Resumo

O célere avanço da tecnologia propiciou grande incremento à utilização da Internet em detrimento de outros meios de comunicação, trazendo consigo inúmeros benefícios às relações socioeconômicas no contexto global. Entretanto, consoante à exponencial e dispersa expansão desta verdadeira digitalização da sociedade, surgem numerosos e inéditos desafios aos criadores e operadores do Direito. As atuações ilícitas dos usuários, doravante chamados de crimes cibernéticos, podem ser consideradas o grande desafio criminal dos próximos anos, pois trazem ao Estado a necessidade de se adaptar e regulamentar tais questões em seu ordenamento jurídico. O presente artigo buscará analisar a recém-sancionada lei 12.737, apelidada de “Lei Carolina Dieckmann”, sob o pretexto de reforçar a necessidade da tipificação destas condutas delituosas digitais na legislação penal, com o fim precípuo de proteger de ulteriores violações os direitos fundamentais dos cidadãos, como o à privacidade.

Abstract

The rapid advancement of technology has provided great increase in the use of the Internet over other media, bringing countless benefits to socioeconomic relations in the global context. However, with the exponential and dispersed expansion of this digitalization of society, came numerous and unprecedented challenges to the creators and operators of Law. The illegal actions of users, now called cybercrimes, can be considered the greatest criminal challenge of the coming years, as they bring upon the State the need to adapt and regulate such issues in its legal system. This article will seek to examine the newly enacted Law 12.737, dubbed “Carolina Dieckmann Law”, under the pretext of reinforcing the need for criminalizing these illegal digital actions, with the primary purpose of protecting the fundamental rights of citizens, such as privacy, from further violations.

1)    Introdução

O progresso tecnológico, marcadamente dinâmico, trouxe múltiplas inovações e benefícios a praticamente todos os campos da vida moderna. Dentre elas, é de notável importância ressaltar o advento da Internet como novo e preferencial meio de comunicação. Por permitir a interligação simultânea de milhões de pessoas espalhadas ao redor do mundo, sua expansão se deu de maneira vertiginosa, propiciando assim a difusão de informações em uma escala até então inimaginável. Dito isto, podemos entender hodiernamente que as relações econômicas, financeiras e sociais criam cada vez mais um caráter de dependência em relação às tecnologias de informação, sobretudo quanto ao mundo cibernético e informático. Com a consolidação desse novo contexto relacional, surgem por óbvio novas questões e circunstâncias que, à época de nosso Código Penal, que data do ano 1941, eram impensáveis ao legislador. Estabelece-se então, por consequência, uma grande carência de regulamentação das “questões digitais”, que trazem ao Estado um desafio de adaptar o Direito vigente aos novos anseios sociais. Assim, são endereçadas ao Poder Legislativo duas essenciais missões: criar leis que normatizem essas novas relações digitais, e promover uma aproximação, uma menor dissociação das normas vigentes à nova dinâmica social, a fim de que os operadores do Direito possuam um substrato legal suficiente para a pacificação social dos novos conflitos que necessitem de intervenção do Judiciário.

Dentro desta nova realidade, surge a figura dos criminosos digitais, cujas atuações se proliferam de forma alarmante ao redor de todo o mundo, aproveitando-se do uso e da dependência cada vez maiores que a sociedade tem do meio virtual, geralmente com o intuito de obter vantagens indevidas de quaisquer espécies, embora na maioria sejam de ordem econômica. O problema torna-se ainda mais grave quando da constatação da grave insuficiência de pessoal, conhecimento técnico e especializado que os Estados possuem em seu aparato, que inviabilizam enormemente a possibilidade de solucionar tais crimes, ainda mais levando-se em conta que os criminosos frequentemente ultrapassam a capacidade dos organismos policiais até dos países mais desenvolvidos, sendo limitados apenas por suas habilidades criativas e técnicas. Desta forma, dada a dificuldade atual de combate a tais crimes, mesmo em países como os EUA e a Inglaterra, cujas polícias tem se utilizado da criação de divisões especialmente treinadas para o combate a tais delitos, os chamados Cybercops, diversos direitos fundamentais são continuamente violados com a prática de tais condutas ilícitas.

Podemos exemplificar brevemente, dada a complexidade do tema, com a enorme quantidade de furtos de dados que ocorrem no meio virtual, a difusão de pornografia infantil, a apologia a crimes de ódio, a difusão de ideias terroristas, violações a todo tipo de informação sigilosa, manifestações de racismo, e a questão mais relevante para o nosso estudo, a violação de privacidade, de intimidade dos cidadãos. Tornou-se emblemático no Brasil o caso da atriz Carolina Dieckmann, que até deu o apelido à lei 12737, vítima de uma violação à privacidade neste ano de 2012, em que 36 fotos íntimas suas foram furtadas do computador da atriz por “hackers” ou “crackers”, através de um software específico que fora enviado para o email de Dieckmann, e então as fotografias foram posteriormente publicadas em diversos endereços da internet, após Carolina se negar a pagar a quantia exigida pelos criminosos.

O caso teve grande repercussão nacional e reacendeu as discussões sobre a necessidade de haver uma regulamentação específica aos crimes de informática, pois embora muitas das condutas dos agentes pudessem ser tipificadas dentro do atual Código Penal pátrio, como a extorsão qualificada e o furto das imagens, a específica invasão ao computador de propriedade da atriz não se encontrava tipificado. O Projeto-Lei 2793/2011 traria a solução para o anseio social, e numa tramitação anormalmente célere, este viria a ser a ser convertido na Lei Ordinária 12737/2012, a Lei Carolina Dieckmann. Poucos meses após o ocorrido então, no dia 30 de Novembro de 2012, a presidenta da República Dilma Rousseff sancionou a lei 12.737, que dentre outras disposições, veio dispor sobre a tipificação criminal dos delitos informáticos, em especial o de invasão de dispositivo informático.

Feitas tais considerações iniciais, em um primeiro momento buscaremos analisar a relevância dada pelo ordenamento jurídico pátrio ao direito à privacidade, erigido como de caráter constitucional, dentro de uma sociedade de informação.

Posteriormente, realizaremos uma análise crítica e detalhada da Lei Ordinária 12737/2012, a fim de estabelecer quais os ganhos que sua aprovação traz à sociedade, e também em quais pontos suas disposições poderiam ser melhoradas, à luz do Direito Penal.

Finalmente, concluiremos demonstrando a necessidade não somente da regulamentação normativa dos problemas trazidos pela revolução digital, como o são os crimes digitais, mas, sobretudo, da necessidade de o Estado agir concretamente, através de investimentos que permitam a qualificação do pessoal e servidores para que se efetivamente enfrente a complexidade de tais delitos.

2 O Direito à privacidade sob as perspectivas constitucional e civilista no ordenamento jurídico brasileiro

2.1 A privacidade como direito fundamental na Constituição Federal de 1988

Inicialmente, podemos afirmar que o direito à privacidade é erigido a caráter de direito fundamental, constante dentre os direitos individuais e coletivos preceituados pelo art. 5º, que em seu inciso X, preceitua: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização por dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Inicialmente devemos entender o que seriam estes direitos fundamentais. Partindo de uma análise inicial de nossa Constituição de 1988, também conhecida pela alcunha “Constituição Cidadã”, devemos ressaltar que esta veio a concretizar uma nova etapa do constitucionalismo brasileiro. Ampliou-se em grande monta a importância dada aos direitos fundamentais, como se vê pela própria disposição topográfica dos mesmos dentro do texto constitucional, posicionados com prevalência sobre o Estado, evidenciando-se uma maior prevalência aos interesses do homem frente ao Estado, que seria o instrumento a lhe conceder a realização da felicidade. Desta forma, o homem passa a ser o fim último do Estado.(Cunha Júnior, 2011,p. 633)

Além disso, houve a ampliação do catálogo dos direitos fundamentais, com a previsão constitucional de que os ali dispostos não afastam outros que decorram do regime ou princípios adotados pela Constituição ou os advindos de tratados internacionais em que o Estado Brasileiro seja parte, nos termos do §2º do Artigo 5º. Houve da mesma forma a previsão dos direitos sociais como parte de uma ideia geral dos direitos fundamentais, possuindo a força vinculativa própria destes. (CUNHA JÚNIOR, 2011, p.634)

Quanto a uma definição do que seriam estes direitos fundamentais, cabe expor a conceituação feita pelo ilustre jurista José Afonso da Silva, que asseverou:

Direitos Fundamentais do Homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de se referir a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem¸ no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. (SILVA, 2010, p. 178)

 

Tais afirmações feitas, temos que na Constituição o direito à privacidade é trazido de forma ampla e indireta, e suas manifestações ou desdobramentos são os direitos à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas constantes do art. 5º, X, que estudaremos doravante.

Podemos entender a privacidade como abrangendo “o modo de vida doméstico, as relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, local, nome, imagem, pensamentos e segredos, e, bem assim, as origens e planos futuros do indivíduo” (OLIVEIRA apud SILVA, 2011, p. 206). Assim, é de notável importância medidas que venham a proteger este direito, sobretudo nos dias de hoje, em que os meios de comunicação, como a Internet, tornaram-se mais eficazes e sofisticados, permitindo a devassa da privacidade dos indivíduos de forma cada vez mais fácil, e muitas vezes mais danosa, dada a facilidade de divulgação de conteúdo em tempo real e a uma grande gama de destinatários.

Quanto à sua primeira vertente, o direito à intimidade, temos que o eminente doutrinador Dirley Cunha Júnior o conceitua como a “vida secreta ou exclusiva que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, nem mesmo junto à sua família, aos seus amigos e ao seu trabalho”. (2011, p. 701). Desta forma, podemos então considera-lo como ligado à proteção dos direitos mais íntimos de uma pessoa, como “sua vida amorosa, a sua opção sexual, o seu diário íntimo, o segredo sob juramento, as suas próprias convicções”. (COSTA JR apud CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 701).

Excelente definição sobre o assunto nos traz Georges Duby, ao dizer que a intimidade se relaciona com:

...uma zona de imunidade oferecida ao recolhimento, onde todos podemos abandonar as armas e as defesas das quais convém nos munir ao arriscar-nos no espaço público; onde relaxamos, onde nos colocamos à vontade, livres da carapaça de ostentação que assegura proteção externa. Este lugar é de familiaridade. Doméstico. Íntimo. No privado encontra-se o que possuímos de mais precioso, que pertence somente a nós mesmos, que não diz respeito a mais ninguém, que não deve ser divulgado, exposto, pois é muito diferente das aparências que a honra exige guardar em público. (DUBY, 1990, p.10)

 

Quanto à definição de vida privada, temos a diferença da intimidade no sentido de que seria algo mais amplo que aquela, porém dada a imprecisão e a linha tênue que separa os dois conceitos, a diferença entre ambas teve de ser construída e delimitada jurisprudencialmente. Desta forma, adotamos a definição dada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior:

A vida privada pode envolver, pois, situações de opção pessoal (como a escolha do regime de bens no casamento) mas que, em certos momentos, podem requerer a comunicação a terceiros (na aquisição, por exemplo, de um bem imóvel). Por aí ela difere da intimidade, que não experimenta esta forma de repercussão.(FERRAZ JÚNIOR, 1993, p. 133)

 

Já o direito à honra, conceitua-o Adalberto José Aranha como o fundamento constitucional acerca do qual se concede a proteção a:

um conjunto de qualidades físicas, morais e intelectuais de um ser humano, que o fazem merecedor de respeito no meio social e promovem sua autoestima. É um sentimento natural, inerente a todo homem e cuja ofensa produz uma dor psíquica, um abalo moral, acompanhados de atos de repulsão ao ofensor. Representa o valor social do indivíduo, pois está ligada à sua aceitação ou aversão dentro de um dos círculos sociais em que vive, integrando seu patrimônio. Um patrimônio moral que merece proteção. (ARANHA, 2005, p.2-3)

 

Desta forma, a honra seria em suma a visão que a sociedade tem acerca das qualidades de uma pessoa, como sua reputação, nome, respeito, e também o sentimento que cada pessoa possuiria em relação a essas suas qualidades próprias, com a idéia de honra subdivindo-se então em objetiva e subjetiva, conforme os termos anteriores.

Por fim, temos que o direito à imagem se relaciona com o resguardo dos aspectos físicos da pessoa, de forma a impedir sua divulgação quando não-autorizada. Para Carlos Alberto Bittar, a imagem seria “o vínculo que une a pessoa à sua expressão externa, tomada no conjunto, ou em partes significativas (como a boca, os olhos, as pernas, enquanto individualizadoras da pessoa)”. (BITTAR, 1989, p.87)

Feita a exposição dos fundamentos constitucionais que permeiam a questão da privacidade, fica claro que a norma superior do ordenamento brasileiro prevê a proteção a este direito, e as disposições de uma lei que vise tutelá-los frente à uma nova dinâmica social e tecnológica é acertada, sobretudo em atendimento às disposições do cânone constitucional.

A provisão constitucional a tais direitos, sobretudo aliada ao princípio retor da Dignidade da Pessoa Humana, enseja alguns tipos de tutela a tais direitos, que se espraiam nas esferas administrativa, civil e penal, podendo inclusive serem de uso simultâneo, de acordo com as circunstâncias do fato. A tutela civil, que será discutida no próximo tópico, depende da iniciativa do interessado e regra geral se dá em medidas de reação e reparação de danos. A tutela penal, que será objeto do estudo na questão em específico quanto à privacidade a lei 12737, pode ser obtida através da ação penal, com a persecução criminal do agente e a aplicação de sanções correspondentes ao delito cometido. Por fim, a tutela administrativa se dá através de entidades públicas e privadas, que buscam garantir a efetividade dos direitos, desde que haja estruturação própria (registros, assistência, multas ou penas administrativas, interdição de ações abusivas).

2.2 A tutela destinada pelo Código Civil 2002 à privacidade sob a ideia de direitos da personalidade

O Código Civil de 2002 reconhece, expressamente, os chamados direitos da personalidade em seus arts. 11 a 21. Dentro de uma perspectiva civil-constitucionalista do Direito Civil, após o advento da Constituição de 1988 e a necessidade de se deixar na história a dicotomia existente até então entre Direito Público e Privado, podemos considerar que estes direitos da personalidade estatuídos na legislação cível se relacionam com uma proteção ampla e irrestrita do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, perfazendo uma construção normativa que positiva a proteção jurídica infraconstitucional da pessoa, seja perante outras pessoas, seja perante o Estado.

Com a afirmação de princípios constitucionais como cidadania e a dignidade da pessoa humana, reforçou-se a tese de que a pessoa seria o ponto central da ordem jurídica brasileira, como anteriormente afirmado.

Assim, o Enunciado 274 da IV Jornada de Direito Civil veio a sedimentar o entendimento da relação bidirecional que se dá entre os direitos da personalidade e a dignidade humana constitucional: “os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da Constituição Federal.”

Maria Helena Diniz define os direitos da personalidade como os direitos “da pessoa defender o que lhe é próprio, como a vida, a identidade, a liberdade, a imagem, a privacidade, a honra etc.” (DINIZ, 2010, p. 122) São direitos subjetivos que exigem um comportamento negativo dos concidadãos “excludendi alios”, em respeito à esfera de autonomia privada de cada um. Desta forma, se torna cabível a pretensão de ação judicial para a proteção de ameaça ou lesão a qualquer um destes, nos moldes da inafastabilidade da tutela jurisdicional prevista em disposição constitucional. Assim, se consumam em permissões dadas pela norma jurídica para a defesa de um bem pessoal e inato que a natureza lhe deu, como a vida, a intimidade, a honra e a higidez física.

Sem buscar esgotar o tema, podemos afirmar que os direitos da personalidade possuem algumas características marcantes, sendo dotados de certas particularidades que vem a limitar a ação do próprio titular, como serem absolutos e possuírem intransmissibilidade, indisponibilidade, imprescritibilidade, irrenunciabilidade, dentre outras características.

A tutela civil destes direitos se dá de diversas maneiras, possuindo o lesado múltiplos meios de reação à sua disposição. Pode valer-se, por exemplo, de ações cautelares, de ações de busca e apreensão, de notificações, protestos, interpelações. Quanto às ações principais mais comumente utilizadas, temos as declaratórias para afirmação ou negação da existência de uma relação jurídica e as de reparação de danos. Podem assim ser obtidos tanto a eliminação de um ilícito e de seus efeitos, por exemplo, com a restauração do status quo ante até a reparação do dano causado, pelas contas de lucros cessantes e danos emergentes e morais, como medida de maior alcance que busca a realização dos interesses lesados ao promover a restauração do equilíbrio rompido com a lesão sofrida por aquele direito personalíssimo. (BITTAR, 1989, p. 48)

Eis o texto do art. 21 do Código Civil brasileiro, que vem a ratificar o que foi exposto acima: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar o ato contrário a esta norma.”

No caso dos direitos relativos à privacidade, sobretudo por muitas vezes a questão não ser apreciável de forma diretamente pecuniária, pauta-se pela indenizabilidade em danos morais. Esses danos morais são relativos aos atributos valorativos da pessoa como ente social, como, por exemplo, a honra, a reputação e as manifestações mais pessoais de sua intimidade. A dor psíquica seria compensada, embora não de forma ideal, com o pagamento de uma soma em dinheiro, que teoricamente viria a reparar o lesado, transferindo ao agente o ônus da satisfação. A tutela cível é de suma importância nesses casos, pois as outras opções tem um alcance limitado, seja legalmente, seja faticamente, enquanto que a cível tem um alcance pleno, abrangente, que visa a solucionar as questões derivadas das relações sociais, as quais ainda que lícitas, podem, porém, ser prejudiciais a outro indíviduo, no típico caso do abuso de direito. A tutela administrativa será restrita e somente poderá ser acionada se houver aparelhamento no mundo fático para defender o direito violado, e o direito penal só pode ser acionado quando a conduta é penalmente ilícita, como podemos depreender do princípio da tipicidade e da reserva legal. (BITTAR, 1989, p. 16-17)

No caso de Carolina Dieckmann, suas fotos íntimas foram expostas ao grande público, violando de forma veemente seu direito à privacidade. Como promover a reparação nesses casos, se a retirada do conteúdo do acesso ao público, dado o grau tecnológico atual, é logicamente impossível? Nesse caso, dada a situação financeira da atriz, nem a compensação financeira dos réus seria suficiente para reparar o mal causado. Haveria então um interesse público de que os criminosos fossem punidos, a fim de que se fizesse de exemplo aquela situação para buscar coibir novos casos semelhantes (embora tal prática seja comum no mundo inteiro, mesmo em países com legislações mais específicas quanto aos crimes informáticos).

Podemos então refletir que o progresso tecnológico crescente vai tornando cada vez mais aguda a necessidade da proteção de certos valores inerentes à figura humana, sobretudo quanto à rápida difusão de dados que hoje existe na sociedade. A preservação dos valores, quando não encontra eficácia ou a melhor solução nos âmbitos administrativos e cíveis, recorre à ultima ratio, o Direito Penal, que vem através de seu mecanismo de proteção mais rígido e rigoroso buscar dar efetividade à proteção aos direitos daqueles que tem razão. Assim se deu com os crimes informáticos pelo advento da lei 12737, a ser discutida no próximo tópico.

3. A proteção da privacidade no Direito Penal na sociedade digital e as inovações trazidas pela Lei 12737.

Quando a conduta do agente é típica, ilícita e culpável, caberá ao Direito Penal e seus operadores a persecutio criminis, visando buscar a verdade real dos fatos e punir os criminosos, se considerados culpados.

A legislação criminal em vigor tem sido, em alguns casos, suficiente para analisar e julgar os casos de violação de privacidade também os delitos contra a honra praticados no meio virtual, porém muitas vezes há uma desproporcionalidade entre as consequências dos crimes e as penas e reparações impostas pelos juízes aos infratores. Devemos lembrar que a difusão de informações na Internet é praticamente impossível de mensuração e de controle, e as reprimendas criminais impostas, como as contidas nos delitos contra a honra e relativos ao sigilo, são muitas vezes carente de efeito coercivo, se levarmos em conta as leves penas contidas nos tipos penais, que ensejarão sua resolução dentro dos Juizados Especiais Criminais, com penas leves, restritivas de direito ou mesmo a sursis e suspros. Devemos lembrar que tais penas foram impostas em um contexto social em que a prática das condutas como calúnia (detenção de 6 meses a 2 anos e multa), injúria (detenção de 1 a 6 meses e multa) e difamação (detenção de 3 meses a 1 ano e multa) eram feitas dentro dos limites tecnológicos da época (décadas de 1930-1940), como jornais de baixa circulação, rádios e fofocas. Como comparar a abrangência e a amplitude do ilícito à época, em relação à repercussão que hoje há nos crimes cometidos pela internet, e ainda mais com a manutenção das mesmas penas leves e quase que insignificantes nos dias de hoje?

A lei 12737 (Lei Carolina Dieckmann) veio com o intuito de inovar, ao dispor sobre a tipificação criminal dos delitos informáticos, prevendo novos tipos e maior rigor em algumas questões. Vamos à análise dos novos tipos penais que a lei trouxe a nosso ordenamento:

“Invasão de dispositivo informático - Art. 154-A.  Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita:  

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.  

Após a leitura do tipo, nos deparamos com alguns problemas importantes.

O primeiro é que a redação do tipo carece de definição e precisão em relação a alguns termos que não são previstos em qualquer lei, inviabilizando em muitos casos a tipificação da conduta e a consequente ação penal.

Por exemplo, o que seria a conduta de invadir nesses casos?  O que seria a violação indevida de mecanismo de segurança? A quebra de uma senha? O que seriam os próprios mecanismos de segurança? Firewalls, senhas, proteções biométricas, talvez. O que seriam as tais vulnerabilidades? Cavalos-de-tróia, worms, backdoors. São questões que ensejam uma adaptação do conhecimento jurídico às terminologias específicas e os jargões frequentemente relacionados às tecnologias de ponta, de necessária e precisa regulamentação, a fim de que a legislação seja de fato efetiva.

Há uma necessidade urgente de definição legal, com o auxílio de especialistas em Direito e Tecnologia e aos formados nas Tecnologias da Informação e correlatos, a fim de que o juiz tenha a segurança de saber se houve ou não o fato típico para o fim de sentenciar, ou em último caso de construção doutrinária quanto a tais questões, a fim de que tal tipo não vire letra morta dentro do Direito Penal quando se encerrar seu vacatio legis de 120 dias, contados a partir de 30 de Novembro de 2012.

Quanto aos parágrafos relacionados ao tipo, temos:

§ 1o  Na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput.  

§ 2o  Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico.  

§ 3o  Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido:  

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.  

§ 4o  Na hipótese do § 3o, aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos.  

§ 5o  Aumenta-se a pena de um terço à metade se o crime for praticado contra:  

I - Presidente da República, governadores e prefeitos;  

II - Presidente do Supremo Tribunal Federal;  

III - Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembleia Legislativa de Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Municipal; ou  

IV - dirigente máximo da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal.”  

O parágrafo 1º nos traz um problema relacionado também à  discussão anterior. Quais seriam tais dispositivos ou programas de computador que permitiram a tipificação, sobretudo pelo fato de a maioria dos programas distribuídos na Internet em sua instalação acabarem provocando alguma vulnerabilidade no computador de quem instala de livre e espontânea vontade, como são os programas de compartilhamento de músicas, vídeos e softwares no sistema peer-to-peer.

O prejuízo econômico do parágrafo 2º será em alguns casos também de difícil aplicação, pois em muitos dos casos o prejuízo não é diretamente econômico, mas mais relacionado a uma violência psíquica e moral.

Quanto ao parágrafo 3º, normalmente tais condutas estarão absorvidas em crime mais grave, como estelionato, extorsão, mas veio a atender casos em que os arts. 153 e 154, por exemplo, fossem levar a penas menores, o que de certa forma contribuirá para uma maior coercividade da sentença, complementado ainda pelo parágrafo 4º. Por fim, o parágrafo 5º traz causas de aumento que se aplicam ao caput e à qualificadora do parágrafo 3º, em vista da posição de decisão que tais agentes políticos possuem dentro das estruturas de poder pátrias.

Por fim, temos o art. 154-B, que dispõe sobre a ação penal cabível nos casos do artigo 154-A (representação é a regra geral, sendo incondicionada nos casos do parágrafo 5º e alguns outros, dado o interesse público subjacente).

Por fim, alterou o art. 266, incluindo dentre as interrupções e perturbações os serviços informáticos (a Internet) e o art. 298, equiparando a documento particular o cartão de crédito ou débito, punindo assim sua falsificação.

Temos então que a lei é um avanço legislativo, no sentido de buscar coibir com mais veemência os crimes digitais, tipificando-os no Código Penal e permitindo assim a utilização do aparelho de persecução penal do Estado, com o fim de promover uma maior efetividade e justiça nos casos de violação e invasão à privacidade alheia. Por outro lado, vemos que a lei possui algumas deficiências que devem ser sanadas pelo Legislativo ou doutrina a fim de que se permita sua válida aplicação, sobretudo ao definir os termos imprecisos dispostos nos tipos, lembrando-se que a interpretação analógica ou extensiva é vedada em Direito Penal, mais ainda por este ser regido por princípios fundamentais, como o do in dubio pro reo, o da subsidiariedade e o da taxatividade, a fim de que não se use arbitrariamente a sanção penal, a mais grave dentro de um ordenamento, em vista das graves consequências que impõe ao condenado.

4. Conclusão

Das disposições anteriores, podemos depreender que a privacidade é um direito de valor inestimável à dignidade da pessoa humana e a seu bom convívio social. Tanto que o é, que o Direito Constitucional o erigiu ao patamar de direito fundamental, com o máximo de garantias e o mínimo de limitações a sua fruição, inclusive quanto a intervenções do Estado.

O Direito Civil é o amplamente responsável por pacificar as lides relativas às violações deste direito, apesar da possibilidade das tutelas administrativa e penal de tais fatos, em certas e restritas hipóteses. Contudo, os efeitos colaterais da Informática no âmbito da sociedade, tanto em relação ao Estado quanto aos cidadãos, na ocorrência de casos emblemáticos como o de Carolina Dieckmann, levam a reflexões de todo o cunho social sobre a necessidade de o Direito, com a firme atuação do Estado, se adaptar e tentar suprir algumas vulnerabilidades intrínsecas à evolução tecnológica. Dada a dificuldade de mensuração dos prejuízos decorrentes de atos ilícitos como o ocorrido com Dieckmann, muitas vezes o interesse público na punição mais severa (criminal) dos agentes acaba por ser a medida que talvez seja a única apta a promover um certo temor nos possíveis sujeitos ativos, evitando a proliferação ainda maior destes atos.

O Direito Penal então, como ultima ratio da jurisdição sancionatória, é conclamado a prevenir a propagação do cometimento de tais delitos, e para tal, necessita de disposições legais que promovam a tipificação das condutas e que as coloquem sob suas possibilidades punitivas, como foi feito em relação a tais delitos informáticos pela lei 12737. Apesar dos problemas já anteriormente enfrentados, a Lei Carolina Dieckmann poderá servir talvez de um impulso inicial para uma melhor regulamentação destas questões, a fim de que se encontre uma solução dentro do Direito suficientemente adaptável a celeridade criminosa.

Também, apesar dessa inovação normativa quanto a tais modalidades delituosas, de nada valerão as leis se o Estado não lhes conceder efetividade na prática, a fim de que os reflexos da dinâmica tecnológica não coloquem toda a sociedade civil e o próprio Estado e suas instituições em uma situação de vulnerabilidade extrema frente às novas vias de informação, as chamadas “infovias”.

É necessária a adequação das condutas de crimes digitais à legislação positiva existente, mas não só essas iniciativas de estudo e deliberação de cunho meramente normativo. Além da exigência de celeridade ao legislador (a fim de que não se fique refém da estática normativa, e das fórmulas muitas vezes medievalistas do Direito face a uma nova realidade extremamente dinâmica), deve-se perpetrar o combate preventivo ao fenômeno, com planejamento, preparo e treinamento nessa área específica de crimes perpetrados via internet à polícia brasileira, sobretudo devido ao caráter de instantaneidade destas condutas, a fim de que se possa definir como coletar as provas e evidências, formas de encontrar o agente, compatibilizar as ações repressivas de acordo com as leis nacionais e internacionais existentes.

O Estado deve então agir, a fim de que não se estimule a impunidade, e se permita aproveitar todo o poderoso processo de integração e evolução que o progresso nos trouxe, sem deixar com que ele se torne uma poderosíssima ferramenta a favor do crime e contra a sociedade inocente.

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Elaborado em dezembro/2012

 

Como citar o texto:

GLATZL, Rafael da Silva..A dinâmica tecnológica e o direito à privacidade: reflexões acerca da lei 12.737/12. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1113. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/2747/a-dinamica-tecnologica-direito-privacidade-reflexoes-acerca-lei-12-73712. Acesso em 21 out. 2013.

Importante:

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