RESUMO: O exame da noção de Responsabilidade Civil no Ordenamento Jurídico brasileiro envolve reconhecer que historicamente as obrigações eram cobradas diretamente do devedor, utilizando-se o seu corpo (real e figurativamente) como forma de pagamento/restituição. Apenas com a ascensão do Iluminismo e a definição de uma matriz liberal de Direito, tornou o direito obrigacional, tendo-se por conta a noção de individualismo, desconectado do corpo do indivíduo e conectado ao seu patrimônio. Ocorrido um dano, isso dá ensejo a uma obrigação de reparação. A Teoria da Perda da Chance surge no Direito Francês como um complemento da noção da “responsabilidade” no âmbito cível, considerando-se a impossibilidade de exercício de uma oportunidade, por força da ação ou omissão de outrem. Há que se perceber que, porém, essa previsão não consta de nenhum diploma legal. Dessa forma, ela foi introduzida e passou a ser admitida no Ordenamento Jurídico brasileiro, apenas por força de prestação jurisdicional.

PALAVRAS-CHAVE: Obrigações; Responsabilidade Civil; Perda da Chance; Direito.

ABSTRACT: The examination of the notion of Civil Responsibility in the Brazilian legal system involves the recognizing that the obligations were historically billed directly by the debtor, using your body (real and figuratively) as a payment or refund. Only with the rise of the Enlightenment and the definition of a liberal matrix of law, the satisfaction on the Obligation Law became, because of the notion of individualism, disconnected from the individual s body and connected to his patrimony. When the damage occurs, it gives rise to an obligation to make reparation. The Theory of Loss of a Chance appears in French Law as a complement to the notion of Civil Responsibility, considering the impossibility of pursuing an opportunity, under the act or omission of another. This question, as realized, does not appear in any statute. Thus, it was introduced and became accepted in the Brazilian legal system, just by virtue of adjudication.

KEYWORDS: Obligation; Civil Responsibility; Loss of a Chance; Law.

1. INTRODUÇÃO

O Direito não é uma representação da estática dos elementos constantes da vida em sociedade. Ele representa a tentativa de repelir movimentos que possam prejudicar aquela coesão, o que acabaria tornando impossível a convivência entre os homem, considerando-se uma perspectiva mais coletivista. Dessa forma, o Direito atua segundo um mecanismo dinâmico de proteção geral, que estabelece comportamentos, de forma a tornar possível a interação dos indivíduos e o reconhecimento de seus direitos mais básicos, necessários à vida e à efetivação da dignidade do ser humano.

Tendo-se por base essa perspectiva, no âmbito do presente artigo leva-se em consideração essa dinâmica. Assim sendo, busca-se observar a questão da possibilidade da aceitação da Teoria da Perda de uma Chance no Direito brasileiro. De início, tem-se por necessário referir que o reconhecimento de tal teoria não é previsto textualmente em nenhum regramento contido no Ordenamento Jurídico pátrio vigente. Porém, isso não quer dizer que a aplicação de tal teoria não venha sendo discutida, enquanto uma possibilidade, tanto na doutrina quanto na jurisprudência atualmente desenvolvida em alguns tribunais do país.

Deve-se notar que a teoria da “Perda de uma Chance” é, na realidade, uma espécie de “evolução” do instituto do Dano Moral. E, se o Dano Moral, segundo a matriz jurídica brasileira, demorou para ser aceito, porém, reconheceu-se sua recepção pelo Ordenamento Jurídico, diversamente não se poderia pensar, em se tratando da Perda de uma Chance. Dessa forma, o presente artigo encontra respaldo técnico, que o viabiliza teoricamente.

Além disso, ela se mescla à noção de Responsabilidade do Agente. Em especial, aquela que permeia as relações de caráter Civil, em uma Sociedade. Dessa forma, vem ela a contemplar a possibilidade de responsabilização em sentido compulsório, sem a perspectiva que a associaria à ocorrencia de um delito previsto na lei. E isso reforça o caráter e o consolida ainda mais, enquanto discussão atual e necessária ao reconhecimento do Direito Individual.

Isso pode ser percebido, à medida que por meio dessa teoria busca-se reparar a perda de uma oportunidade que foi perdida exclusivamente por ato perpetrado por outrem. Essa responsabilização só pode ocorrer enquanto uma decorrência natural da existência de um prejuízo. Além disso, previamente, deve ocorrer um ato ilícito praticado por um terceiro, cujos efeitos alterem tão completamento o status quo dos sujeitos envolvidos que não seja mais possível qualquer tentativa de retorno a este.

Para tentar resolver esses casos, considerando-se a necessidade de estabelecer mecanismos de proteção, o Poder Judiciário brasileiro “incorporou” a possibilidade da utilização da “Teoria da Perda de uma Chance”. Desse modo, passou a entender que, caso haja um prejuízo que venha a ferir a boa-fé que anima a sociedade, bem como os contratos que nela ocorrem, deve haver a respectiva reparação do dano. Caso não houvesse essa reparação, pode-se-ia estar diante de alguma figura que efetiva a desproporcionalidade de ganhos e de oportunidades para os indivíduos envolvidos, o que é proibido expressamente pela legislação civil vigente.

Em termos estruturais, o presente artigo envolve duas discussões necessárias. De um lado, o “encaixe” da Teoria da Perda da Chance, dentro da estrutura evolutiva do conceito de Responsabilidade Civil. De outro, discute-se a teoria em conta, por meio de teses doutrinárias e jurisprudenciais.

3. A EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A Responsabilidade Civil é um tema relevante para o desenvolvimento da sociedade. Ela reforça as seguranças e proteções que indivíduos possuem frente ao exercício arbitrário dos direitos de outrem. A vida em sociedade é regida por uma lógica própria, que envolve a noção de disponibilidade e direito. Nesse mesmo sentido,

Hoje, se entre duas pessoas há um conflito, caracterizado por uma das causas de insatisfação descritas acima (resistência de outrem ou veto jurídico à satisfação voluntária), em princípio o direito impõe que, se se quiser pôr fim a essa situação, seja chamado o Estado-juiz, o qual virá dizer qual a vontade do ordenamento jurídico para o caso concreto (declaração) e, se for o caso, fazer com que as coisas se disponham, na realidade prática, conforme essa vontade (execução). Nem sempre foi assim, contudo. (CINTRA, 2005, p. 22)

Antes de existir o Estado, havia apenas a vontade do indivíduo, que é o que mandava, no que se refere à resolução de conflitos. Porém essa era uma situação na qual os conflitos poderiam destruir a sociedade que se formava. Assim tornou-se necessário buscar um meio de evitar os conflitos. Nesse momento surge a figura do Direito:

O principal objetivo da ordem jurídica, afirmou o grande San Tiago Dantas, é proteger o lícito e reprimir o ilícito. Vale dizer: ao mesmo tempo em que ele se empenha em tutelar a atividade do homem que se comporta de acordo com o Direito. (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 02)

E esse Direito é sustentado por um Estado definido como “[...] uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 1982, p. 98). E essa é a única forma de garantir que o Direito consegue ser aplicado de forma igual e em todos os lugares do mesmo modo, o que resulta em um reforço das regras e instituições estatais.

Mas antes que se possa discutir especialmente o caso do ordenamento jurídico brasileiro, é importante realizar uma reconstrução histórica, mesmo que breve, da questão da responsabilidade no âmbito civil. Para tanto, é importante entender que a responsabilidade civil tem a ver com a ideia de obrigação civil. Dessa forma,

Costuma-se conceituar a “obrigação como “o vínculo jurídico que confere ao credor o direito de exigir do devedor o cumprimento de determinada prestação”. A característica principal da obrigação consiste no direito conferido ao credor de exigir o adimplemento da prestação. É o patrimônio do devedor que responde por suas obrigações. (GONÇALVES, 2007, p.02)

Descrição similar faz Maria Helena Diniz (DINIZ, 1993, p. 153), quando expressa que obrigação surge como um dever jurídico. E o cumprimento dessa obrigação serve para validar o papel do Direito. Antigamente, porém, não apenas era o patrimônio o objeto do cumprimento das obrigações. Aliás, nem se tinha a ideia de que o patrimônio pudesse ser objeto do cumprimento do vínculo obrigacional, pois

[...] a execução da obrigação tinha caráter de vingança: se ocorresse o inadimplemento, era facultado ao credor optar pela divisão do corpo do devedor em tantos pedaços quantos fossem os credores, ou a venda do devedor além do Tibre, como escravo, enfim, respondia o devedor com o próprio corpo ou com a sua liberade (Tábua Terceira da Lei das XII Tábuas). Cuidava-se de vínculo meramente pessoal, sem qualquer vinculação ao patrimônio do devedor, razão porque não se admitia a cessão do nexum. (BELMONTE, 2004, p. 209-210)

Sentido semelhante é dado pela definição estipulada por Gonçalves, para quem, quando se trata de obrigações pré-estatais,

O dano provoca a reação imeditata, instintiva e brutal do ofendido. Não havia regras nem limitações. Não imperava, ainda, o direito. Dominava, então, a vingança privada [...] Se a reação não pudesse acontecer desde logo, sobrevinha a vindita meditada, posteriormente regulamentada, e que resultou na pena de talião, do “olho por olho, dente por dente”. (GONÇALVEZ, 2007, p. 04)

À medida que se supera a responsabilidade obrigacional baseado na vendeta e na punição do corpo, surge o sistema aquiliano:

É na Lei Aquília que se esboça, afinal, um princípio geral regulador da reparação do dano. Embora se reconheça que não continha ainda “uma regra de conjunto, nos moldes do direito moderno”, era, sem nenhuma dúvida, o germe da jurisprudência clássica com relação à injúria, e “fonte direta da moderna concepção da culpa aquiliana, que tornou a Lei Aquília o seu nome característico. (GONÇALVEZ, 2007, p. 05)

Ascende a ideia de que deve-se reparar o dano causado, mesmo que pequeno. Semelhante expressão é dada por Belmonte, para quem:

A partir do século IV a.C., por meio da Lei Poetélia Papíria, no Baixo Império, passou a obrigação a vincular-se ao patrimônio do devedor, com melhor proveito, eis que o apossamento da pessoa vinculada ou execução pessoal não satisfazia, pecuniariamente, o crédito. (BELMONTE, 2004, p. 210)

Segundo Van Caenegem (2000, p. 321) essa substituição da execução física pela execução patrimonial foi amplamente influenciada pela filosofia iluminista. Essa escola filosófica rejeitou as tradições e dogmas religiosos, colocando o indivíduo e seu bem-estar físico no centro das discussões, ressaltando a importância do individualismo. E essa individualização do direito tornou possível o sucesso da matriz liberal do contrato.

A base contratual que se pautou o diploma civil de 1916 observou características individualistas, observando apenas uma igualdade formal, fazendo lei entre as partes (pacta sunt servanda). Segundo tal diploma, ficava assegurada a imutabilidade contratual e os contraentes celebravam livremente um acordo que deveria ser absolutamente respeitado. (DUQUE, 2007)

O direito brasileiro tratou de se fundar no cumprimento dos contratos, o que só foi modificado com a Constituição de 1988, que reforçou o papel da dignidade humana, do trabalho e da livre iniciativa, que devem permear todas as relações, até os contratos, pois, “A função social do contrato exprime a necessária harmonização dos interesses privativos dos contraentes com os interesses de toda a coletividade;” (TALAVERA, 2002), revendo-se as teses liberais e resolvendo os problemas do capitalismo.

No que se refere à interpretação da responsabilidade, contida no Código Civil o conteúdo do art. 927 é importante. Por meio desse dispositivo, havendo ilícito, dele descende o dever de indenizar e reparar. Assim, nas palavras de Stoco, a Responsabilidade Civil encontra-se entranhada na sociedade,

A noção de responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém por seus atos danosos.

Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de Justiça existente no grupo social estratificado. (STOCO, 2004, p. 118)

E, interpretando a regra civil por meio dos preceitos da Constituição, percebe-se que a responsabilidade sofre algumas mudanças. Essa forma de responsabilização, porém é ligeiramente diferente daquela expressa no Código Civil de 1916. Foi expandido o número de possíveis motivos para a Responsabilização Civil, pois, mesmo isento de culpa, havendo nexo de causalidade e prejuízo, exsurge a responsabilidade. Como visto, tratam-se de alterações necessárias, mas que, de certo modo, não inovaram muito o texto do Código.

Além disso, o parágrafo único do art. 927 dá margem a uma leitura cuja importância vem crescendo. Ao fazer constar que mesmo se a atividade desenvolvida apresenta probabilidade de dano, persiste dever de indenizar, abre-se margem para a efetivação de outra condicionante da responsabilização, na forma da Teoria da Perda de uma Chance.

4. TEORIA DA PERDA DA CHANCE: UMA LEITURA DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL

Responsabilidade tem a ver com a reparação de um dano. Porém, o que ocorre se esse dano jamais permita o resgate do status quo anterior? O Código Civil brasileiro silencia quanto a isso, porém, informa, por meio de seus princípios, que a reparação é devida. Mesmo não a admitindo expressamente, dá sinais da aceitação da Teoria da Perda da Chance. Coube à jurisprudência esse papel integrador. Nas palavras de Venosa,

Quando nossos tribunais indenizam a morte do filho menor com pensão para os pais até quando esse atingiria 25 anos de idade, por exemplo, é porque presumem que nessa idade se casaria, constituiria família própria e deixaria a casa paterna, não mais concorrendo para as despesas do lar. Essa modalidade de reparação de dano é aplicação da teoria da perda da chance. (VENOSA, 2003, p. 201)

Quais seus fundamentos e objetivos dessa teoria? Sérgio Cavalieri explica que ela surge da ideia dos lucros cessantes. Mas se trata de um caso especial de lucro cessante, à medida que na França, “[...] dela se utiliza nos casos em que o ato ilícito tira da vítima a oportunidade de obter uma situação futura melhor. Caracteriza-se essa perda de uma [...] probabilidade de se obter um lucro ou de se evitar uma perda.” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 77). Ao explicar a perte d’ une chance, Gondim expõe que “Alguns doutrinadores traduzem somente a perda de uma chance de cura, limitando sua aplicação somente para os casos de responsabilidade médica.” (GODIM, 2005, p. 21)

A teoria surgiu por força de um estranho caso que chegou ao judiciário francês, envolvendo erro médico. Conta-se que

O Dr. Helie de Domfront foi chamado às seis horas da manhã para dar assistência ao parto da Sra. Foucault. Somente lá se apresentou às nove horas. Constatou, ao primeiro exame, que o feto se apresentava de ombros, com a mão direita no trajeto vaginal. Encontrando dificuldade de manobra na versão, resolveu amputar o membro em apresentação, para facilitar o trabalho de parto. A seguir notou que o membro esquerdo também se apresentava em análoga circunstância, e, com o mesmo objetivo inicial, amputou o outro membro. Como conseqüência, a criança nasceu e sobreviveu ao tocotraumatismo. Diante de tal situação, a família Foulcault ingressa em juízo contra o médico. (DANTAS, 2010)

No período que se seguiu, até o julgamento da causa, houve uma verdadeira batalha de laudos e exames médicos. A acusação buscava comprovar o erro do médico, dada a falta de amparo às amputações. A defesa, por sua vez, buscava tornar clara a necessidade das amputações para o sucesso do tratamento. Ao final do processo, o médico foi condenado ao pagamento de uma pensão de 200 francos. Porém, mais importante que tudo isso foi a solução encontrada e que demonstra que a legislação brasileira, embora não aceite de modo expresso essa condicionante, é que:

[...] do momento em que houve a negligência, leviandade, engano grosseiro e, por isso mesmo, inescusável da parte de um médico ou cirurgião, toda a responsabilidade do fato recai sobre ele, sem que seja necessário, em relação à responsabilidade puramente civil, procurar se houve de sua parte intenção culposa. (DANTAS, 2010)

Nota-se, portanto, que essa teoria se ampara na segunda parte do parágrafo único do art. 927, CC. E, desse modo, ela tem sido encarada, visando auxiliar na resolução das demandas em face de profissionais que não se utilizam de todos os meios que tem à disposição para resolver o problema do cliente.

É propício referir, conforme o que preleciona Dias, que a Perda da Chance se refere a uma indeterminação. Essa indeterminação tem lugar e concreção, uma vez que se percebe que,

[...] na perda de uma chance nunca se sabe qual seria o resultado do julgamento se o ato houvesse sido praticado, como, no exemplo da ausência de recurso, nunca se saberá com absoluta certeza se a decisão que o cliente desejava que fosse reexaminada seria reformada em seu favor, ou não. (DIAS, 1999, p. 13)

Ou seja, é a indeterminação acerca daquilo que poderia ter efetivamente ocorrido que dá causa à presunção de um prejuízo, uma vez que a impossibilidade de exercício de uma determinada chance gera uma impossibilidade de ganho ou um prejuízo.

Fica evidente, portanto, que se trata de uma teoria inovadora, no âmbito jurídico, uma vez que lida com a quantificação de algo incerto e hipotético.

Deve-se, sim, pensar na chance como a perda da possibilidade de alcançar um resultado ou evitar que este resultado se concretize. Para a configuração do dano motivado na aplicação da perda de uma chance, há que se fazer a distinção entre o resultado perdido e a possibilidade de consegui-lo. (GUIMARAES, 2010, p. 01)

Considerando-se isso, Rui Stoco entende por necessário reconhecer a impossibilidade da aplicação dessa teoria, uma vez que:

Não há como admitir que outrem substitua o juiz natural da causa para perscrutar o íntimo de sua convicção e fazer um juízo de valor a destempo sobre a “possibilidade” de qual seria a sua decisão, caso a ação fosse julgada e chegasse ao seu termo. [...] se caracterizar em verdadeira futurologia empírica, mais grave ainda é admitir que alguém possa ser responsabilizado por um resultado que não ocorreu e, portanto, por um dano hipotético e, em ultima ratio, não verificado ou demonstrado e sem concreção. (STOCO, 2004, p. 490)

No que se refere ao caráter daquela indenização derivada da aplicação da Teoria da Perda da Chance, Guimarães informa que:

No que tange à indenização pela perda de uma chance é essencial que a oportunidade seja plausível e não aponte uma simples quimera. Trata-se da probabilidade de que o evento ocorresse, ou seja, não fosse a intervenção do agente, esta chance deveria ser séria e viável. Assim, a chance deve ser considerável e não meramente eventual.  (GUIMARAES, 2010, p.03)

Em resumo, deve haver um impedimento ou uma oportunidade que não foi aproveitada e que, caso isso não ocorresse, haveria um ganho para a parte. Respeitada essa condicionante é que se pode reconhecer a perda ocorrida. Interessante é notar que, sobre o tema, O Superior Tribunal de Justiça já emitiu decisão, arguindo que:

[...] não há como concluir, mesmo na esfera da probabilidade, que o normal andamento dos fatos conduziria ao acerto da questão. Falta, assim, pressuposto essencial à condenação da recorrente ao pagamento da integralidade do valor que ganharia a recorrida caso obtivesse êxito na pergunta final, qual seja, a certeza – ou a probabilidade objetiva – do acréscimo patrimonial apto a qualificar o lucro cessante. Não obstante, é de se ter em conta que a recorrida, ao se deparar com a questão mal formulada, que não sagrar-se milionária, foi alvo de conduta ensejadora de evidente dano. [...] Quanto ao valor do ressarcimento, a exemplo do que sucede nas indenizações por dano moral, tenho que ao tribunal é permitido analisar com desenvoltura e liberdade o tema, adequando-o aos parâmetros jurídicos utilizados, para não permitir o enriquecimento sem causa de uma parte ou o dano exagerado da outra. A quantia sugerida pela recorrente (R$ 125.000,00) – equivalente a um quarto em comento, por se uma “probabilidade matemática” de acerto da questão de múltipla escolha com quatro itens reflete as reais possibilidades de êxito da recorrida.[1]

Como importantes pontos abordados no acórdão do STJ, pode-se mencionar: a incerteza do acerto da resposta foi fato inviabilizador da condenação do réu no pagamento integral do valor que ganharia a autora, se obtivesse êxito na pergunta final. Isto porque, repita-se, o que se indeniza não é chance em si, ou seja, o resultado final, mas, a perda da oportunidade de se tentar chegar aquele resultado.

Assim também decidiu o Tribunal regional Federal da 2ª Região da seguinte forma:

TÍTULO DE CAPITALIZAÇÃO PAGO E NÃO CADASTRADO - TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. Hipótese na qual o autor adquiriu título de capitalização, que foi pago em 08/05/2002. Entretanto, não recebeu o título e, ao consultar a central de atendimento da Federal Capitalização S/A, segunda ré, verificou que não havia título em seu nome e CPF. Assim, resta caracterizada a falha no serviço. É caso de inadimplemento contratual, e responsabilidade das rés pela inexecução do ajuste. A abrangência do artigo 403 do CC não autoriza a reparação do dano remoto, o que ocorreria se levado em conta o valor do prêmio que poderia ser obtido. A chamada teoria da perda de uma chance, em caso como o dos autos, deve ser equacionada dentro da reparação do dano moral, e sua carga lateral punitiva. Admitido que a ré pudesse sair livre da situação, apenas devolvendo o valor aplicado, seria ofensa à dignidade de todos os consumidores que, como o autor, fazem a sua fé na sorte. BRASIL. Tribunal Regional Federal 2ª Região. Apelação Cível 2003.51.10.001761-6. Relator: Des. Guilherme Couto. 05 de mai. 2006.

Por sua vez, com referência ao tema da Perda da Chance, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, decidiu que:

RESPONSABILIDADE CIVIL - COLETA E ARMAZENAMENTO DE CÉLULAS-TRONCO - AUSÊNCIA DE PREPOSTO DA EMPRESA NO MOMENTO DO PARTO. Se os pontos que se pretendia demonstrar com a produção de novas provas podiam ser averiguados através dos documentos que instruíram a inicial, mostra-se desnecessária sua realização, inocorrendo, portanto, cerceamento de defesa. Considerando que as células-tronco são o grande trunfo da medicina moderna no tratamento de inúmeras patologias consideradas incuráveis, não se pode dizer que a ausência da ré no momento do parto, com a perda da única chance existente para a coleta desse material, trata-se de um simples inadimplemento contratual. Havendo desperdício da única chance existente para a coleta das células-tronco por culpa exclusiva da ré, que foi negligente ao deixar de encaminhar preposto qualificado para a coleta no momento oportuno, evidente se mostra o dano moral suportado pelos autores diante da frustração em ampliar os recursos para assegurar a saúde de seu primeiro filho. PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Apelação Cível 401.466-0. Acórdão COAD 121952. Relator: Des. Ronald Schulman. 01 jun. 2007.

Não menos importante foi a decisão tomada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

SORTEIO - EXCLUSÃO DE PARTICIPANTE - TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE - DANO MORAL CONFIGURADO. Não tendo o requerido comprovado a existência de fato extintivo do direito da autora em participar da segunda fase do sorteio por ele promovido, necessário o reconhecimento do dano extrapatrimonial, face à frustração em participar do sorteio objeto desta demanda. Aplicável, ao caso, a Teoria da Perda de uma Chance. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível 70.020.549.648. Acórdão COAD 124762. Relator: Des. Umberto Guaspari Sudbrack. 03 mar. 2008.

Desse modo, vê-se que mesmo em se tratando de tese que foi absorvida apenas por força de jurisprudência e da avaliação da doutrina, a Teoria da Perda de uma Chance vem ganhando força no sistema brasileiro de julgamentos. Ela é, sem dúvida um importante fator que aumenta significativamente a probabilidade de reparação de danos aos indivíduos. Desse modo, representa um avanço no processo de responsabilização, reforçando o tema da Responsabilidade Civil e atualiza-o para responder as novas demandas que vem surgindo e que precisam de uma resposta do judiciário.

5. CONCLUSÕES

Como visto, uma sociedade precisa evoluir em termos jurídicos, para que produza regras que coincidam com os anseios da população, que possam suportar as relações que se formam entre os indivíduos. Nem sempre o direito funciona com a celeridade necessária para abarcar os comportamentos existentes. Porém, é necessário perceber e incorporar o que não foi originalmente previsto, sob pena de prejuízos ainda maiores.

Uma das inovações legais recentes e que merece destaque foi objeto do presente artigo. Discutiu-se a Teoria da Perda de uma Chance, demonstrando-se alguns de seus fatos mais importantes e o modo como ela surgiu. Essa é uma condição necessária para entender o animus que levou à sua admissão. Isso é necessário para que se possa entender o motivo pelo qual ela foi capaz de ser introduzida no Ordenamento Jurídico brasileiro, mesmo sem uma previsão expressa.

Para que se pudesse perceber a importância dos valores contidos nessa teoria, foi feita uma breve discussão teórica, envolvendo a douitrina e o modo como esta percebe a compatibilidade (ou não), da Perda da Chance com as previsões contidas no Código Civil. Além disso, importante é observar os limites ao seu reconhecimento, que foram impostos pela prestação jurisdicional conferida pelos juízes, às questões envolvendo esse tema.

Desse modo, pode-se perceber que a teoria discutida nas páginas anteriores se revela como verdadeira cláusula protetora, das relações entre os indivíduo. Além disso, exsurge também como uma proteção ao próprio tecido social, em meio ao qual estas relações bilateriais se efetivam.

6. REFERÊNCIAS

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_____. Tribunal Regional Federal 2ª Região. Apelação Cível 2003.51.10.001761-6. Relator: Des. Guilherme Couto. 05 de mai. 2006.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 21. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Aspectos históricos da responsabilidade civil médica. Jus Navigandi. Teresina, ano 7, n. 107, 18 out. 2003. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2010.

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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. Teoria Geral das Obrigações. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1993.

DUQUE, Bruna Lyra. Análise Histórica do Direito das Obrigações. Jus Navigandi. Teresina, ano 11, n. 1445, 16 jun. 2007. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2010.

GONDIM, Glenda Gonçalves. Responsabilidade Civil: Teoria da Perda de uma Chance. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, out. 2005.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007.

GUIMARÃES, Janaína Rosa. Perda de uma chance: considerações acerca de uma teoria. Revista Jus Vigilantibus. Vitória, 30 jul. 2009. Disponível em: . Acesso em: 19 jun. 2010.

PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Apelação Cível 401.466-0. Acórdão COAD 121952. Relator: Des. Ronald Schulman. 01 jun. 2007.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível 70.020.549.648. Acórdão COAD 124762. Relator: Des. Umberto Guaspari Sudbrack. 03 mar. 2008

STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 6. ed. rev., atualizada. e ampliada. São Paulo: RT, 2004.

TALAVERA, Glauber Moreno. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil. Revista Jurídica do Centro de Estudos Judiciários. Brasília, n. 19, out./dez. 2002. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2010.

VAN CAENEGEM, Raoul Charles. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil. v. 4. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

WEBER, Max. A Política como Vocação. In: GERTH, Hans H.; WRIGHT-MILLS, Charles C. (orgs.). Max Weber - Ensaios de Sociologia. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

  

[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 788459/BA; Relator: Ministro Fernando Gonçalves, DJU de 13/03/2006, p. 334.

 

 

Elaborado em dezembro/2012

 

Como citar o texto:

DUTRA, Luiz Henrique Menegon..A compatibilidade entre a teoria da perda da chance e o animus do ordenamento jurídico brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 20, nº 1043. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/2688/a-compatibilidade-entre-teoria-perda-chance-animus-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em 14 jan. 2013.

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