Resumo

O presente artigo aborda a temática da (in) admissibilidade do instituto jurídico denominado evicção administrativa, doravante a ser conceituado e juridicamente caracterizado, especialmente no que toca à sua possível viabilidade perante o ordenamento jurídico brasileiro. Em um primeiro momento, dar-se-ão noções gerais acerca da evicção, com apresentação de seu conceito, noção histórica, requisitos e outras características. Ultrapassada esta fase inicial, entrar-se-á no mérito da discussão tema do presente trabalho: a evicção administrativa, também denominada evicção extrajudicial, possui viabilidade jurídica dentro do direito brasileiro ou é um instrumento de transgressão da tradicional exigência de sentença judicial para a configuração da responsabilidade pelos riscos da evicção? Com argumentos baseados nos posicionamentos dos mais célebres juristas e com base na atual jurisprudência, buscarei sanar a referida incógnita, sempre pretendendo fomentar o debate acadêmico acerca da matéria. Palavras-chave: evicção administrativa, sentença judicial, ato administrativo, apreensão policial.

Abstract

This article approaches the issue of (in) admissibility of the legal institution called administrative eviction, henceforth to be regarded and legally characterized, especially with regard to its possible viability before the Brazilian legal system. At first, will give general notions about the eviction, with the presentation of its concept, historical concept, requirements and other characteristics. Beyond this initial phase, it will enter the substance of the discussion topic of this work: the administrative eviction, also called extrajudicial eviction, has legal feasibility within the Brazilian law or is an instrument transgression of traditional requirement of judicial decisions for the configuration responsibility for the risks of eviction? With arguments based on the placements of the most celebrated jurists and based on current case law, I-ll seek remedy such incognito, always intending foster academic debate on the subject. Keywords: eviction administrative, court judgment, administrative act, police apprehension.

Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito de evicção. 3. Noção histórica. 4. Requisitos. 5. Reforço, redução ou exclusão da responsabilidade pela evicção. 6. Evicção administrativa: instituto juridicamente admissível ou instrumento de transgressão à exigibilidade de sentença judicial? 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.

1. Introdução.

A evicção é instituto jurídico presente desde os antigos primórdios do Direito Romano e que apresenta, hoje, um caráter de essencialidade para solucionar os mais variados conflitos particulares provocados dentro das relações contratuais modernas. Neste sentido, a ciência jurídica tradicional sempre exigiu, repetindo as formalidades de origem romana, uma sentença judicial para conformar a responsabilidade do alienante pelos riscos da evicção. Contudo, o atual estágio da ciência jurídica permitiu - e permite -, aos poucos, através da doutrina e da jurisprudência, a configuração da responsabilidade do alienante pela evicção com base em atos administrativos, em casos específicos, fugindo das raias tradicionais de exigência de pronunciamento favorável do Poder Judiciário. O presente artigo busca, exatamente, invocar o debate acerca da (in)admissibilidade deste novel instituto, apresentando argumentos favoráveis e desfavoráveis oriundos dos mais variados juristas, de modo a firmar uma convicção sólida sobre sua conformidade ou desconformidade com a hodierna ciência jurídica e de modo a ampliar o debate acadêmico sobre a matéria.

2. Conceito de evicção.

Na transferência da coisa, o alienante está obrigado a observar um conjunto de garantias conferidas ao adquirente. Uma delas é a não intervenção na fruição da coisa adquirida pelo comprador, tanto por atos do vendedor como por atos de terceiro. Ocorrendo intervenção ilegal na coisa do adquirente, este pode valer-se das ações possessórias e de outros meios garantidos legalmente.

O instituto da evicção vem regulamentado nos arts. 447 a 457 do Código Civil de 2002. Com efeito, dispõe o art. 447 que “Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção; subsiste esta garantia ainda que a alienação se tenha realizado em hasta pública.”. Verifica-se, assim, que a evicção é instituto presente em todos os contratos onerosos, e não somente na compra e venda. Sendo o contrato gratuito, como se lê no dispositivo legal, não há responsabilidade do alienante pela evicção. Não há sentido para que exista responsabilidade por evicção em contratos gratuitos, uma vez que a perda da propriedade pelo adquirente não lhe trará um efetivo prejuízo, obstando-lhe apenas um ganho. Deste modo, a evicção é a perda da coisa, pelo adquirente, em virtude de uma decisão, em tese judicial, que a atribui a terceiro com causa pré-existente ao negócio jurídico.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, in Código Civil Comentado, 7ª ed., Editora Revista dos Tribunais, 2009, mencionam que a “evicção é a perda da coisa (propriedade, posse ou uso) em virtude de decisão judicial ou administrativa, de caráter (lato sensu) reivindicatório ou expropriatório, que a atribui a outrem.”. Os autores desde já reconhecem a viabilidade jurídica da chamada evicção administrativa, em exceção à regra de que a evicção depende de sentença judicial.

3. Noção histórica.

O instituto da evicção surgiu nos contratos consensuais em Roma. O adquirente que fosse demandado por terceiro poderia chamar o vendedor para defendê-lo em juízo. Caso o vendedor não se apresentasse ou, mesmo se apresentando em juízo, perdesse o adquirente a coisa em benefício do terceiro, teria ele direito à chamada “actio auctoritatis”, a fim de obter o dobro do que pagou no negócio jurídico (VENOSA, p. 549). Para o autor, a evicção não intervinha na validade do contrato. O negócio jurídico continuava sendo válido, tão somente sobrevindo o dever de indenizar pelo vendedor, que assumiu a responsabilidade pela evicção.

4. Requisitos.

Primeiramente, é necessário que haja perturbação de direito por causa jurídica. Este vício de direito deve ser anterior ou concomitante à alienação. Se o vício for posterior à alienação, a responsabilidade é do novo titular, e não do alienante. Igualmente, a doutrina corrobora que é necessária uma sentença judicial decretando a perda da coisa pelo adquirente. Contudo, a questão é bastante divergente. Parte da doutrina afirma que, quando o direito do terceiro for inequívoco, não há motivo para que este recorra ao Poder Judiciário para obter sentença judicial decretando a perda da coisa em seu benefício. Com efeito, Guilhermo Borda (1989:888) afirma que:

Nossos tribunais aceitam hoje sem discrepâncias que, quando o direito do terceiro fora indiscutível, o comprador pode fazer o abandono da coisa e reclamar a garantia da evicção. É solução lógica, pois não tem sentido obrigar o comprador a seguir um juízo que certamente há de perder, o qual ocasionará incômodos e gastos que de forma definitiva redundarão em prejuízo do devedor.

Postergarei a discussão sobre a necessidade ou desnecessidade de sentença judicial para a decretação da evicção para momento posterior, porquanto é o tema principal deste artigo, para o qual me atentarei exclusivamente para demonstrar o entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da matéria.

A doutrina, reafirmando o que determina o art. 456 do Código Civil, menciona que o adquirente deverá denunciar o alienante à lide. Como é sabido, a denunciação da lide é modalidade de intervenção de terceiros em que se busca a inclusão, no processo, de nova ação, subsidiária à original, que será apreciada no caso de o denunciante sucumbir na ação principal. Está disciplinada entre os arts. 70 e 76 do Código de Processo Civil. Diz o art. 70, I, do CPC que a denunciação da lide é obrigatória “ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta.”. Se a ação for julgada procedente, a sentença acolherá o pedido do adquirente, reconhecendo-o como evicto, ou declarará a responsabilidade por perdas e danos, valendo como título executivo (art. 76, CPC). Também refere o art. 456 do CC/2002 que “Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determinarem as leis do processo.”. A doutrina diz que, como é possível a formação de uma cadeia muito longa de alienantes, deverá o denunciado, a partir da segunda denunciação, intimar o alienante, e não citá-lo, de modo a garantir efetividade ao processo. VENOSA (2012, p. 553) refere que:

A intimação servirá para os propósitos da lei material, mas não é estabelecida uma cadeia de lides secundárias, como muitos juízes erradamente permitem. A lei, ao determinar a intimação e não a citação do segundo denunciado, não o transforma automaticamente em parte. Caso contrário, o processo corre o risco de ter uma infindável cadeia de lides secundárias, o que dificultará e retardará sobremaneira seu processamento e julgamento, em prejuízo absoluto do autor, que nada tem a ver com o sucessivo encadeamento. Com a intimação sucessiva, atendemos à determinação do art. 456 do Código Civil, devendo as partes, posteriormente, valer-se de ações regressivas autônomas.

DINIZ (2002, p. 127), com toda a sua didática, explica, com exemplo, o instituto da evicção aplicado na prática:

Exemplificativamente, suponhamos o caso de A vender a B certo bem, e posteriormente C, dizendo-se proprietário do objeto alienado, vir a acionar B mediante ação reivindicatória. B, para exercer o direito resultante de evicção, deverá dar conhecimento da ação a A, que deverá prestar a garantia por evicção. O meio pelo qual B poderá conseguir que A o resguarde contra o risco da evicção e assuma a defesa da causa de que está sendo vítima será a ação incidente da denunciação da lide, conforme prescreve o Código de Processo Civil, art. 70, I (CC, art. 456).

5. Reforço, redução ou exclusão da responsabilidade pela evicção.

A evicção é direito disponível. Embora independa de cláusula expressa, porque opera de pleno direito, permite o art. 448 do Código Civil, mediante estipulação expressa, o reforço, a diminuição ou exclusão da responsabilidade pela evicção. Se houver cláusula de reforço da responsabilidade pela evicção, deverá a sentença fazer referência ao reforço, valendo como título executivo (art. 76, CPC). Mesmo sendo admitida a exclusão da responsabilidade pela evicção, o art. 459 do Código Civil aduz que “Não obstante a cláusula que exclui a garantia contra a evicção, se esta se der, tem direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não soube do risco da evicção, ou, dele informado, não o assumiu.”. É a cláusula de non praestanda evictione que deixa de extirpar todos os efeitos da garantia da evicção, no caso de sua exclusão.

Marco Antonio Zanellato , Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e Mestrando em Direito Civil pela USP/SP, discutindo sobre a cláusula de exclusão da responsabilidade pela evicção, disse que:

Nem sempre, porém, essa cláusula, apesar de expressa, exclui a responsabilidade em tela. Com efeito, segundo a norma do art. 1.108 do CC, mesmo que haja cláusula expressa de exclusão da responsabilidade, o evicto tem direito de “recobrar o preço que pagou pela coisa evicta se não soube do risco da evicção, ou, dele informado, o não assumiu”. É o que sucede, por exemplo, quando as partes convencionam a exclusão da responsabilidade pela evicção mas o adquirente não é informado de ação reivindicatória já ajuizada, tendo por objeto a coisa vendida. Nesta hipótese, diante da norma sobredita, persiste a responsabilidade do alienante.

A evicção, ainda, poderá ocorrer apenas sobre parte da coisa. A evicção parcial é instituto regulado pelo art. 455 do Código Civil de 2002. Com razão, informa o dispositivo legal que “Se parcial, mas considerável for a evicção, poderá o evicto optar entre a rescisão do contrato e a restituição da parte do preço correspondente ao desfalque sofrido. Se não for considerável, caberá somente direito à indenização.”. Nestes casos, a evicção não é total, mas tão somente parcial, isto é, relativa a certa parte do total da coisa. Poderá o evicto optar pelo ajuizamento da ação de evicção ou a indenização pela parte, falando a lei em desfalque. Na forma do artigo sobredito, para que se faculte a opção entre a ação de evicção ou a indenização pelo correspondente, deve a evicção ser considerável, pois, caso não seja considerável, caberá tão somente direito à indenização.

Ademais, na própria dicção legal do art. 447 do Código Civil de 2002, a garantia da evicção subsiste ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública. Neste sentido, segue aresto do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇAO. CONTRADIÇAO INEXISTENTE. LITISPENDÊNCIA INOCORRENTE. DIREITO CIVIL. EVICÇAO SOBRE BEM ARREMATADO EM HASTA PÚBLICA. CÓDIGO CIVIL DE 1916. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA E COMPENSAÇAO DE HONORÁRIOS. POSSIBILIDADE. [...] 2. Apesar de o CC/1916 não prever a evicção sobre bem arrematado em hasta pública, tanto a doutrina e a jurisprudência do STF já se preocupavam há muito tempo com a peculiar situação e admitiam sua possibilidade, a qual foi confirmada no art. 447 do CC/2002. [...] 5. Recurso parcialmente provido apenas para reconhecer a possibilidade de compensação de honorários advocatícios (REsp n.º 1.237.703 – MG, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Julgado em 26 de abril de 2011).

6. Evicção administrativa: instituto juridicamente admissível ou instrumento de transgressão à exigibilidade de sentença judicial?

Após apresentar algumas noções gerais sobre a evicção e suas consequências jurídicas, partirei para a matéria principal deste artigo: a denominada “evicção administrativa”, hoje muito discutida entre os doutrinadores e a jurisprudência. Será que se mostra juridicamente viável a admissão da perda da propriedade, posse ou uso por uma decisão administrativa, ou melhor, por um ato administrativo, fugindo à tradicional exigência da sentença judicial? Ou será que admitir a evicção administrativa é uma forma de, efetivamente, burlar a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF), que determina a atração do Poder Judiciário para a apreciação das lesões ou ameaças a direito? Procurarei apresentar os posicionamentos diversos acerca da matéria e, aos poucos, apresentar o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência sobre a viabilidade jurídica da evicção administrativa.

Antes de tudo, é necessário apresentar o conceito de evicção administrativa, também chamada de evicção extrajudicial. Semelhantemente à evicção tradicional, a evicção administrativa é a perda da propriedade, da posse ou do uso do bem alienado a terceiro por quem não detinha titularidade para fazê-lo, só que mediante uma decisão administrativa, isto é, por um ato administrativo.

Há muita divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria. Contudo, em que pese os posicionamentos divergentes, pode-se referir que ambas andam a caminho da admissibilidade da evicção extrajudicial. Vejamos por quê.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, in Código Civil Comentado, 7ª ed., Editora Revista dos Tribunais, 2009, ao explanarem sobre o instituto da evicção, já reconheceram a possibilidade de que seja ela decretada a partir de decisão administrativa, qualificando-a como uma das modalidades de evicção. Nas palavras dos autores (2009, p. 562),

Pode ocorrer evicção em virtude de: a) decisão judicial que confere a coisa a terceiro, retirando-a da esfera jurídica do adquirente da coisa evicta; b) decisão administrativa (v.g., desapropriação); c) hasta pública. Tanto nos casos de desapropriação quando nos de alienação em hasta pública, a extinção do direito se dá contra a vontade do titular, pois essas duas formas são espécies de extinção subjetiva de direito, que se verificam contra a vontade do titular (Manuel de Andrade. Rel.jurídica, v. II, n. 59, p. 22) – grifado.

Do mesmo modo, VENOSA (2012, p. 550) posiciona-se no sentido de se admitir, em certos casos, a ocorrência da evicção administrativa, como nas situações de apreensão de veículo furtado com documentação falsificada. De acordo com o autor,

A esse respeito, podemos perguntar qual a diferença entre o adquirente de imóvel que o perde por decisão judicial, porque o alienante não era proprietário, e o adquirente de veículo, que o perde porque a autoridade policial o apreende por se tratar de coisa furtada com documentação falsificada, mas emitida pelo Estado. Destarte, temos acompanhado sem rebuços essa corrente jurisprudencial que entende ser a apreensão administrativa, nessas premissas, equivalente a uma decisão judicial, dentro do espírito do instituto.

Em contrapartida, Silvio Rodrigues, in Direito Civil – Dos Contratos e das Declarações Unilaterais de Vontade, 30ª ed., Editora Saraiva, 2007, acredita que tão somente judicialmente poderá ser examinado o direito do evictor, afastando as possibilidades de admissão da evicção administrativa. Diz o referido autor que:

O direito do reivindicante e a carência de direito do vendedor, em verdade, só judicialmente podem ser apurados; sem sentença com trânsito em julgado, que proclame o bom e o mau direito de um e de outro, não se pode ter certeza sobre a quem pertence o domínio. De maneira que a evicção só ocorre quando a sentença definitiva houver negado ao adquirente seu direito à coisa. – grifado.

Silvio Rodrigues tomou este posicionamento a partir das lições de José Homem Corrêa Telles e Manuel Antonio Coelho da Rocha, ambos nascidos em Portugal, no Século XVIII. De acordo com o entendimento destes juristas, a evicção somente existirá quando, por meio de sentença, for decretada a perda da propriedade adquirida pelo comprador, em benefício do proprietário legítimo. Na dicção de Coelho da Rocha , “Evicção é a perda, que o possuidor de uma coisa sofre em parte ou em todo, em virtude de sentença obtida por um terceiro que a ela tinha direito anterior à venda.”. A doutrina de Rodrigues, com nítidas influências portuguesas, talvez ainda não tenha admitido a evicção extrajudicial por mostrar-se mais tradicional.   Ademais, cabe referir que o Código Civil de 2002 sofreu modificação em relação à legislação civilista de 1916. No antigo diploma legal, havia expressa exigência de que a evicção fosse reconhecida a partir de uma sentença judicial, diferentemente do que consta no Novo Código Civil, que retirou esta exigência legal para dar margem ao surgimento da evicção extrajudicial. Neste sentido, cabe trazer à baila trecho do acórdão exarado no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n.º 768.079 – São Paulo, julgado no Supremo Tribunal Federal  em 28 de fevereiro de 2012:

Evicção – Veículo furtado apreendido por autoridade administrativa – Admissibilidade da utilização do instituto independente de sentença judicial – Regra do art. 1.117 do Código Civil de 1916 que não é absoluta. Em outras palavras em boa hora o novo Código Civil não vem reproduzir as regras inseridas na legislação revogada (artigo 1.117) a possibilitar com isto que pessoas físicas ou jurídicas privadas de seus bens por atos de autoridades administrativas ou por decisão judicial quando a coisa revela procedência criminosa.

Deste modo, considerando a ausência de reprodução das regras vigentes no Código Civil de 1916 para o Código Civil de 2002, de modo intencional pretendeu o legislador abrir margem para o surgimento da evicção administrativa como forma de perda da propriedade, da posse ou do uso da coisa em benefício do titular legítimo. Inclusive, GONÇALVES (2008, p. 127) corrobora o que já foi mencionado, afirmando que “Essa orientação foi reforçada pelo fato de o art. 457 do novo Código Civil não reproduzir a exigência, feita no diploma de 1916, de que a perda tenha decorrido de sentença judicial.”.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, já citados, muito bem explicam a inovação trazida intencionalmente pelo legislador de 2002 junto ao Novo Código Civil:

Embora nossa doutrina e as interpretações dadas ao CC/1916 1117 I tenham adotado a ideia restrita do direito romano, de que o direito de evicção dependia de vitória judicial de terceiro sobre o alienatário, para legitimar-lhe o exercício de ação de evicção, o texto legal considera a evicção um fato danoso sofrido pelo alienatário que pode resultar, também, de uma perda que não seja decorrente de sentença judicial. Tanto mais diante do fato de, no novo texto legal (CC 457), não mais haver a proibição do CC/1916 1117 I.

É perceptível que a doutrina que se filia ao tradicional posicionamento é mais conservadora, arraigando-se a lições mais clássicas, não admitindo a inovação que já está presente com força na jurisprudência. Em contrapartida, junto a vários outros autores, Flávio Tartuce (2008) se filia à corrente moderna que admite a existência da evicção administrativa, na medida em que conceitua o instituto como “A perda da coisa diante de uma decisão judicial ou de um ato administrativo, que a atribuem a um terceiro.” – grifado.

É de se lembrar que a evicção é instituto que somente se aplica aos contratos bilaterais, onerosos e comutativos, isto é, com obrigações recíprocas, com vantagens e sacrifícios para ambas e partes e com as prestações previamente delimitadas contratualmente. Também é cabível a aplicação da evicção nas doações remuneratórias e com encargo, nos termos do art. 540 do Código Civil. Isso porque não há motivo para aplicação da evicção em contratos gratuitos, já que a parte adquirente não sofre prejuízo, mas tão somente a ausência de um ganho.

A par do que vem sendo afirmado pela doutrina, no sentido da admissibilidade da evicção administrativa, passa-se à análise jurisprudencial da matéria Com efeito, a jurisprudência, com destaque para os arestos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), vem admitindo a evicção extrajudicial como forma da perda da propriedade, posse ou uso da coisa pelo adquirente em favor do titular legítimo.

A título de exemplo, o Recurso Especial n.º 259.726 – RJ, de Relatoria do Ministro Jorge Scartezzini, julgado em 03/08/2004 , colacionou o entendimento de que é desnecessária a sentença judicial para o exercício do direito resultante da evicção, nos termos seguintes:

CIVIL - RECURSO ESPECIAL - EVICÇÃO - APREENSÃO DE VEÍCULO POR AUTORIDADE ADMINISTRATIVA - DESNECESSIDADE DE PRÉVIA SENTENÇA JUDICIAL - RESPONSABILIDADE DO VENDEDOR, INDEPENDENTEMENTE DA BOA-FÉ - ART. 1.107, DO CC DE 1916 - DISSÍDIO PRETORIANO EXISTENTE E COMPROVADO. [...] 2 - A evicção é uma forma de garantia, um elemento natural dos contratos onerosos, que se apresenta onde haja obrigação de transferir o domínio, posse ou uso de uma determinada coisa. Como conseqüência, ao alienante cabe resguardar o adquirente dos riscos por ela produzidos, a não ser que estipulem expressamente em sentido contrário, ou seja, pela dispensa da garantia. Tal responsabilidade, independe da boa-fé ou não do vendedor, sendo, no silêncio das partes, subentendida. Inteligência do art. 1.107, do Código Civil de 1916. 2 - Outrossim, na esteira de precedentes desta Corte (cf. RESP nºs 19.391/SP e 129.427/MG) "para exercício do direito que da evicção resulta ao adquirente, não é exigível prévia sentença judicial, bastando que fique ele privado do bem por ato de autoridade administrativa". [...] - grifado.

No mesmo sentido, apresento os seguintes arestos:

Evicção. Caracterização. Bem de procedência criminosa apreendido por ato de autoridade administrativa. Reparação devida ao adquirente independentemente da existência de sentença judicial (STJ, RT, 758/177).

Evicção. Adquirente de boa-fé. Dever legal de colaborar. Veículo roubado. Devolução. O direito de demandar pela evicção não supõe, necessariamente, a perda da coisa por sentença judicial. Hipótese em que, tratando-se de veículo roubado, o adquirente de boa-fé não estava obrigado a resistir à autoridade policial; diante da evidência do ato criminoso, tinha o dever legal de colaborar com as autoridades, devolvendo o produto do crime (RSTJ, 130/233) - grifado.

Maria Helena Diniz, in Curso de Direito Civil Brasileiro – Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais, v. III, Editora Saraiva, 2003, assim como na doutrina mais tradicionalista, traz a sentença judicial como uma das condições necessárias para a configuração da responsabilidade pela evicção, mencionando que “o evicto deverá ser condenado a restituir a coisa, uma vez que a evicção só surge com a perda judicial do bem adquirido (RT, 449:197), pressupondo um pronunciamento do Poder Judiciário.”. Contudo, a autora, com brilhante maestria, também abordou em sua obra a corrente doutrinária e jurisprudencial que admite a evicção administrativa como forma de perda da propriedade, da posse ou do uso da coisa, afirmando ser a novel corrente aplicável a casos excepcionais.

A jurista apresenta um conjunto de hipóteses fáticas para as quais a jurisprudência vem admitindo a aplicação da evicção extrajudicial, isto é, independentemente de sentença judicial (2003, p. 129):

a) houver perda do domínio do bem pelo implemento de condição resolutiva; b) houver apreensão policial da coisa, em razão de furto ou roubo ocorrido anteriormente à sua aquisição (RT, 479:60, 517:68, 451:103, 496:57, 521:110, 517:68, AASP, 1973:83, RJE, 4:5); c) o adquirente ficar privado da coisa por ato inequívoco de qualquer autoridade (RT, 444:80; EJSTJ, 12:71, 13:72).

Ainda, DINIZ apresenta a situação do “abandono do bem alienado antes da sentença judicial, desde que o direito do terceiro litigante seja tão incontroverso que a continuidade da demanda se apresente inútil para o fim a que se destina, com uma descarga desnecessária de atos processuais e de recursos financeiros” (2003, p. 129).

No tocante à situação de apreensão de veículo em razão de ato de autoridade administrativa, aplicando-se efeitos de evicção extrajudicial, cito a ementa do acórdão exarado no julgamento do Recurso Especial n.º 19391 – SP, Relator: Ministro BARROS MONTEIRO, Data de Julgamento: 28/11/1994, T4 - QUARTA TURMA, no qual se entendeu que a responsabilidade pela evicção, nestes casos, independe de sentença judicial:

EVICÇÃO. APREENSÃO DE VEICULO POR ATO DE AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. DESNECESSIDADE DE SENTENÇA JUDICIAL. PARA O EXERCICIO DO DIREITO QUE DA EVICÇÃO RESULTA AO ADQUIRENTE, NÃO É EXIGIVEL PRÉVIA SENTENÇA JUDICIAL, BASTANDO QUE FIQUE ELE PRIVADO DO BEM POR ATO DE AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.

Importante referir que o acórdão acima referido foi exarado no ano de 1995, isto é, quando ainda vigoravam as regras do Código Civil de 1916, que se apresentava muito mais exigente na configuração da responsabilidade pela evicção, porquanto exigia, com fundamento no seu art. 1.117, I, a existência de uma sentença judicial reconhecendo a evicção, exigência esta que não restou transcrita para o Código Civil de 2002. Ou seja, se já àquela época se admitia, em certos casos, a aplicação da teoria da evicção extrajudicial, atualmente, com a supressão do dispositivo que condicionava a evicção à sentença judicial, o instituto está muito mais hábil a ser reconhecido definitivamente no campo jurídico.

Ainda, com grande objetividade, esclarece Deborah Maria Ayres  que a jurisprudência, como já dito, está admitindo, nos casos de roubo, furto, apreensão de bens por autoridade administrativa, entre outras hipóteses, a evicção independentemente de sentença judicial:

Outro ponto com relação à evicção diz respeito à forma da perda do bem pelo evicto que somente ocorrerá com a sentença transitada em julgado de deferimento da posse e domínio por terceiro, pois o risco da evicção somente não é suficiente de privar o alguém de sua posse, é necessária a judicial confirmação definitiva do pleito. Dessa forma, nas privações extrajudiciais, como no caso de roubo, furto, apreensão de bens por autoridade administrativa, esbulho ou força maior não ocorreria a evicção, porque seriam circunstâncias posteriores à aquisição do bem, mas, nestes mesmos casos, a jurisprudência já concedeu a evicção quando ocorrida antes da real aquisição – grifado.

É de se perceber que a teoria da evicção extrajudicial tem aplicabilidade para aqueles casos em que o direito do terceiro seja indiscutível, inequívoco, induvidoso, como ocorre nas situações apresentadas acima, corroboradas pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Com razão, indiscutível o direito de o legítimo proprietário reaver a coisa furtada ou roubada para si, em detrimento do adquirente de boa-fé, já que não pode ficar prejudicado pela subtração do bem e posterior venda a terceiro, razão pela qual se entende por legítima a aplicabilidade da evicção administrativa a estes casos.

No mais, importante mencionar que a responsabilidade pela evicção é objetiva, pois fundada na teoria do risco, uma vez que o alienante é responsável pela perda da coisa tão somente por ocasionar o risco da evicção no momento da alienação. Nessa esteira, é o entendimento do TJRS na Apelação Cível n.º 70043827146 RS , Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Data de Julgamento: 28/09/2011, Nona Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 30/09/2011. No mesmo sentido, menciona VENOSA (2012, p. 551) que “a responsabilidade pela evicção independe de culpa.”.

Por fim, após a exposição do avanço jurisprudencial e doutrinário na admissão da evicção administrativa, há de se referir que nem todos os atos de apreensão administrativa ou atos administrativos em geral garantem, por si só, a responsabilidade do alienante pelos riscos da evicção. Certa parte da doutrina menciona que não cabe a evicção administrativa nos casos de desapropriação, salvo nos casos em que a alienação ocorrer posteriormente ao decreto expropriatório do bem, isto é, quando já havia ato administrativo determinando a expropriação do bem em favor do Poder Público, caso em que se aplica a responsabilidade do alienante pelos riscos da evicção. Ciara Bertocco Zaqueo , tratando sobre o tema, refere que:

A doutrina não é uníssona, mas tem-se aceitado a chamada evicção administrativa. Segundo as lições de Arnold Wald, alguns autores afirmam que não cabe a responsabilidade pela evicção no caso de desapropriação ou de apreensão do bem pela autoridade administrativa [...] Se, todavia, o bem foi vendido como livre e desembaraçado, embora já houvesse decreto determinando a sua desapropriação, entende-se que se trata de um vício de direito pelo qual deve responder o alienante, mesmo se a desapropriação só se efetivou posteriormente à alienação - grifado.

Outrossim, VENOSA (2012, p. 551) também afirma haver responsabilidade do alienante pelos riscos da evicção nos casos de desapropriação quando já existente decreto expropriatório anteriormente à alienação, na medida em que refere que, “se o bem foi alienado como livre e desembaraçado, quando já havia decreto expropriatório, devemos ter como configurado o direito à evicção.”.

7. Conclusão.

Diante de tudo o que foi exposto, ainda que sejam extremamente respeitáveis os argumentos daqueles que entendem ser a responsabilidade pelos riscos da evicção uma garantia assegurada exclusivamente com pronunciamento favorável do Poder Judiciário, a doutrina majoritária e a hodierna jurisprudência vêm admitindo, de modo inequívoco, a evicção administrativa para aqueles casos em que o direito do terceiro evictor seja manifesto e indiscutível. Situações como apreensões policiais de veículos furtados ou roubados que sejam posteriormente alienados a terceiros são formas de combate à manifesta transgressão aos princípios informativos da teoria dos contratos, como a boa-fé e a probidade (art. 422, CC), levando em consideração o dever de proteção do patrimônio do evictor que, sucessivamente, restou prejudicado primeiramente pela ação criminosa do alienante e, posteriormente, pela alienação do bem a terceiro.

Considerando que, nestes casos, é manifesto o direito do evictor de reaver a coisa roubada ou furtada para si, filio-me à corrente que entende ser desnecessário o pronunciamento do Poder Judiciário em demanda intentada pelo evictor para assegurar a responsabilização do alienante pelos riscos da evicção, até mesmo porque, ante a indiscutibilidade do direito do prejudicado, não há motivo para obrigá-lo a recorrer ao Judiciário para obter um pronunciamento favorável de uma garantia que, com certeza, lhe é de direito.

Não se está a duvidar que a evicção administrativa seja um instrumento que, de modo brusco, ingressa e interfere na esfera patrimonial do adquirente de boa-fé. Contudo, em situações manifestas como a alienação posteriormente a furto ou roubo de veículo, não há razão suficiente para exigir do evictor a necessidade de pronunciamento favorável junto ao Poder Judiciário, pois, sendo indiscutível o seu direito, a apreensão policial do bem furtado ou roubado, como ato administrativo, já é instrumento idôneo para garantir a responsabilização do alienante pelos riscos da evicção, de acordo com a moderna jurisprudência já citada.

Atente-se para o fato de que não se está afirmando que a evicção extrajudicial deva ser a regra; somente em casos excepcionais, conforme afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, e considerando a indiscutibilidade do direito do evictor, é que se poderá, com prudência, assegurar a responsabilidade pela evicção desde já e sem necessidade de pronunciamento favorável do Poder Judiciário, sendo prudente que, nos demais casos, exija-se sentença judicial para determinar a perda da propriedade, da posse ou do uso da coisa pelo adquirente. Inobstante isso, a evicção administrativa, quando aplicada com inteligência e em casos excepcionais, é instrumento de grande valia para os interesses do prejudicado, porquanto facilita o retorno da coisa ao seu patrimônio, abstém o Poder Judiciário da necessidade de julgar mais uma das inúmeras demandas desnecessárias hoje existentes e garante efetividade e celeridade na solução de conflitos particulares.

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Elaborado em novembro/2012

 

Como citar o texto:

DOBLER, Gustavo.Evicção administrativa: instituto juridicamente admissível ou instrumento de transgressão à exigibilidade de sentença judicial?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1129. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/2928/eviccao-administrativa-instituto-juridicamente-admissivel-ou-instrumento-transgressao-exigibilidade-sentenca-judicial. Acesso em 27 dez. 2013.

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