando se dão por força maior ou necessidade imediata de luta, mas reconhecendo-a em outros casos em operações preparatórias e requisições militares, caminhando-se, pois, de distinção em distinção em busca de um critério que escapava, ou podia falhar sob novas circunstâncias (CAVALCANTI , 1905, p. 249). Trata-se, pois, de duas faces distintas da atividade estatal, de cada vez mais difícil distinção em virtude do constante incremento, quantitativo e de complexidade, das funções do Estado.

Assim, posterior evolver abandonou a distinção, passando-se a conceber a responsabilidade do estado em moldes mais gerais. Nesse sentido, destacou-se, entre os alemães, que o Estado mantinha com o seu funcionário a mesma relação que havia entre o mandante e o mandatário (GÖNNER apud CAVALCANTI , 1905, p. 123); ou entre o preponente e o preposto (dominus negotii e institor, remontando ao instituto da jussu domini, previsto no livro IV, título VII, 1, das Institutas de Justiniano). Segundo tal instituto, se alguém negocia com um escravo que age sob o comando de seu mestre, terá ação contra o mestre por tudo o que é devido no contrato, pois a pessoa negocia com o escravo o faz confiando na fé do mestre – “Si igitur jussu domini cum servo negotium gestum erit, in solidum praetor adversus dominum actionem pollicetur; scilicet quia qui ita contrahit, fidem domini sequi videtur” (SANDARS, 1853, p. 559). Admitida à situação legal do funcionário o caráter da relação institória, a simples aplicação do direito romano conduzia necessariamente à responsabilização do Estado pela culpa de seus agentes, visto que o institor não obrigava o preponente só in contrahendo, mas também in delinguendo (BARBOSA, p. 1889, p. 43).

Já entre os franceses, o suporte remoto de tal entendimento repousava no Código Civil de 1803, o qual previa, em seus arts. 1382 e 1383, que todo aquele que por ação ou omissão, por negligência ou imprudência, causasse prejuízo a terceiro era obrigado a ressarcir o dano causado (FRANÇA , 1804, p. 336). Em especial, referia-se ao art. 1384, que previa a responsabilidade do comitente ou dono do negócio pelos atos de seus funcionários ou prepostos. Para Sourdat, os dois primeiros artigos citados eram o fundamento da responsabilidade direta do Estado, no caso danos decorrentes de fatos ordenados e executados pelo próprio governo, enquanto o terceiro baseava a responsabilidade reflexa do Estado, entendida como cujos fatos ensejadores são imputáveis diretamente a um funcionário. A responsabilidade reflexa só atingia o Estado caso o ato danoso seja cometido pelo agente no exercício de suas funções e que tal ato constitua um culpa caracterizada cuja causa fosse conhecida ou pudesse ser atribuída à negligência dos empregados (1876, p. 420).

3.1 PANORAMA DA EVOLUÇÃO LEGISLATIVA PÁTRIA

Interessante notar que o direito brasileiro não chegou a admitir a teoria geral da irresponsabilidade do Estado. Obviamente, aqui não se considera o período colonial, quando ainda não existia um direito brasileiro. Nessa época, predominava a irresponsabilidade do Estado de Portugal, coerentemente com o regime despótico de antanho.

Isto posto, tem-se que o princípio da responsabilidade jamais foi posto em dúvida em sendas pátrias, que se achava submetido ao direito comum quanto aos efeitos de suas relações com as pessoas do direito privado (CAVALCANTI , 1905, p. 493). Isto porque, apesar de suas origens profundamente marcadas pela influência do direito romano, a evolução jurídica foi modificada pelo concurso dos elementos liberais que intervieram na educação do pensamento nacional. Como acentuado mesmo por Ruy Barbosa, ainda no final do século retrasado,

Pelo damno causado ao direito de Particulares não hesitaram jamais as justiças brasileiras em responsabilizar municipalidades, provincias, estados, o governo do imperio, o da republica tendo por idéa inconcussa a de que, no ministro, no presidente, no governador, no prefeito, em todos os que administram, ou servem a uma funcção administrativa, conta a administração publica verdadeiros prepostos, cuja entidade, pelo principio da representãçãoo, desaparece na do preponente. [...] Os julgados, na magistratura municipal, na estadual, na federal, repetidos e uniformes, em acções de perdas e damnos, vão dia a dia augmentando o thesoiro opulento de arestos, que fazem talvez da nossa jurisprudencia, a esse respeito, a mais persistente e copiosa de todas (1889, p. 55).

Quando ainda recém-independente, a Lei de 20 de Outubro de 1823, editada pela Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do então Império do Brasil, declarou em vigor “a legislação pela qual se regia o Brasil até 25 de março de 1821 bem assim as leis promulgadas pelo Senhor D. Pedro, como Regente e Imperador daquela data em diante”. Com base nela, manteve-se aplicável a Lei de 18 de agosto de 1769, contida nas Ordenações Filipinas, que declarava “a autoridade do Direito Romano e Canônico (PORTUGAL, 1870, on line)”, com o que se legitimava a atribuição de responsabilidade ao Estado por seu funcionário, nos mesmos moldes da doutrina alemã acima exposta – já que não tinha lugar a concentração de poderes que em Roma antiga inviabilizou a responsabilização do Estado.

Tal concepção foi refletida na redação final da Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, a qual, em seu art. 99, declarava a inviolabilidade e irresponsabilidade da pessoa do Imperador, e no art. 129, a irresponsabilidade do Regente e da Regência. Contudo, no seu art. 179, XXIX, constava expressamente a responsabilidade dos empregados públicos pelos abusos e omissões praticadas no exercício de suas funções, e por não fazerem responsáveis os seus subalternos. Como expôs Maximiliano, “a lei brasileira, adeantadissima neste particular, desde o tempo do império, tem sido liberal para com os cidadãos e rigorosa com os empregados públicos (1923, p. 738)”.

A disposição do referido inciso XXIX foi praticamente repetida no art. 82 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891. Embora não se tenha contemplado a responsabilidade do Estado de forma expressa, enxergava-se ali uma solidariedade com o seu agente, sem se falar em exclusão da responsabilidade estatal (MAXIMILIANO, 1923, p. 738).

Posteriormente, com o advento do Código Civil pátrio de 1916, foi definitivamente consagrada a teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva do Estado brasileiro, nos termos de seu art. 15, ao prever que

As pessoas jurídicas de direito publico são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrario ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

Deve-se registrar que existiu controvérsia acerca da devida interpretação do referido art. 15. Por não contemplar expressamente o conceito de culpa, parte da doutrina entendeu que ali havia sido consagrada a responsabilidade objetiva do Estado, sob a influência das modernas concepções que já eram ventiladas no direito francês. Contudo, não foi a ideação que prevaleceu, em face do contexto marcadamente individualista que permeava o então novo código (CAHALI, 2007, p. 31). Ademais, a referências a “representante” remetia às antigas ideias sobre responsabilidade do Estado por seu preposto, de nítido caráter civilista, nem como às menções “procedendo de modo contrário ao direito” e “faltando a dever prescrito em lei” contemplariam a noção de ato ilícito, nas formas dolosas ou culposas (CAMPOS, 2011, p. 8). Tal entendimento era reforçado pelo art. 1.522, que mandava aplicar expressamente a previsão de responsabilidade do comitente por seus prepostos às pessoas jurídicas (art. 1.521, III), e pelo art. 1.523, que exigia prova da “culpa ou negligência” do preposto, no caso.

A Constituição de 1934, em seu art. 171, reafirmou a teoria da culpa civil, consagrando, ademais, a responsabilidade solidária entre o Estado e seu funcionário. Tais previsões foram repetidas no art. 158 da Constituição de 1937, última a contemplar a responsabilidade do Estado em moldes subjetivos.

A eliminação, pela Constituição de 1946, da culpa no conceito de responsabilidade do Estado é reflexo da forte reação que se vinha desenhando contra a aplicação analógica de institutos de direito privado à responsabilidade do Estado, considerando que a vinculação estatutária do servidor ao órgão público não encontrava paralelo no sistema civil (CAHALI, 2007, p. 23). Um a um, foram perdendo credibilidade os antigos argumentos que a sustentavam.

3.2 SUPERAÇÃO DAS TEORIAS CIVILISTAS

Em relação à ideia de mandato, falece à vinculação pública o livre acordo de vontade entre dois sujeitos. De um lado, o exercício da autoridade pública não é ato de liberdade, mas, antes, um dever. De outro, o Estado, no uso de sua autoridade, serve-se de seus agentes para obrigar cada um a fazer o que é devido, não havendo que se falar, necessariamente, em celebração de um negócio – como ocorre quando o mandante negocia por intermédio de seu mandatário. Não há, assim, liberdade do súdito em negociar com o agente público, como seria essencial em se tratando de mandato.

Acerca da analogia com o jussu domini, também se objetou que o mesmo tem caráter contratual, pelo que sobre ele recairiam as mesmas críticas à ideia do mandato. Ainda que se considerasse possível tal analogia, ela não se prestaria a justificar a responsabilidade do Estado pelos atos dos funcionários, caso esses deixassem de agir dentro da legalidade, pois esta é regra institucional do próprio Estado. Ademais, existindo controvérsia acerca da responsabilidade do dominus pelos atos do institor, toda a controvérsia era transportada para a responsabilidade do Estado, o que prejudicava ainda mais a adoção da teoria (CAVALCANTI , 1905, p. 231).

Ademais, o advento da teoria do órgão – que teve em Gierke um dos maiores expoentes – que supõe a existência de uma só pessoa, a do Estado, feita presente por um agente que lhe é vinculado, fez superar as dificuldades das doutrinas do mandato ou da representação, que pressupunham duas pessoas distintas (CAHALI, 2007, p. 24). Na verdade, o preposto, quando comete uma falta, esta, por sua natureza, seria imputada a si próprio. Contudo, essa responsabilidade é atribuída o comitente, por uma presunção de culpa, seja na escolha do preposto, seja na fiscalização de suas atividades (DUEZ, 1958, p. 20-21). Assim, no caso, há uma dualidade de culpas que se sobrepõem, o que não pode ser aplicado ao Estado, por não haver, na relação que mantém com seu funcionário, essa dualidade de personalidades.

A concepção civilística, por outro lado, não lograva satisfazer as exigências da justiça social, por exigir demasiado dos administrados (DERGINT, 1994, p. 38). A adoção dessa teoria inviabilizava, muitas vezes, o direito do cidadão a ver-se indenizado dos prejuízos que lhe foram causados pelo Estado. Em diversas situações, era tarefa hercúlea produzir a prova de que determinado agente públicos, inserido na complexa engrenagem estatal, laborou com culpa individual, o que esvaziava o instituto e cristalizada iniquidades.

Ademais, como expôs Solari, os atos da administração pública, como a própria denominação indica, pressupõem o interesse público, pelo que jamais ditos atos poderiam ser praticados para atender interesses privados. Assim, o Estado nunca operaria lastreado, ao menos não exclusivamente, no direito privado (CAVALCANTI , 1905, p. 258), pelo que sua responsabilidade tampouco poderia ser regida nos moldes privatísticos.

Tal sorte de ideação abriu caminho, pois, para noções de responsabilidade do Estado fulcradas em princípios específicos de direito público, apartando-se, ao menos em parte, das amarras e tradições do direito civil sobre a matéria.

Aliás, o próprio direito civil já vinha abrandando suas rígidas concepções de culpa e ônus da prova, uma vez que o evolver social e o progresso técnico tornaram cada vez mais difícil a demonstração, pela vítima, do dano causado pela conduta culposa de outrem, frustrando-lhe, em grande medida, o direito à reparação. Assim, em especial por via jurisprudencial, passou-se a admitir mais facilmente a existência da culpa, seja reconhecendo-a por presunção de existência em diversas situações, seja por estender os domínios da responsabilidade contratual, para tornar mais facilitada a situação da vítima. Em fim, houve o momento em que a culpa passou a ser considerada desnecessária, substituindo-a pela noção de risco, em variadas matizes (JOSSERAND, 1941, p. 550ss).

Tal desgaste da noção de culpa, se intensa já no direito civil, com mais razão ocorreu no direito público. Apesar de em grande medida inspirado ainda por posições civilistas, a liberdade dos paradigmas privados permitiu que a responsabilidade do Estado atingisse outro patamar. Não se apartou completamente dos fundamentos privados, mas a doutrina jurídica conscientizou-se no sentido de que as peculiaridades juspublicísticas não podem ser olvidadas no momento da teorização sobre a responsabilidade do Estado. É o que se verá a seguir.

4 TEORIAS PUBLICISTAS

Não tendo as teorias civilistas resistido às críticas que contra ela se lançaram, logram espaço no cenário jurídico teorias fundadas em princípios específicos de direito público, independente das anteriores concepções civilistas. Nesse momento, começaram a surgir as denominadas teorias publicísticas da responsabilidade do Estado, a exemplo da teoria da culpa do serviço e da teoria do risco.

Essa terceira fase da evolução histórica da responsabilidade civil do Estado coincide com a consagração do Estado Social. Nela, a responsabilidade do Poder Público torna-se autônoma, como matéria específica do Direito Administrativo, o que se logrou, sobretudo, a partir do labor do Conselho de Estado francês (DERGINT, 1994, p. 38).

Enquanto vigia o reconhecimento da responsabilidade do Estado nos moldes civilistas, era evidente que, na França, a competência para apreciar ações indenizatórias propostas em face de agentes públicos ou do próprio Estado era da justiça comum, como o seria se o fosse em face de um particular (CAMPOS, 2011, p. 9).

O marco histórico dessa guinada deu-se com o famoso caso Blanco, no qual houve a efetiva submissão do Estado à responsabilidade com base em princípios próprios de Direito Público. O Tribunal de Conflitos consagrou o reconhecimento da responsabilidade estatal e atribuiu competência ao sistema de contencioso administrativo – excluindo, pois, a do sistema judicial comum – para examinar os pedidos de indenização formulados por particulares contra o Estado.

Na verdade, no caso Blanco o Tribunal de Conflitos nada mais fez do que reafirmar e consagrar os fundamentos anteriormente adotados pelo Conselho de Estado no caso Rothschild, de 6 de dezembro de 1855. Mas foi a partir do caso Blanco que essa jurisprudência se manteve firmemente no Conselho de Estado e na Corte de Cassação (DUEZ, 1938, p. 19).

A partir de então, se desenvolveram as teorias que, inicialmente, despersonalizaram a culpa, posteriormente substituída pelo risco, culminando, enfim, com a responsabilidade objetiva do Estado.

4.1 TEORIA DA CULPA DO SERVIÇO

A teoria da culpa do serviço visava substituir a ideia da culpa do funcionário pela noção de culpa anônima, assim entendida, segundo a clássica lição de Paul Duez, como aquela existente quando “1) le service a mal fonctionné (culpa in commitendo;) 2) le service n’a pas fonctionné (culpa in omittendo); le service a fonctionné tardivement”. Para o francês, essa divisão corresponde, essencialmente, à evolução cronológica da jurisprudência do Conselho de Estado (1938, p. 27). No primeiro título, se incluem os casos de comportamentos e atividades da administração suscetíveis de causar danos, sendo a primeira e mais evidente parte das teorias.

Com relação ao não funcionamento do serviço, trata-se de situação na qual o Estado, não agindo, comete uma falta, pois estava obrigado a agir. Nesse caso, deve reparar as consequências de sua inação. Isto porque o exercício de uma competência administrativa não é um privilégio, mas um dever para o agente que tem obrigação funcional de ser vigilante. Valendo tal assertiva não só para os casos de competência vinculada, trata-se de uma alternativa encontrada pelo Conselho de Estado para controlar o poder discricionário da administração: apesar de não poder obriga-la a agir, por não haver, estritamente, ilegalidade, poderia declará-la responsável pelas consequências na omissão (DUEZ, 1938, p. 29-30).

Por fim, adveio a responsabilidade pela lentidão do serviço, modalidade mais recente de culpa administrativa. A administração tem por dever funcional der diligente, e a falta de certo grau de diligência administrativa deve ser sancionada pela responsabilidade. Trata-se de um poder de censurar a inércia da administração (DUEZ, 1938, p. 34-35).

Em todas as três categorias, não importa se o dano é causado por um ato jurídico ou um fato material, ambos podem, igualmente, ensejar a responsabilidade. Ademais, não é necessário que tenha tido lugar uma ilegalidade para que se reconheça a responsabilidade, bastante a ocorrência de negligência ou erro de fato para tanto. E, por fim, supera-se definitivamente a distinção entre atos de império e atos de gestão, sendo tal separação irrelevante para a configuração do dever de indenizar (DUEZ, 1938, p. 38).

Como se pode observar, a grande contribuição de Duez à teoria da responsabilidade civil do Estado repousa na sistematização do afastamento entre a noção de culpa individual do funcionário e a de culpa do serviço, ou seja, torna-se desnecessário precisar, dentro do universo dos servidores estatais, aquele que laborou com culpa individual. Afasta-se definitivamente das antigas noções de culpa in vigilando ou in elegendo das pessoas de direito público, bem como as analogias com as regras privadas de responsabilidade do patrão ou comitente por seus funcionários ou prepostos (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 56).

A culpa administrativa deve, nesse contexto, ser fundada em caracteres próprios, a saber: a culpa é autônoma, primária, anônima, matizada e geral.

Por culpa autônoma, entende-se a culpa desapegada das noções de direito civil, sendo uma construção original a partir dos princípios de direito público. Não se trata, sequer, de uma adaptação das ideias civilistas. Tal concepção foi cristalizada no já referido caso Blanco. Nele, o autor pleiteou a responsabilidade do Estado com fundamento no Código Civil francês, ao passo que o Conselho de Estado, apesar de reconhece-la, fixou expressamente que a responsabilidade que pode incumbir ao Estado pelos danos causados aos particulares não pode ser regida por princípios estabelecidos naquele estatuto, mas por regras especiais que variam de acordo com as necessidades do serviço e o imperativo de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados (FRANÇA, 1873, p. 2).

O caráter primário da culpa do serviço revela-se na possibilidade da vítima acionar diretamente o Estado, sem, necessariamente, precisar acionar o por primeiro funcionário ou provar sua insolvência. A personalidade do agente não mais aparece, pois sua figura é absorvida dentro da organização administrativa, da qual é um simples órgão. É essa característica que torna inviável a aplicação do já citado art. 1.384 do Código Civil francês ao caso, pois este prevê a dualidade de personalidades, tornando o comitente responsável pela culpa de seu preposto (DUEZ, 1938, p. 20-21).

A culpa é dita anônima por não exigir que se identifique a culpa de um funcionário nominalmente identificado. Basta demonstrar uma má condução do serviço ao qual o dano pode ser imputado a uma falha do serviço, seja na sua organização, seja no seu funcionamento. Julga-se o serviço, e não mais o agente (DUEZ, 1938, p. 21-22).

Ademais, nem todo serviço defeituoso ensejará responsabilidade. A culpa deve ser matizada de acordo com o serviço, o local e as características. Deve-se aprecias a culpa in concreto, segundo a diligência média que se pode legitimamente esperar do serviço (DUEZ, 1938, p. 24-25).

Por fim, a culpa deve ser geral, englobando não só a responsabilidade do Estado, mas de todas as entidades que integram a administração pública. A relevância que Duez deu a esse caráter deve-se à relutância inicial da jurisprudência francesa em conferir às comunas o mesmo tratamento dado ao Estado central, aplicando-lhe as teorias de direito privado mesmo após consolidado o entendimento acerca da autonomia da culpa (1938, p. 25). No nosso ordenamento, tal concepção revela-se importante para afirmar a unidade da teoria da responsabilidade civil em face de todas as pessoas jurídicas de direito público, bem como as pessoas privadas que prestam serviços públicos, ainda que não integrem a administração, nos termos do art. 7º da Constituição Federal de 1988.

Como restou demonstrado, a culpa ainda é elemento nuclear dessa teoria publicista, de modo que não é correto considera-la vertente de responsabilidade objetiva. É, isto sim, reponsabilidade subjetiva, lastreada na culpa, ainda que redefinida segundo critérios de direito público. Em diversas situações, nas quais ainda assim seria um esforço desproporcional para o particular provar a culpa anônima, tal teoria contempla uma presunção, o que, por dispensar o lesado dessa prova, faz parecer que a culpa é irrelevante. Mas não é esse o caso, pois, tratando-se de verdadeira inversão do ônus da prova, o Estado poderia se esquivar da reparação, bastando para tanto provar que o seu serviço não padecia de culpa – o que demonstra que o elemento subjetivo ainda permanecia subjacente à questão.

Da doutrina de Duez acima referida dessume-se que a teoria da culpa do serviço era aplicável especialmente em situações de omissão estatal (serviço que não funcionou, não funcionou a tempo). Mas, para ele, de acordo com a jurisprudência administrativa, não será qualquer culpa do serviço que engendrará a responsabilidade; mas somente aquela dotada de certa gravidade, apreciada in concreto, em cada caso, em função da diligência que o administrado pode legitimamente exigir da Administração. Tal apreciação deve ter em conta as circunstâncias de tempo, de lugar, os encargos do serviço, os recursos disponíveis para fazer face às obrigações, a situação da vítima à vista do serviço público e a natureza do serviço causador do dano (1938, p. 40-47).

4.2 TEORIA DO RISCO

Sem abandonar a teoria da culpa do serviço, o Conselho de Estado francês passou a adotar a teoria do risco, que serve de fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado. Nela, a noção de culpa é substituída pela noção de nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço e o prejuízo experimentado pela vítima, derivado do risco ínsito à atividade administrativa, pouco importando se houve ou não um funcionário culpado ou se o serviço funcionou bem ou mal. E tampouco a Administração poderá se livrar da responsabilidade provando que não agiu com culpa, seja do serviço, seja do funcionário.

O próprio direito civil já vem adotando a teoria do risco em diversos cenários. Tal ideação resulta de uma visão que substituiu o patrimonialismo do Século XIX, fruto dos ideais iluministas, pela concepção mais solidarizante da sociedade, na qual há a valorização da dignidade da pessoa humana (PEDRO, 2011, p. 65). Nesse sentido, sintomática foi a edição do Código de Defesa do Consumidor, de 1990, que incorporou a teoria do risco nas relações de consumo, e tornou lá, por primeiro, despicienda a distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual.

O próprio Código Civil de 2002, apesar de ainda prever a culpa como núcleo do sistema (arts. 186 e 187), introduziu a teoria do risco numa cláusula geral (art. 927, parágrafo único). Tal passo civilista é, nitidamente, influente e influenciada pelas modernas concepções da responsabilidade do Estado.

Nesse jaez, legitima-se a atribuição de responsabilidade ao Estado pelos danos causados por sua atividade, seja ela lícita ou ilícita. Sendo o risco inerente à atividade administrativa, deve ele ser suportado pelo próprio Estado, uma vez que “quem cria o risco deve, se este risco vem a verificar-se à custa de outrem, suportar as consequências, abstração feita de qualquer falta cometida. [...] ‘Qui casse les verres les paye’; quem criar um risco deve suportar a efetivação dele” (JOSSERAND, 1941, p.556-557).

O fundamento de tal teoria é, remotamente, o princípio da isonomia e, mais proximamente, o princípio da repartição dos ônus e encargos sociais, previsto no art. XIII da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1787. Ora, se o Estado age para beneficiar todos os cidadãos, também os prejuízos experimentados por alguns especificamente devem ser repartidos entre todos, o que será feito através do repasse, àqueles que tenham sido especialmente agravados, de recursos do erário. Com expôs Lessa, os serviços públicos acarretam necessariamente certos males, e estes devem ser sofridos por todos, contribuindo cada um para a indenização do dano que incidir numa só pessoa (1915, p. 164).

A respeito, pioneira no contexto nacional foi a lição de Amaro Cavalcanti:

assim como a igualdade dos direitos, assim também a igualdade dos encargos, é hoje fundamental no direito constitucional dos povos civilisados. Portanto, dado que um indivíduo seja lesado nos seus direitos, como condição ou necessidade do bem commum, segue-se, que os effeitos da lesão, ou os encargos da sua reparação, devem ser igualmente repartidos por toda a conectividade, isto é, satisfeitos pelo Estado,— afim de que, por este modo, se restabeleça o equilibrio da justiça commutativa: “Quod omnes tangit, ab omnibus debet supportari” (1905, p.XI).

A teoria do risco admite variações acerca da amplitude do risco a ser assumido pelo autor do fato, falando-se, aí, em risco administrativo, risco integral ou risco social.

Pelo risco administrativo, em que pese não se discutir a existência ou não de culpa, pode o Estado furtar-se à indenização caso demonstre a inexistência de nexo causal entre uma conduta sua e o dano alegado – o que pode ser obtido pela prova de situação de caso fortuito ou força maior, e culpa exclusiva da vítima ou de terceiro. E, quando tais fatores, apesar de não excluírem o liame causal, concorrem para o evento danos, verá o Estado ser minimizada a sua responsabilidade, proporcionalmente à sua relevância na produção do dano.

O risco integral, por sua vez, é a modalidade extremada da doutrina do risco, pela qual o Estado assumiria a responsabilidade por qualquer dano causado a qualquer vítima, numa concepção extremamente alargada de nexo causal. Não cabe, segundo tal teoria, a alegação de excludentes do nexo a fim de elidir a responsabilidade estatal. Nas palavras de Dergint, “obrigar-se-ia o Estado a indenizar todo e qualquer dano, ainda que decorrente de dolo ou culpa da vítima, o que levaria ao abuso e à iniquidade social” (1994, p. 45). Por conta disso, sua aplicação no cenário jurídico atual é absolutamente excepcional.

Por fim, o risco social enseja a chamada responsabilidade sem risco, tem por fundamento o Estado como garantidor da paz social e da realização das necessidades coletivas e individuais dos cidadãos (RIBEIRO, 2003, p. 31). Trata-se de indenização por danos assumida pelo Estado, mas que não derivou de qualquer comportamento seu, cujo objetivo é não deixar a vítima alijada de qualquer reparação, em casos em que não se logra identificar o responsável ou em casos de insolvência do mesmo.

Há ainda quem distinga a teoria do risco da teoria do dano objetivo, a qual prevê a responsabilização do Estado com fundamento exclusivamente na teoria da repartição dos ônus e encargos sociais, tornando desnecessária a investigação acerca de ser a atividade arriscada ou perigosa. Nesse sentido, existem danos causados pelas atividades estatais lícitas, que visam atender a interesses da sociedade, mas que oneram somente algumas pessoas. Não seria legítimo, pois, impor-lhes o sacrifício individualmente, para o benefício de toda a sociedade. Assim, a relevância da análise se deslocaria da conduta (atividade de risco) para o dano, que deve, para ensejar tal responsabilidade, ser qualificado como específico e anormal. Será específico quando recair apenas sobre pessoa ou pessoas determinadas; será anormal quando superar os meros aborrecimentos inerentes à vida cotidiana (SERRANO, JÚNIOR, 1996, p. 60-61).

No Brasil, como dito alhures, a teoria do risco administrativo foi consagrada expressamente, como regra geral, a partir da Constituição de 1946, em seu art. 194. A previsão da culpa restringiu-se à ação de regresso contra os funcionários causadores do dano, com o que se rejeitou categoricamente a solidariedade entre Estado e funcionário. Tais dispositivos foram repetidos no art. 105 da Constituição de 1967 e no art. 107 da Emenda Constitucional nº 1, de 1969.

Não se olvida que, antes da Constituição de 1946, o direto positivo já havia consagrado, em alguns casos específicos, a responsabilidade civil do Estado segundo a teoria do risco administrativo, a exemplo do Decreto nº 2.681/1912, que disciplinava a responsabilidade civil das Estradas de Ferro. Segundo o art. 26 desse diploma, “as estradas de ferro responderão por todos os danos que a exploração das suas linhas causar aos proprietários marginais”, somente podendo se furtar à tal responsabilidade se provada a culpa exclusiva da vítima, in verbis, “Cessará porém, a responsabilidade si o fato danoso for conseqüência direta da infração, por parte do proprietário, de alguma disposição legal ou regulamentar relativa a edificações, plantações, escavações, depósito de materiais ou guarda de gado à beira das estradas de ferro” – não admitindo, pois, a ausência de culpa como impedimento à responsabilização.

Atualmente, a matéria encontra-se disciplinada pela CF/88 no seu art. 37, § 6º, a qual fez englobar na mesma teoria a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, e alterou a referência a “funcionários”, substituindo-a pela noção mais abrangente de “agentes”.

Embora não conste nos citados dispositivos constitucionais clara referência à responsabilidade objetiva ou à desnecessidade de culpa, não se tem dúvidas que a previsão expressa do elemento subjetivo para viabilizar a ação de regresso contra o funcionário/agente público num parágrafo permitia interpretar o silêncio do caput como eloquente. Identicamente, a não reprodução da tradicional redação constante de Constituições anteriores reforça tal argumento, pelo que não mais se discute a adoção constitucional da teoria do risco na responsabilização do Estado, ao menos como regra geral (CAHALI, 2007, p. 32).

O vigente Código Civil de 2002, em seu art. 43, também consagra a responsabilidade objetiva do Estado, apesar de omitir-se quanto à responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado que prestam serviços públicos, advindo atrasado em relação à CF/88, no particular.

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, já sufragou expressamente essa teoria, como se pode observar no seguinte aresto:

CONSTITUCIONAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. C.F., 1967, art. 107. C.F./88, art. 37, par-6. I. A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em síntese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. A consideração no sentido da licitude da ação administrativa e irrelevante, pois o que interessa, e isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, e devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais. II. Ação de indenização movida por particular contra o Município, em virtude dos prejuízos decorrentes da construção de viaduto. Procedência da ação. III. R.E. conhecido e provido (BRASIL, 1992, p. 1).

Ante a clareza de tais dispositivos, não mais se contesta a admissão, pelo ordenamento jurídico pátrio, da responsabilidade objetiva do Estado. O que ainda pode ser objeto de discussão, isto sim, é a exclusividade de tal teoria, para reger ambas ações e omissões do Estado, ou se ainda se admite a convivência entre as teorias do risco, para atos comissivos, e da culpa anônima, para os omissivos.

5 PONDERAÇÕES FINAIS

A partir da contextualização histórica das teorias expostas ao longo desse trabalho, fica facilitada a tarefa de criticar a aplicação de suas reminiscências a determinados setores estatais, geralmente com o fito de limitar a responsabilidade civil do Estado por seus atos.

De logo, observa-se que os óbices costumeiramente levantados contra a responsabilização por atos jurisdicionais e legislativos não distam nada dos antigos fundamentos das teorias da irresponsabilidade, que repousavam, sobretudo, em concepções autoritárias de poder.

O argumento medieval fundado no conceito de universitas, que, fundado em ideias feudais de soberanos e vassalos, confundia a individualidade dos vassalos no todo da coletividade, apresenta-se ainda hoje como fundamento remoto da imunização do Estado à responsabilidade civil por atos legislativos: se quem causa dano foram parlamentares legitimamente eleitos para representar o povo, os danos causados o seriam em nome do próprio povo.

Carvalho Filho adota expressamente essa ideação, ao afirmar que “parece-nos incoerente, de fato, responsabilizar civilmente o Estado, quando as leis, regularmente editadas, provêm do órgão próprio, integrado exatamente por aqueles que a própria sociedade elegeu (2012, p. 565)”. Gasparini, a seu turno, afirma expressamente que “os administrados não podem responsabilizar o Estado por atos dos parlamentares que elegem (2007, p. 981)”.

Já as teorias absolutistas são ainda hoje bastante festejadas no afastamento da responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais. É nessa linha que segue Carvalho Filho: “[os atos jurisdicionais] são protegidos por dois princípios básicos: o primeiro é o da soberania do Estado: sendo atos que traduzem uma das funções estruturais do Estado, refletem o próprio exercício da soberania [...]”. Na mesma esteira, segue Moreira Neto, ao aduzir que “o magistrado, agindo no desempenho da função jurisdicional, exerce, concreta, direta e imediatamente, um poder soberano do Estado, de modo que, os danos causados a jurisdicionados serão meros prejuízos de fato, insuscetíveis de serem indenizados (2009, p. 660)”. Gasparini, a seu turno, afirmou que a sentença “é ato da essência da soberania (2007, p. 981-982)” Nessa linha de pensamento, se antes o soberano, incontrastável e infalível, era o príncipe, hoje quem gozaria dessas qualidades seriam os magistrados.

Acerca desse aspecto, cabe lembrar que a Constituição, ao lado de estabelecer os objetivos fundamentais do Estado, estabelece a forma pela qual o seu poder deve ser exercido. O poder do Estado, expressão institucionalizada do poder político, é, assim, uno e indivisível, expressão da soberania do próprio Estado. Disto decorre que todos os atos estatais se revestem e emanam do mesmo poder (FANICK, 1986, p. 440-441). Assim, se atos jurisdicionais são atos de soberania, também os administrativos, que derivam do mesmo poder (constituinte originário), também o seriam, de modo que não se justifica logicamente separa o poder estatal em classes distintas.

Melhor sorte não merecem os entendimentos que pregam que o art. 133 do Código de Processo Civil presta-se a tornar exclusivamente pessoal a responsabilidade do juiz faltoso, que agira com dolo, fraude, ou retardamento indevido, excluindo a do Estado. Veja-se como o fundamento aqui é rigorosamente idêntico à teoria oitocentista que defendia que o Estado não responde por atos ilícitos de seus agentes, pois o Estado só os credenciava a praticar atos lícitos.

Se ninguém, hoje, de boa fé, defende que o Estado, apesar de ser o criador formal do Direito, está acima dele, não se concebe a razão pela qual ainda se pretenda defender que tal ideação não se aplica ao Estado-juiz ou ao Estado-legislador, o qual, apesar de ter o poder de “criar” o Direito, está, nessa tarefa, sujeito a limitações jurídicas, formais e materiais. Desse modo, poder-se-ia até defender uma responsabilidade em termos mais restrito, mas não uma irresponsabilidade geral e ampla.. Todos os argumentos citados ao longo desse artigo no sentido da superação das velhas teorias da irresponsabilidade, são aplicáveis também nesses casos.

Por fim, observa-se também que teorias lastreadas na culpa, ainda que anônima, têm encontrado plena ressonância nas cortes quando se discute a responsabilidade do Estado por omissões estatais, como, por exemplo, defende Bandeira de Mello (1981, p. 13), fundamentando-se numa estreita noção física, naturalística, de causalidade. Ora, se o fundamento da responsabilidade, atualmente mais desenvolvido, é o risco, esse risco deve derivar de toda a atuação estatal, seja ativa ou omissiva. Assim, a concepção de nexo causal é a jurídica, no bojo da qual a omissão pose ser, sim, causa efetiva de um dano, quando esperável que o Estado aja para impedi-lo. Ambas trazem o risco, e muitas vezes é a omissão a conduta que traz o maior proveito ao interesse do Estado. Esse risco, assim, deve ser integralmente assumido pelo Estado.

Ante o exposto, conclui-se que é chegado o momento de superar ranços históricos, a fim de entender a teoria do risco para todos os quadrantes da atuação estatal. Como dito alhures, o poder estatal é único, sendo a sua distribuição em funções, atribuída a Poderes – em sentido orgânico – diversos, uma mera especialização de funções. Em todos os poderes, manifesta-se a totalidade do poder estatal, cabendo a cada um deles, por assim dizer, frações-ideais desse poder. Assim, nenhuma razão existe para que haja uma distinção entre o regime da responsabilidade estatal por ações e o das por omissões, nem ente o dos atos administrativos e o dos atos praticados no exercício dos demais poderes.

Fica, aqui, pois, a exortação para que, na análise da variada casuística da responsabilidade civil do Estado, não se deixem os juristas levar por preconceitos arraigados, fundados em concepções de poder superadas e desarmônicas com o atual quadro constitucional.

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Data de elaboração: julho/2012

 

Como citar o texto:

BARRETO, Lucas Hayne Dantas..Responsabilidade Civil do Estado: Análise histórica. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1004. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/2561/responsabilidade-civil-estado-analise-historica. Acesso em 12 ago. 2012.

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