RESUMO

 

O presente artigo busca identificar e analisar aspectos do projeto desenvolvimentista que se tem buscado implantar no Piauí, destacando nesse contexto, o desrespeito aos direitos humanos promovidos pela ideia de um pré-suposto bem maior buscado pelo Estado através de grandes empreendimentos que estão fadados a agredir não só o meio ambiente, mas também a cultura e a história de populações tradicionais que serão forçados a largar a terra em que vivem e, portanto, uma série de vínculos afetivos.

Palavras-Chave: desenvolvimento, agressão, direitos humanos, cultura e populações tradicionais.

ABSTRACT

This article seeks to identify and analyze aspects of developmental project that has sought to deploy in Piauí, highlighting in this context, the human rights abuses promoted the idea of a pre-supposed greater good sought by the state through large enterprises that are bound to harm not only the environment but also the culture and history of traditional populations who will be forced to leave the land they live in and, therefore, a series of bonds.

Keywords: development, aggression, human rights, culture and traditional populations.

1. Introdução

O Brasil e especificamente o Piauí se encontram atualmente em um contexto de desenvolvimento onde se busca melhorar, de maneira muito rápida, a qualidade de vida dos indivíduos por meio de maior oferta de emprego, melhor distribuição de renda e crescimento da economia. Exemplo muito claro disso é o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) criado no ano de 2007 e que tem como proposta o planejamento e a execução de obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país. Contudo, tal modelo adotado para promoção do desenvolvimento me parece falho e deixa muito a desejar, principalmente pelo fato de estar sendo impulsionado por recursos que exigem rapidez de aplicação e, por conseguinte, acabam gerando atitudes governamentais que atropelam interesses privados que também merecem ser ouvidos.

No Piauí, projetos de grande porte, financiados por recursos do PAC, planejam a construção de uma ferrovia, cinco barragens na bacia hidrográfica do Rio Parnaíba, bem como a implantação de monoculturas de eucalipto para produção de celulose. Além disso, com a criação do PAC 2 em 2011, já é quase certo que outros projetos de grande porte sejam ainda destinados ao estado.

O que percebo diante de tudo isso é que o governo propõe ações desenvolvimentistas que estão intrinsecamente aliadas aos preceitos cada vez mais consumistas da sociedade guiada acima de tudo pelo capital. Essa aliança promove uma aceitação generalizada das ações do poder público, que em tese visam à elevação da qualidade de vida dos indivíduos, mas que acabam por desvelar uma grande quantidade de problemas socioambientais que serão provenientes da implantação de tais projetos. Ou seja, o que a princípio pode parecer como ótima saída para a pobreza e falta de emprego, na verdade é apenas o canal para o surgimento de outros problemas de igual ou maior complexidade.

É perceptível, pelo menos no meu ponto de vista, que esse modelo desenvolvimentista tão belo na teoria, é questionável em seu âmbito prático, pois está preocupado amplamente com a questão econômica, mas deixa a desejar no que diz respeito aos anseios daqueles que serão atingidos direta e indiretamente pelas construções. Não obstante, os Estudos de Impacto Ambiental (EIAs) e seus respectivos Relatórios de Impacto Ambiental (RIMAs) colocam de fora diversas populações camponesas, tradicionais, quilombolas e ribeirinhas que tiveram sua existência descartada nos estudos de impacto e outras comunidades que mesmo tendo sua existência relatada, não são descritas como tradicionais ou remanescentes de quilombos.

É o que acontece, por exemplo, no caso do Aproveitamento Hidrelétrico Estreito que será instalado na microrregião do Alto Parnaíba e cuja área de inundação abarcará terras dos municípios de Amarante e Palmeirais, no Piauí, assim como São Francisco do Maranhão e Barão de Grajaú, no Maranhão. Nessas localidades, onde audiências públicas foram realizadas apenas para comunicar o interesse do Estado sem dar o direito de resposta aos atingidos, se encontram diversas comunidades tradicionais e quilombolas (Caldeirão, Carão, Araras, Lagoa, Várzea dos Cocais, Gameleira, Remanso, Malhadinha, Conceição, Bela Vista, Lages, Mimbó e Periperi) que ao serem submetidas a processos de deslocamentos compulsórios terão uma série de direitos transgredidos. Nesse processo de desapropriações, que por sinal está sendo muito mal gerido, estão sendo subjugados os laços culturais e históricos das pessoas cujas famílias se encontram naquelas localidades há diversas gerações. Resumidamente, está sendo rompida a relação de afeto pela terra em nome da supremacia do interesse público e da proposta de um incerto futuro de riquezas.

Neste estudo procuro demonstrar através de uma análise conjunta entre teorias e o caso específico dos atingidos pelo Aproveitamento Hidrelétrico Estreito, o panorama do desrespeito à autonomia e aos direitos humanos referentes a estas minorias.

2. DESENVOLVIMENTO PARA QUEM?

Karl Marx ao tecer críticas à teoria de Hegel aborda algumas categorias que também são encontradas no caso em análise, como exemplo disso: a noção de deveres do Estado, de democracia, de Direito, de esferas pública e privada e de liberdade.

Para Hegel o Estado enquanto fundante da família e da sociedade civil teria a legitimidade e autonomia de que precisa para, unilateralmente, decidir a respeito de tudo que lhe seja conveniente, ou seja, a análise hegeliana do processo de implantação da barragem de Estreito, por exemplo, resulta na concepção de que a implantação das barragens em locais historicamente pertencentes a comunidades tradicionais é válida a partir do momento em que se tem o interesse do Estado somente. Contudo, Marx discorda veementemente disso, pois segundo ele, as esferas privada e pública se legitimam reciprocamente e a ideia de supremacia do interesse público em detrimento do privado é algo que deturpa essa relação. Marx então está defendendo uma espécie de democracia que me parece estar muito distante da nossa realidade. Para ele, democracia se constrói através do diálogo entre as partes interessadas em uma decisão e não apenas declarando a superioridade do interesse de um dos lados. Eu vejo que os preceitos marxistas pretendem destituir ideais abstratos de Estado onde este, por fundar as demais esferas sociais, acaba experimentando grandes doses de poder que levam facilmente a atuações que o desvinculam da própria realidade social e culminam em arbitrariedades como a do caso em questão.

Ao contrário de Hegel, Marx crê que é a esfera pública que deve se submeter à esfera privada, uma vez que aquela é proveniente desta. Isso reforça minha concepção de que o ponto de partida para a construção do AHE Estreito na verdade deveria ser a vontade dos indivíduos que ali se encontram e não a vontade do Estado. Não é admissível a ideia de liberdade concreta nem mesmo a de necessidade externa (ambas hegelianas) que apregoam a necessidade dos interesses privados submetidos aos públicos e, portanto pretendem homogeneização das relações sociais. Assim como já foi referido por Marx, creio que a sociedade é plural e diversificada (diversas classes sociais, por exemplo) e o Direito, se embasando nessas concretudes, deverá se voltar para esta pluralidade social a fim de ser alcançado plenamente.

Hegel defende um Estado portador de muitos poderes, onde o povo se encontra subjugado, um Estado onde o sujeito vira predicado, onde o determinante torna-se determinado e isso no meu ponto de vista se assemelha muito a postura e modo de pensar arraigados nos órgãos estatais que cuidam do processo de implantação da barragem de Estreito. Entretanto, assim como mostra a teoria marxista de crítica a Hegel, eu também creio que essa relação é desigual e injusta. Se as comunidades se encontram há tantos anos naquela localidade e em decorrência disso são portadoras de um conjunto de saberes, se se formou ali uma forte relação de carinho e amor pela terra e o culto aos ancestrais e a utilização da terra é o que fortifica esses laços através do passar dos anos, é no mínimo esperado que a condição de portadores de direitos desses indivíduos seja trazida para os debates a respeito da construção da barragem. Arrancar as populações de seus territórios vai lhes trazer muito mais do que meros prejuízos materiais, uma vez que até sua identidade e autonomia serão transgredidas.

No Brasil, a própria lei 9985/2000 diz que será responsabilidade do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) “proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente”. Ou seja, antes de mais, o ato da construção da barragem de Estreito é ilegal. Não bastasse isso, a nossa própria Constituição já assegura em seu artigo 5º, que todos são iguais perante a lei, isto é, a própria garantia constitucional está sendo seriamente violada, pois o direito de resposta dos pertencentes às comunidades tradicionais nem sequer foi dado. O Estado age autoritariamente na busca pela efetivação de seus interesses burgueses que não condizem em nenhum aspecto com os anseios das comunidades tradicionais e quilombolas presentes na área da construção do empreendimento AHE Estreito.

Esses fatos concretizam a crítica de Marx ao abstracionismo, que se mostra como canal para arbitrariedades diversas e que afasta o Estado das demandas da realidade social como no caso analisado, constituem um fator que é também fortemente criticado por Lyra Filho que vê no abstracionismo estatal a configuração de interpretações dogmáticas dos direitos.

Centrando suas atenções mais no âmbito jurídico, Lyra Filho demonstra que a interpretação dogmática do Direito estatal é que será o grande obstáculo no processo de reconhecimento dos direitos e anseios dos indivíduos que compõem a sociedade. Segundo o autor a existência de dogmas está intimamente relacionada à cristalização de ideologias e ao mascaramento de interesses da classe dominante. É nisso que a teoria de Lyra Filho mais se assemelha ao caso tratado aqui, pois me baseando em sua teoria consigo perceber que a visão dogmática dos direitos é que produz amplos processos de conflitos de interesses mal gerenciados e que quase sempre resultam em soluções que agradam apenas uma das partes, como no caso da construção da barragem de Estreito, onde o único lado a ter vez e voz foi o Estado e a comunidade foi apenas vista como empecilho no rumo ao progresso.

Assim como eu já informei anteriormente é sabido que na localidade a ser atingida pelo empreendimento AHE Estreito foi realizada uma audiência pública, com forte presença de técnicos representando os interesses estatais, que no fim das contas não promoveu nenhum diálogo, apenas informou aos integrantes das comunidades tradicionais e quilombolas o fato de que eles seriam retirados, mesmo a contragosto, de suas próprias terras. O licenciamento ambiental já havia sido feito, o projeto estava pronto e como continuidade ao processo de implantação da barragem de Estreito restava apenas o leilão de contratação da empreiteira a construir a barragem e o devido deslocamento daqueles que se encontravam na área a ser atingida seja pela construção em si, seja pelo alagamento proveniente do represamento da água.

A crítica que faço aqui é exatamente a essa noção de que existe a preponderância do público ante o privado, noção essa que provém de uma visão dogmática, fechada em si mesma, presa às amarras do capitalismo e da sociedade de consumo que prega um desenvolvimento desenfreado em busca da satisfação pessoal daqueles que detém o poder e o controle da máquina estatal, ou seja, da elite. Nas palavras de Luis Alberto Warat essa é uma interpretação castrada do Direito que não se permite experimentar o novo e, por conseguinte, acaba se deixando levar pela corrente do Direito instituído que é claramente burguês. Esquece-se a perspectiva do “outro” e abre-se o caminho para as diversas injustiças que se cometem em nome da supremacia do interesse público.

Lyra, bem como Marx, não acredita na necessidade de homogeneização provinda da obrigação do privado se submeter ao público em casos de conflito. Ambos os autores afirmam que a sociedade é diversificada e os conflitos são demonstradores da vivência democrática. O importante aqui é não permitir que atos autoritários e modificadores de tantas vidas sejam incorporados no seio de uma sociedade que se pretenda democrática. Isso a meu ver é o bastante para que eu afirme que a verdadeira justiça se alcança não submetendo a esfera privada à pública, mas sim através da tarefa dialética de observação de normas e da realidade social ao mesmo tempo, numa busca constante daquilo que é melhor para todos e não apenas para uma parcela dos envolvidos.

Resumidamente, Lyra afirma que é preciso promover-se no contexto social um amplo processo de crítica aos dogmas, numa atitude libertadora que culmine na aceitação de diversos ordenamentos conflituosos entre si e que se encontram presentes em um mesmo ambiente: o democrático. Levando isso para o caso em questão, vejo uma interação muito fácil entre teoria e realidade, pois o que o autor supracitado nos traz para o caso em questão, é que se olhem os anseios e desejos das comunidades atingidas como igualmente importantes no processo de desenvolvimento que se pretende implantar.

Reforço, através dos argumentos de Lyra Filho a tese de que não é aceitável contemporaneamente a concepção de que há a supremacia do interesse público e de que essa supremacia deve guiar as atitudes estatais a qualquer custo. O próprio autor afirma que colocar a esfera pública acima da privada é um exemplo de utilização dogmática (cega) dos diretos, que presume a existência e legitimidade do interesse do Estado apenas. Vejo, a partir disso, que a construção da barragem de Estreito, nos moldes em que se encontra, é fruto da dogmatização, uma vez que desrespeita o princípio da dignidade da pessoa humana, assim como os direitos sociais referentes às populações a serem atingidas pelo empreendimento.

Esses fatos desvelam a efetivação de um Direito que promove hierarquização e o tratamento desigual onde a priori deveria haver igualdade de direitos. Exatamente neste contexto, é que Warat fala ainda em consonância com Lyra Filho, que a concepção de bem maior promovida pela ideia de supremacia do interesse público atua basicamente como uma receita falida de felicidade que considera apenas os anseios de uma parcela da sociedade, a classe dominante.

Como grande indicador disso que acabei de citar, está o fato de esses projetos visarem primordialmente o incremento do PIB (Produto Interno Bruto) e do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que querendo ou não, são apenas estatísticas que acabam escondendo a verdadeira situação do povo que está sendo avaliado. O IDH, por exemplo, para fins de cálculo leva em consideração a expectativa de vida, o acesso ao conhecimento e o PIB per capita, deixando de lado qualquer dado ecológico da área analisada. O próprio PIB é uma mera soma de bens e serviços que desconsidera em seus cálculos a existência de externalidades, do mercado informal e transações não oficiais. Isto é, em comunidades rurais (como são aquelas que serão atingidas pelo empreendimento AHE Estreito no Piauí) esses cálculos não são efetivamente a melhor forma de conseguir verificar a qualidade de vida existente ali, pois não contemplam práticas comuns desses povos, como a agricultura, a pesca e a caça que visam apenas o consumo próprio das famílias.

Percebo que a utilização de métodos matemáticos para quantificar o nível de felicidade de indivíduos faz com que se perca de vista as subjetividades e individualidades, ou seja, utiliza-se uma mesma régua, para mensurar realidades totalmente distintas e como resultado obtém-se uma homogeneidade que em nada reproduz as diversas nuances da realidade social. Isso que acabei de citar demonstra, assim como no dizer de Warat, o lado obscuro da racionalidade moderna que suprimiu a subjetividade e a emoção de muitos indivíduos, deixando-os insensíveis à realidade social e acima de tudo, à perspectiva do novo e do plural.

É evidente, pelo menos a meu ver, que o esquecimento dos direitos referentes aos atingidos é fruto desse processo instaurado pela racionalidade moderna em que se perde o foco dos sentimentos, emoções e subjetividades humanas, e em que a existência do “outro” se encontra ocultada pela visão castrada do Estado, o detentor do poder.

Warat, para quem a castração significa a poda de desejos, fala o seguinte do processo de castração presente na sociedade:

A castração tem a ver com todas as barreiras, as cargas que nos impedem de conhecermo-nos, amarmo-nos, sentirmo-nos a nós mesmos. Tudo o que nos impossibilita para dar e receber amor. As peles invisíveis que nos distanciam do próprio corpo e do corpo dos outros. (WARAT, 2004, p. 65).

Ou seja, a castração, posso dizer, é a grande responsável pela insensibilidade do Estado frente às demandas sociais. É através dela que esse mesmo Estado se fecha para a experimentação do novo, do diverso e do plural, presentes nos vários ordenamentos da sociedade. É esse processo de poda que faz as subjetividades e os direitos, de populações tradicionais, por exemplo, serem substituídos pela ideia de padronização e imobilização da sociedade. Percebo que esse olhar dogmático e castrado sobre a realidade social pretende promover a segurança e o conforto, mas falha ao se deparar com a realidade tão cheia de contingências e conflitos. Nesse cenário, a castração, que nega a democracia, deve ser substituída pela permissão do plural e através do confronto ao instituído (carnavalização, nas palavras de Warat).

O próprio Kelsen afirma que a segurança jurídica, além de baseada em um ordenamento pré-existente, se dá a partir da noção de que o Direito será o mesmo para todos. É muito claro então, pelo menos no meu ponto de vista, o evidente desrespeito inclusive ao que foi teorizado pelo autor citado logo acima, pois se o Direito foi utilizado apenas como instrumento estatal para alcance de seus objetivos e esqueceu-se da possibilidade de sua utilização pelos indivíduos que constituem a esfera privada, isso demonstra uma grande incoerência no próprio sistema.

A partir disso é que eu afirmo, mais uma vez, que é necessário sim o respeito aos direitos dos pertencentes às comunidades tradicionais, camponesas e quilombolas que terão muito em breve que enfrentar a realidade dura e cruel de se separar dos seus vínculos afetivos, culturais e históricos. Mesmo que esteja muito incorporada a noção de supremacia dos interesses públicos e que esteja vigente, pelo menos em parte, o dogmatismo jurídico que guia a ação de alguns agentes do Estado, é necessário que aqueles indivíduos, reconhecendo seus direitos de pertencentes e se enxergando enquanto sujeitos constitucionais confrontem as imposições feitas pelo poder público e lutem pela efetivação daquilo que a própria legislação brasileira já prevê.

3. LUTA PELA DEFESA DE DIREITOS: UMA NECESSIDADE

O ser humano vive a procura de saciar seus crescentes desejos e anseios e creio eu que é apenas na luta que se garante a efetivação de direitos. O próprio Warat afirma que é ao se sentir negativamente atingido pelo Direito estatal que os indivíduos irão se opor ao mesmo numa luta pela legitimação de suas vontades e revogação do direito vigente. Antônio Carlos Wolkmer, ao falar das linhas de ação que representam as estratégias dos movimentos sociais dá o nome de postura contestatória a isso que acabo de citar. Segundo ele:

Postura contestatória trata-se daquela opção que utiliza as carências e privações materiais como forma de mobilizar as grandes massas para realizar uma oposição sistemática ao poder estatal instituído. Nesse caso, o movimento se atém a denunciar a ausência de respostas concretas governamentais para a resolução dos problemas, deixando de aproveitar o espaço institucional para introduzir propostas alternativas e criar mecanismos de participação popular. (WOLKMER, 2001, p. 134).

Destarte, Wolkmer está não só afirmando a necessidade de se promover a luta pela garantia de direitos, mas também afiançando o fato de que é após o encaixe de um indivíduo em uma comunidade de direitos que se vai dar um fenômeno onde as necessidades passam a constituir reivindicações baseadas primordialmente no Direito. Seguindo então os preceitos da teoria de Wolkmer, eu assevero a importância e a necessidade de os indivíduos que compõem as comunidades tradicionais e quilombolas atingidas pelo AHE Estreito se considerarem como portadores de direitos, assumirem sua identidade e autonomia (referentes às populações tradicionais) e, além disso, a necessidade de se unirem na busca por terem suas vontades respeitadas.

Mas tudo isso não se refere apenas à luta contra algo instituído. Como eu mesmo já afirmei em outro momento, o próprio Direito positivado brasileiro assegura direitos às populações tradicionais, e eu creio a partir de tudo isso que a própria postura desses indivíduos, além de contestatória ao que se encontra instituído, é também uma postura reivindicatória de direitos pré-existentes, categoria que, diga-se de passagem, também é abordada por Wolkmer.

Os movimentos sociais então, para Wolkmer, são como a válvula de escape ao direito instituído, pois são eles os verdadeiros promotores da diversidade e pluralidade necessárias à efetivação da democracia na sociedade. Em minha opinião é clara a concordância deste autor, pelo menos neste aspecto, com Marx, Warat e Lyra Filho em que se defende que a verdadeira solução para os conflitos e crises está na prática participativa e transformadora dos indivíduos nos processos de decisão que se fazem constantes no âmbito das relações sociais. Eu acredito piamente que os conflitos existentes entre Estado e populações atingidas pela barragem de Estreito não existiriam se tivesse sido utilizado o método do diálogo com os mesmos.

É nesse mesmo viés que o próprio Habermas, para quem a ação das minorias é quase sempre de reivindicação, vai falar que os direitos à comunicação e participação devem ser assegurados numa linguagem que permita aos sujeitos escolher como será feito o uso deles. Em outras palavras, se existem problemas sociais, eles surgiram pelo processo de comunicação e da mesma maneira como apareceram, deverão ser dirimidos também pelo processo comunicativo, ou seja, pelo diálogo. Como eu já disse no parágrafo anterior é o diálogo que se faz chave para resolução dos conflitos entre os atingidos pelo AHE Estreito e o Estado.

Assim como assegura o Pluralismo Jurídico de Wolkmer, eu acredito que deve haver uma forma pacífica de convivência sem sujeição, com autonomia e reconhecimento da pluralidade de identidades individuais e coletivas. É essencial, no caso que trato aqui, que as comunidades tradicionais atingidas, enquanto minorias tenham suas especificidades e desejos ouvidos no processo de decisão que envolve sua própria existência e continuidade. Faz-se necessário que a perspectiva dos direitos sociais seja considerada num ato de proteção da identidade e autonomia das populações em questão.

4. A PRÁTICA LIBERTADORA E DEMOCRÁTICA DO DIREITO ALTERNATIVO

Desde o início até aqui venho trazendo teorias que pretendem promover a verdadeira democracia no âmbito da sociedade como um todo. Abarcando todos esses ideais que eu citei e defendi até agora, encontra-se a corrente jurídica denominada Direito Alternativo defendida por Lédio Rosa e que a meu ver representa bem a defesa dos direitos dos atingidos no caso aqui tratado.

O Direito Alternativo, embora ainda em processo de construção, pretende promover dentro dos órgãos judiciais a difusão de ideais que desliguem a interpretação da lei do sistema de interesses capitalistas, burgueses, dogmáticos e castrados. Mas não é apenas isso, Lédio Rosa afirma, por exemplo, que um dos pontos de concordância unânime no movimento é o da perspectiva de luta incondicional contra miséria que abarca a maior parcela da população brasileira e a luta pela democracia, encarada como a concretização das liberdades individuais, dos direitos sociais, bem como a materialização da igualdade de chances e condição digna de vida a todos.

Eu creio então que seria de fundamental importância que a atuação do direito no caso do empreendimento Estreito fosse uma atuação alternativa, verdadeiramente preocupada com a causa social e que tratasse com dignidade as pessoas pertencentes aos meios sociais que estão tendo seus direitos, suas vontades e seus anseios flagrantemente desrespeitados em detrimento de um desenvolvimento que desde suas bases é muito duvidoso, uma vez que tem como meta alcançar um padrão de vida claramente burguês que desconsidera totalmente a vontade das minorias que verdadeiramente serão as atingidas, uma vez que sentirão apenas o lado negativo desse progresso.

Para mim, a busca por um mundo melhor não pode se pautar apenas na vontade de poucos. Exatamente por isso é que se faz necessário o engajamento do Direito nas diversas instâncias da sociedade. Toda essa transformação só se dará através da caminhada de vários componentes que se fazem presentes na comunidade. Essa é uma caminhada, que conforme eu venho mostrando nas relações com o caso tratado aqui, inclui saberes, indivíduos e interesses diversificados e conflitantes que só se resolvem através de um amplo processo de diálogo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim como já foi dito por quase todos os autores de quem eu fiz questão de trazer as teorias para a presente discussão, o ambiente que verdadeiramente se pretenda democrático, precisa deixar que se desenvolva no seu seio as divergências, os conflitos e os antagonismos inerentes à vida em comunidade. É necessário que haja variedade de ordenamentos e que as questões postas em discussão sejam devidamente debatidas em processos comunicativos inclusivos e participativos que visem alcançar as soluções devidas. Essa vivência não pode mais permitir que se reproduzam concepções dogmáticas, instituídas e castradas dos direitos dos cidadãos. O Estado em meio a isso não pode mais se utilizar de métodos autoritários que simplesmente se embasem no antiquado princípio da supremacia do interesse público. Estamos em um momento da história em que o reconhecimento e luta por direitos é algo comum e é preciso que se pare para dar vez e para dar voz a todos os cidadãos.

Tradicionais, quilombolas, ribeirinhos e camponeses se encontram provavelmente em um momento decisivo de suas vidas. Um momento de desrespeito e de transgressão de suas vontades, mas que não deixa de ser uma excelente oportunidade para que se faça surgir o direito como justiça e não como instrumento de opressão.

6. REFERÊNCIAS

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FILHO, R. L. Para Um Direito Sem Dogmas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1980. pp. 11-43.

HABERMAS, J. Direito e Democracia entre facticidade e validade I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1992, 354 p.

KELSEN, H. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. pp. 62-68.

_________. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 79-91.

MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2010. pp. 27-77.

MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. PAC 2. 2011. Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2012.

PROJETEC. Estudo de Impacto Ambiental AHE Estreito. Volume III. 2009, 98 p.

WARAT, L. A. Territórios Desconhecidos – a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Literasofia e a ciência jurídica e seus dois maridos. Pág. 19-26 e 61-186.

WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura do Direito. São Paulo: Alfa Omega, 2001. pp.119-168.

 

Data de elaboração: novembro/2012

 

Como citar o texto:

SILVA, Marcus Vinícius Leal..O princípio da supremacia do interesse público e o desrespeito aos direitos humanos dos atingidos pela barragem de estreito no Piauí. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1030. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direitos-humanos/2665/o-principio-supremacia-interesse-publico-desrespeito-aos-direitos-humanos-atingidos-pela-barragem-estreito-piaui. Acesso em 23 nov. 2012.

Importante:

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