SUSTENTABILIDADE: NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Ainda que a discussão sobre questões elementares seja deveras complicada em face da tensão entre cientificidade e senso comum, faz sentido acreditar que desde os primórdios o homem procurou e segue procurando fazer mais com menos, especialmente sob o viés econômico. Não por acaso, a categoria sustentabilidade assuma múltiplas acepções em razão dos variados contextos em que é utilizada.

Cabe ao indivíduo atribuir o sentido útil e desejado para tal categoria em determinado contexto comunicativo, afinal a existência se obtém pela linguagem. Tem-se com esta constatação o calcanhar de Aquiles desta monografia, isto porque, quando se fala de sustentabilidade é necessário delimitar sobre qual cenário se idealiza o referido substantivo. Vale ressaltar que a comunhão dos significados para as palavras, via acordo semântico, é condição de segurança, previsibilidade e eficácia às comunicações interpessoais .

Sem este cuidado atento à comunicação e à comunhão de um acordo semântico, cada indivíduo, mesmo que sem intencionar, “dá às palavras o sentido que quer, cada um interpreta (decide) como quer, como se houvesse um grau zero de significação.” (STRECK, 2008, p. 229)

Além deste problema, – a falta de um acordo semântico (ou conceito operacional partilhado) – há um grave equívoco na utilização indiscriminada de palavras idênticas, mas com sentidos distintos em contextos diversos. Um dos exemplos mais simplificado desta advertência pode ser vislumbrado em relação à aplicação da palavra direito, a qual admite desde a expressão de uma linha reta, passando pela oposição à categoria esquerda, para mais especificamente caracterizar o objeto da Ciência Jurídica.

Neste diapasão, faz-se necessário (re)perguntar qual o sentido a ser atribuído para a expressão sustentabilidade? Antes, porém, diante da contemporaneidade do debate e da moda instalada acerca da sustentabilidade (seja social, econômica, ambiental ou tecnológica) é preciso estabelecer as matrizes da sustentabilidade e sua conversão em primado do Direito.

Assim, no que interessa para a construção deste artigo, cumpre se destacar uma senda democrática que a hermenêutica filosófica e a fenomenologia podem apresentar ao trato da sustentabilidade e sua construção jurídica. Ao passo em que a sustentabilidade invade o ordenamento jurídico faz-se imperioso construir argumentos favoráveis à hermenêutica deste novo paradigma, sob pena de se olhar o novo com os olhos do velho. Ademais, o sucesso da adoção de práticas sustentáveis passa pela construção dialética da sustentabilidade, pela inclusão do ser-no-mundo. Não pode ser, efetivamente, um conceito dado, imposto, revelado. Especialmente pelo fracasso dos encontros de cúpulas.

O desenvolvimento global, aliado à proteção substancial do meio ambiente, constitui um dos grandes desafios para as sociedades contemporâneas, tanto em suas esferas privadas quanto públicas. A busca inconsequente e egocêntrica por bem-estar e felicidade em razão de padrões irresponsáveis de produção, consumo e deleite, contribui decisivamente para a crise ecológica global.

A apreensão com os limites do crescimento integra a própria história da tutela ambiental. Já na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano de Estocolmo, realizado no ano de 1972, a preocupação compartilhada foi a necessidade de aliar o desenvolvimento com a preservação dos recursos naturais. No primeiro princípio dessa convenção constou que “o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade, ao gozo de condições de vida adequadas num meio ambiente de tal qualidade que permita levar uma vida digna e gozar do bem-estar, e tem solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras”.

Em 1987, foi apresentado pelo informe de Brundtland o conceito de desenvolvimento sustentável nos seguintes termos: “o desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades da geração presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer suas próprias necessidades”.

Na sequência, a Declaração da ECO-92, baseada também no relatório Brundtland, foi construída tendo como foco central a necessidade de se estabelecerem diretrizes objetivando compatibilizar o desenvolvimento com a imprescindibilidade da tutela dos bens ambientais. Assim, o núcleo essencial da teoria sustentável assumiria um viés conciliatório-propositivo entre produção econômica e tutela ambiental, em favor das estruturas sociais.

Um conceito integral de sustentabilidade somente surgiria em 2002, na Rio+10, realizada em Johannesburgo, quando restaram reunidas, além da dimensão global, as perspectivas ecológica, social e econômica como qualificadoras de qualquer projeto de desenvolvimento, bem como a certeza de que sem justiça social não é possível alcançar um meio ambiente sadio e equilibrado na sua perspectiva ampla, para as presentes e futuras gerações.

Neste sentido, Canotilho (2007) defende que a sustentabilidade é um dos fundamentos do que chama de “princípio da responsabilidade de longa duração” e que implica na obrigação dos Estados e de outras organizações políticas de adotarem medidas de precaução e proteção em nível elevado para garantir a sobrevivência da espécie humana e a existência digna das futuras gerações.

A sustentabilidade foi, inicialmente, construída a partir de uma tríplice dimensão: ambiental, social e econômica. Na atual sociedade do conhecimento é imprescindível que também seja adicionada a dimensão tecnológica, conforme prevê Bodnar (2012), pois é a inteligência humana individual e coletiva acumulada e multiplicada que poderá garantir um futuro mais sustentável.

Sobre a amplitude da sustentabilidade, Pinãr Mañas (2002) explica que consiste: na conservação e recuperação, quando esta seja necessária, do adequado capital natural para promover uma política qualitativa de desenvolvimento; na inclusão de critérios ambientais, culturais, sociais e econômicos no planejamento e implementação das decisões sobre desenvolvimento.

Um dos objetivos mais importantes de qualquer projeto de futuro sustentável é a busca constante pela melhora das condições sociais das populações mais fragilizadas socialmente. No atual contexto de sociedade de risco, a sustentabilidade não pode ser compreendida como um qualificativo de deleite ou adjetivação ecologicamente correta que se agrega a determinadas expressões, ou propósitos retóricos e discursivos.

O princípio da sustentabilidade, conforme destaca Enrique Leff (2005), aparece como um critério normativo para a reconstrução da ordem econômica, como uma condição para a sobrevivência humana e como suporte para chegar a um desenvolvimento duradouro, questionando as próprias bases da produção. Em conclusão, para José Renato Naline (2001) a sustentabilidade importa em transformação social, sendo conceito integrador e unificante. Propõe a religação da unidade homem/natureza na origem e no destino comum e significa um novo paradigma.

Para tanto, deve-se entender a sustentabilidade, segundo lições de Bodnar (2012) em suas dimensões ambiental, social, econômica e tecnológica e também como um imperativo ético tridimensional, implementado em solidariedade sincrônica com a geração atual, diacrônica com as futuras gerações e em solidária sintonia com a natureza, ou seja, em beneficio de toda a comunidade de vida e com os elementos abióticos que lhe dão sustentação.

Sobre o principio da sustentabilidade, Klaus Bosselmann (2008) defende, enfaticamente, a necessidade da aplicação do princípio da sustentabilidade enquanto princípio jurídico basilar da ordem jurídica local e internacional. Argumenta que o principio da sustentabilidade deve contribuir com a “ecologização” dos demais princípios e, desde que devidamente impulsionado pela força real da sociedade civil, servirá também como caminho para uma governança com sustentabilidade ecológica e social.

A partir dos argumentos supracitados, a construção de um conceito, necessariamente transdisciplinar, de sustentabilidade é um objetivo complexo e sempre será uma obra em construção. Afinal, trata-se de uma idealidade, algo a ser constantemente buscado e construído como o próprio conceito de Justiça.

É um conceito aberto, permeável, ideologizado, dialético. O que é considerado sustentável num período de profunda crise econômica pode não o ser num período de fartura. Em verdade, é mais fácil identificar as situações de insustentabilidade. Por tais razões, reclama-se a aproximação do conceito em construção da sustentabilidade com os ditames da hermenêutica, pois se a sobrevivência humana é um imperativo do desenvolvimento sustentável nada mais justo do que a compreensão do fenômeno da convivialidade humana.

HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

Reiteradamente se afirma que o vocábulo hermenêutica, etimologicamente advêm de Hermes, sacerdote do oráculo de Delfos incumbido de levar a mensagem dos deuses aos homens, que, ao aprender a linguagem possibilitara a compreensão do ininteligível e do desconhecido ou oculto. Para os gregos, hermeneúein, significava cumprir as funções de Hermes, transmitindo mensagens, enquanto hermeneía era entendida como a ação de explicitar ou traduzir as ordens do Olimpo e, posteriormente, como a atividade de atribuir sentido às palavras. Contudo, conforme adverte José Adércio Leite Sampaio (2009, p. 53), nesta última acepção, confundia-se, por um lado, com o latim interpretari (exhgeomai, ermhveuw) e, de outro, a raiz erm se associava com (s)erm de sermo ou discurso, vinculando-se, desde a sua fonte, com a linguagem. Logo, na experiência grega, para saber interpretar e compreender, é essencial saber antes perguntar, somente com o perguntar bem (maiêutica) propicia ao interlocutor perseguir a verdade no diálogo.

Entre os romanos, a hermenêutica se confundia com a atividade da jurisprudentia, como inter-pretatio como dizer o direito, ou seja, resume-se em máximas interpretativas, onde, na Idade Média, passa a significar o esclarecimento de algo escondido por trás das letras, especialmente à serviço da teologia, no intuito de dar sentido aos versículos bíblicos obscuros, propiciando uma confluência do espírito e das escrituras.

A partir de Descartes, Bacon e Meyer inicia-se a cisão entre a hermenêutica e a interpretação, sendo que a primeira é elevada ao nível de ciência enquanto a segunda passa a ser seu objeto. Neste contexto, a interpretação passa a se dedicar ao mundo teológico, filosófico ou profano, e o jurídico, considerando essencialmente os métodos gramaticais e histórico-críticos.

Contudo, somente no século XIX, com Schleiermacher a hermenêutica retoma sua existência na linguagem. Além da análise gramatical das expressões lingüísticas, o diálogo entre autor e o interprete era possível, porque ambos comungavam de um léxico e de uma gramática comum, bem como, de uma natureza humana igualitária que possibilita a junção, no tempo, das intenções e do sentido, via linguagem. A linguagem é tida por ele como o núcleo das preocupações hermenêuticas e também fonte de insegurança científica, pois é um fenômeno histórico, esquemático e esquematizante.

Assim, como constata José Adércio Leite Sampaio (2009, p. 63):

Estamos diante de um processo circular, pois a linguagem é histórica e a história só é lida pela linguagem. E como fica a interpretação nisso tudo? No meio – como parte – do círculo: toda interpretação de expressões lingüísticas envolve um universo não lingüístico pré-dado (...). Dialética (como unidade do saber operada nos limites de uma linguagem particular) e gramática (como auxiliar da compreensão lingüística) se unem, nesse quadro, à hermenêutica (como filosofia da compreensão do discurso).

Martin Heidegger foi quem, através da obra Ser e Tempo de 1927, impôs à filosofia uma reviravolta que, inspirado em Husserl, ampliou a concepção da Hermenêutica, de modo que ela fosse vista como o compreender totalizante e universal, alicerçado na existência. Assim, o filósofo alemão através da temporalidade e do mundo vivido modificou a percepção do método e da ontologia tradicional ligada à subjetividade e aos dualismos metafísicos. Segundo Julio Cesar Marcellino Junior (2009, p. 92) a teoria heideggeriana está voltada não mais para o ente como ente, como fazia a metafísica tradicional, ou para a redução transcendental da fenomenologia husserliana; mas sim posicionada, e desde sempre compreendida para o ser. Estabelecendo-se, portanto, um novo campo de compreensão, uma compreensão existenciária, centrada no sentido do ser, do ser-aí, do Dasein (HEIDEGGER, 1993, p. 39). A partir desta iluminação Marin Heidegger se desfaz dos vínculos da teoria da razão, dando origem a um movimento de compreensão e de apreensão do conhecimento. Tem-se aqui a constituição de um “giro hermenêutico” que, ao invés de indagar sobre o que se sabe, pergunta qual o modo de ser desse ser que só existe compreendendo.

Com Martin Heidegger (1997, p. 10) vê-se que:

Toda interpretação possui sua posição prévia, visão prévia e concepção prévia. No momento em que, enquanto interpretação, se torna tarefa explícita de uma pesquisa, então o conjunto dessas ‘pressuposições’, que denominamos situação hermenêutica, necessita de um esclarecimento prévio que numa experiência fundamental, assegure para si o objeto a ser explicitado. Uma interpretação ontológica deve liberar o ente na constituição de seu próprio ser. Para isso, vê-se obrigada, numa primeira caracterização fenomenal a conduzir o ente tematizado a uma posição prévia pela qual se deverão ajustar todos os demais passos da análise. Estes, porém, devem ser orientados por uma possível visão prévia do modo de ser dos entes considerados. Posição prévia e visão prévia, portanto, já delineiam, simultaneamente, a conceituação (concepção prévia) para a qual se devem dirigir todas as estruturas ontológicas.

Nessa nova compreensão, Martin Heidegger apruma o tempo e o mundo vivido no centro de sua proposta, superando a fenomenologia husserliana, detida no modelo reflexivo da mente, passa a ser vislumbrada no panorama do ser-no-mundo-prático-existencial (STEIN, 1990). Nesta seara, o tempo ganha relevância, pois respalda a hermenêutica da facticidade, que redescobre o ser e o seu sentido na pré-sença, tal como arremata o filósofo alemão: “A compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser da presença.” (HEIDEGGER, 1997, p. 38)

Pontua Ernildo Stein (1997, p. 77-78):

Com isto Heidegger inventa uma outra hermenêutica. Por que desenvolveu o método fenomenológico, próprio do seu tipo de trabalho filosófico, Heidegger inventa o que poderíamos chamar de hermenêutica que é capaz de expor o desconhecido [...] e este desconhecido é para Heidegger propriamente aquilo que nunca se aceitou, nunca foi conhecido, porque sempre foi encoberto. E é justamente na compreensão do ser que nós, sempre, e toda a tradição metafísica, usamos mal, na medida em que na compreensão do ser sempre se pensava na compreensão do ente: a ideia, a substância, Deus, o saber absoluto, etc. [...] e o método hermenêutico, enquanto hermenêutico existencial, pretende exatamente trazer este novo.

A revolução estava instalada, Martin Heidegger re-situou o homem com sua finitude no mundo vivido, que não se afirma na racionalidade, em verdades absolutas, superando a relação ser-objeto para a construção da relação sujeito-sujeito imersa em um processo compreensivo-interpretativo na linguagem, agora a morada do ser. O homem, porém, não é apenas um ser vivo, pois, ao lado de outras faculdades, também possui a linguagem. “Ao contrário, a linguagem é a casa do ser; nela morando, o homem ex-siste enquanto pertence a verdade do ser, protegendo-a.” (HEIDEGGER, 1987, p. 58)

Influenciado por Heidegger, Hans-Georg Gadamer lapidou a transição entre razão epistêmica moderna e racionalidade hermenêutica, estabelecendo os alicerces de uma hermenêutica filosófica, um verdadeiro plus em relação à fenomenologia hermenêutica e à hermenêutica da facticidade. Para Gadamer, importa aquilo que é comum a toda maneira de compreender, o que efetivamente incide sobre a possibilidade de compreensão, e não o método. Assim, a hermenêutica é trabalhada a partir da historicidade do ser, haja vista a mobilidade da vida, dada pela experiência humana de mundo que, desde sempre na linguagem, construída na vivência consubstanciada ao longo do tempo. (GADAMER, 1997, p. 588).

Por conseguinte, compreender é um processo no qual o intérprete se inclui, onde ocorre uma fusão de horizontes das posições pessoais de cada envolvido no acontecer hermenêutico, que se opera em ato uno e não por partes como doutrinaram os antigos (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi e subtilitas applicandi). O texto, objeto por excelência da hermenêutica, proporciona a construção do sentido pelo intérprete a partir de si mesmo, de seu modo de ser e de compreender o mundo, sempre numa perspectiva lingüística. Afinal, “O ser que pode ser compreendido é linguagem” (GADAMER, 1997, p. 612). Nas palavras de Lênio Luiz Streck (2009, p. 218), em síntese, “Hermenêutica será, assim, o ex-surgir da compreensão, a qual dependerá da facticidade e historicidade do intérprete”, sendo que este acontecer se dá fenomenologicamente no mundo vivido.

FENOMENOLOGIA

Durante todo o período da Modernidade a forma, estanque, diga-se de passagem, de se produzir ciência ficou restrita à racionalidade matemática passível de comprovação via método, tal como concebeu Descartes. As formas de conhecimento não científico, portanto, irracionais: o senso comum e as humanidades (estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, teológicos e filosóficos) ficaram excluídos deste paradigma racionalista cartesiano ou empirista baconiano.

Por sua vez, este modelo, com o advento da Sociologia e a publicação das teses da Física Quântica, restou prejudicando em sua índole dualista, racional/irracional. A nova ordem emergente objetiva, desta forma, a romper com este dualismo, construindo um conhecimento que transcenda as distinções até há pouco consideradas insuperáveis, tais como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa e especialmente, ciências naturais/ciências sociais. Assim, enquanto a ciência moderna produziu conhecimento e desconhecimento, o modelo pós-moderno busca, via contemplação, a racionalidade na adição de todas as formas de conhecimento, investindo além da certeza, almeja que todo o conhecimento se traduza em autoconhecimento e em sabedoria de vida (SANTOS, 2003).

Esta senda exige, portanto, uma nova postura intelectual/científica, desapegada da gana de querer concluir para, pôr-se na tarefa de contemplação ao mundo mundano. Colhe-se da lavra de Michel Maffesoli (1998, p. 117):

Para teorizar essa atitude, a fenomenologia introduz a noção de ‘perspectivação’. E como observa Emanuel Lévinas, a partir de Husserl ‘a fenomenologia é, integralmente, a promoção da ideia de horizonte que, para ela, exerce o papel equivalente ao do conceito no idealismo clássico’. Pode-se prosseguir precisando que, por oposição ao conceito que cerra e encerra, a ‘ideia de horizonte’ fica aberta e, por conseguinte, permite compreender melhor o aspecto indefinido, complexo das situações humanas, de suas significações entrecruzadas que se reduzem a uma simples explicação causal. É nisso, sem dúvida, que está empenhada a sociologia compreensiva ou qualitativa que se concebe como essencialmente inacabada e provisória, de tal modo é verdade que não se pode em nenhum caso, construir um sistema quando se está confrontando a um mundo em perpétua mutação e sem referências fixas.

Husserl amplia e renova a ideia de fenômeno, inaugurando a fenomenologia, abrindo uma senda para a transição da filosofia da consciência para a hermenêutica filosófica , onde o conhecimento é como uma teia de significações construída pela própria razão, haja vista a inafastabilidade do sentido do ser e o do fenômeno. (MARRAFON, 2008).

Aduz Maria da Graça dos Santos Dias, que a recorrência à fenomenologia provém da percepção da necessidade de mirar o mundo vivido na cotidianidade com um novo olhar, presencial e atencioso. Olhar este alheio ao anseio da demonstração, voltado sim para a exposição das subjetividades, das pluridimensionalidades, que admite dúvidas, questionamentos e a volatilidade do conhecimento. Ademais:

O discurso humano é sempre incompleto, inacabado. Pela descrição, a Fenomenologia pretende chegar à compreensão do fenômeno, embora se saiba que, em sentido pleno, não se pode alcançá-la. A descrição, assim como a compreensão e interpretação, caracterizam os momentos constitutivos do método fenomenológico. (DIAS, 2003, p. 92)

Neste diapasão, onde toda compreensão é uma pré-compreensão, observa-se a confluência da fenomenologia com a doutrina de Martin Heidegger, cujo projeto se dá em função de pensar aquilo que ficou impensado, haja vista ambos considerarem inafastável o estudo do mundo-que-já-está-aí e a colocação do ser-aí, num ethos social e natural que não pode ser explicado integralmente pela ciência racionalista. Assim, o ser-aí exige o desvelamento do encoberto, para que ele venha aos olhos. Destarte, fenomenologia, conforme constata Oliveira (2008, p. 40) não significa tão-só a descrição daquilo que é dado, mas a supressão do encobrimento, “de modo que seja possível perceber nela possibilidades que ficaram inexploradas por uma série de encobrimentos.”

Na lembrança de Rafael Tomaz Oliveira (2008, p. 41), esta ordem de fatores permite reconhecer que: “para Heidegger a grandeza da fenomenologia reside, basicamente, na descoberta da possibilidade do investigar na filosofia”. Isto abre uma senda para um novo pensar, pensar este liberto e apartado da tradicional Filosofia da Consciência. Por séculos o modo de pensar ocidental foi orientado basicamente pelos escritos aristotélicos, a maioria aglutinada por compiladores ansiosos em ordenar todos os tratados esparsos no período posterior ao declínio da cultura helênica. Pois bem, em nome da organização cometeu-se um grave e prolongado equívoco. Assim, os escritos de Aristóteles foram dispostos, a critério dos compiladores, em três disciplinas acadêmicas: lógica, física e ética. Todavia, aquilo que Aristóteles alcunhava de Filosofia Primeira, a filosofia propriamente dita, não se moldava em nenhuma das três áreas. Desta forma, todo este material foi acomodado em uma publicação apartada, a Tà metà tà physikà (que significa: o que está ao lado, o que vem depois da Física). Neste diapasão, tal expressão resta desprovida de conteúdo, substancialmente irrelevante. Contudo, a partir de um novo prisma, inaugurado por Heidegger para o vocábulo metà, entendido como “ir para um outro lugar”, aquilo que nada dizia passou a ser visto como aquilo “que se lança para fora da física”, que se move em direção do outro ente, resgatando algo capaz de estabelecer um contraponto à insuficiente relação sujeito-objeto (OLIVEIRA, 2008, p. 137-138).

Retomando o diálogo entre o paradigma moderno com o pós-moderno, em sede de Ciência Jurídica é possível atribuir ao primeiro a dedicação total à norma, ao direito, enquanto no modelo emergente faz-se necessário resgatar e praticar na convivialidade noções de justiça, ética e estética (MELO, 1994), pautada pela compreensão anterior a conclusão, lembrando aqui de Friedrich von Hayek, para quem “O homem agiu antes de pensar, e não entendeu antes de agir”.

Ante o exposto, Martin Heidegger, ao aprumar um novo olhar ao mundo a partir de uma hermenêutica reformulada que pretere a metafísica e a relação sujeito-objeto, em favor do ser-aí, concebe uma clareira de luz para o universo da compreensão (interpretação), cuja clarificação aponta para o ser-aí, o homem.

Conforme Lênio Luiz Streck (2009, p. 201), o homem é definido como existência, como poder-ser, que invade a noção de ser-no-mundo, onde o estar-aí é ser-no-mundo, o resultado da análise da mundanidade. Ou seja, a compreensão do ser-aí exige uma pré-compreensão do mundo. “O ser humano é compreender. Ele só se faz pela compreensão. Ele só se dá pela compreensão. Compreender é um existencial, que é uma categoria pela qual o homem se constitui”, via linguagem, a morada do ser. Assim, o processo hermenêutico-compreensivo arquitetado por Heidegger permite no próprio ser-aí, a noção de compreensão, que procura proporcionar a liberação das possibilidades de encobrimento do ser-no-mundo.

Ao compreender o mundo, o homem objetiva existencialmente interpretar a si mesmo. Assim, pela interpretação, almeja-se desvelar o sentido dos sentidos da existência humana, “que nos aproxima do sentido pleno e permite a vivência de uma relação fundada na liberdade e democracia.” (DIAS, 2003, p. 94).

Sobre o tradicional prisma historiador e jurista se equiparam: todos se encontram em uma expectativa de sentido imediata, frente a um texto. Na verdade, não há acesso imediato ao elemento histórico. Como atesta Hans-Georg Gadamer, só existe valor histórico quando o pretérito é compreendido em seu entrelaçamento com o presente, e isto o jurista deve imitar. Para a execução de uma hermenêutica jurídica, faz-se essencial que a lei vincule isonomicamente todos os indivíduos. Logo, a prática da interpretação consiste em aplicar o texto caso a caso. Com isso, a hermenêutica deixa de ser vista como método para o descobrimento da verdade, para se tornar filosofia invadida pela linguagem (STRECK, 2009).

À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS...

Indubitavelmente, pensar em hermenêutica como a interpretação de uma única vontade, do espírito da lei, já não faz sentido, se é que em algum dia fez, conforme consignado alhures. Metaforicamente não basta uma visão romântica e panorâmica do horizonte, é preciso caminhar sempre em direção ao horizonte, mesmo sabendo que nunca o será alcançado. De igual maneira, a atividade hermenêutica deve ser preocupada com a linguagem, com o ser-aí, sua compreensão, pré-compreensão e seu des-velamento do mundo na mundanidade dos fenômenos em uma espiral infinita.

Por esta razão, urge que se desdenhe, a princípio, o fetiche cartesiano de conclusões matemáticas. Neste ensejo, o ser-aí carece ser compreendido a partir de seu des-velar na facticidade, na historicidade e um sentido que desde sempre vêm antecipado na pré-compreensão.

Assim, para realizar a interpretação e consequentemente a aplicação da sustentabilidade, o intérprete não pode ignorar a realidade social, os valores, desejos e anseios que envolvem a atividade humana de maior justiça e solidez. É justamente neste panorama que se observa a confluência dos propósitos da hermenêutica filosófica com os anseios da sustentabilidade, a saber: reconhecer a existência humana como pressuposto de validade dos dois paradigmas teóricos; reclamar uma constante movimentação para melhores condições existenciárias; compreender que não há legitimidade em diretrizes dadas, mas sim nas construídas participativamente.

A inclusão do ser-ai aliada à participação efetiva dos construtores/destinatários do paradigma de sustentabilidade é a melhor estratégia a ser utilizada para o tratamento dos riscos ambientais, tendo em vista que concretiza também os princípios da: informação, educação, conscientização, prevenção, precaução e comprometimento solidário com proteção do ambiente.

Para que o projeto de sustentabilidade obtenha resultados positivos na realização de múltiplos objetivos sociais, solucionando falhas político-econômicas, como um importante catalisador de anseios sociais é preciso ensejar aos construtores/destinatários amplo acesso, de forma a lhes conferir iniciativa em defesa dos valores juridicamente protegidos.

Em conclusão, a sustentabilidade do conceito de sustentabilidade passa necessariamente pela inserção do intérprete em uma relação dialética sujeito-sujeito, rompendo com a velha máxima de que os outros, inclusive a natureza, são meros objetos, amplamente manipulados e utilizados ao bel-prazer dos beneficiários. Não se operacionaliza a sustentabilidade sem levar em consideração a compreensão, a pré-compreensão e o des-velamento dos sentidos do social, do ambiental, do econômico e do tecnológico.

Enfim, para a construção substancial da sustentabilidade não existem métodos pré-determinados. Não há espaço à racionalidade cartesiana. E, especialmente, em tempos de Conferência Rio+20, a proposta de sustentabilidade não pode ser encampada pelo critério econômico-excludente, sem levar em consideração os anseios sociais e ecológicos debatidos pela sociedade civil.

 

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Data de elaboração: abril/2012

 

Como citar o texto:

STAFFEN, Márcio Ricardo..Hermenêutica e sustentabilidade. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1010. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-ambiental/2579/hermeneutica-sustentabilidade. Acesso em 4 set. 2012.

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