A introdução de Medidas Provisórias (antigos decretos-lei) no ordenamento brasileiro foi fruto da inspiração no decreti-legge italiano. Sucede que essa “importação adaptada” de um instituto típico dos sistemas de governo parlamentaristas gerou no Brasil uma sensível discrepância no equilíbrio entre os “poderes” do Estado.

Na Itália, não sendo o decreti-legge convertido em lei pelo parlamento, recai sobre o governo (sobre o Primeiro-Ministro, mais especificamente) a responsabilidade política por sua rejeição, implicando, consequentemente, na sua queda. No Brasil, diversamente, não há qualquer responsabilização do Presidente na hipótese de não ser a Medida Provisória convertida em lei, razão pela qual se verifica uma compulsão do Executivo na sua edição. Pedro Lenza analisa questão com as seguintes palavras: “A experiência brasileira mostrou, porém, a triste alteração de um verdadeiro sentido de utilização das Medidas Provisórias, trazendo insegurança jurídica, verdadeira ditadura do executivo, governado por inescrupulosas penadas, em situações muitas das vezes pouco urgentes e nada relevantes” [1]. Justamente com o fito de conter essa excessiva edição de Medidas Provisórias, foi aprovado o projeto que deu origem à Emenda Constitucional n. 32/2001 [2]. Dentre as alterações introduzidas pela reforma, encontra-se o parágrafo sexto do art.62 da Constituição Federal, segundo o qual se a Medida Provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados da sua publicação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando. Questiona-se, então, se a paralisação de todo e qualquer projeto legislativo durante o regime de urgência revela-se compatível com o restante do sistema constitucional. Para responder tal indagação, há que se precisar a abrangência da expressão “deliberações legislativas” no contexto constitucional. A questão está sendo discutida perante o STF, no MS 27931, impetrado por parlamentares do Congresso Nacional, tendo por objeto prevenir que ocorram deliberações sobre projetos normativos enquanto houver Medidas Provisórias em regime de urgência. Isto porque, segundo o entendimento formalizado diante do plenário da Câmara dos Deputados pelo presidente da Casa, Michel Temer (então impetrado), o regime de urgência somente suspenderia as deliberações de normas que versassem sobre matérias aptas a serem veiculadas por Medidas Provisórias. Outrossim, nenhum reflexo haveria sobre a votação de projetos de emendas constitucionais, leis complementares, decretos legislativos, resoluções, ou até mesmo sobre leis ordinárias que versassem sobre matérias vedadas às Medidas Provisórias. Para tanto, Michel Temer sustenta argumentos tanto de ordem política quanto jurídica, com base nos quais o Ministro Celso de Mello indeferiu a liminar pleiteada no referido writ por ausência de plausibilidade jurídica da tese dos impetrantes. O argumento político lastreia-se, basicamente, na necessidade de se buscar uma solução interpretativa no texto constitucional capaz de evitar a paralisação das atividades do legislativo em razão do número exacerbado de Medidas Provisórias editadas pelo Executivo. Isto porque a velocidade com que são editas tais normas impossibilita que o legislativo as aprecie em tempo hábil a evitar o trancamento da pauta. O fundamento jurídico, por seu turno, analisa o princípio constitucional da separação funcional dos poderes, segundo o qual os poderes estão delimitados e especificados constitucionalmente, de modo que a função atípica destes deverá ser exercida de forma excepcional e dentro dos ditames constitucionais. Não se pode olvidar que a Constituição Federal de 1988 surgiu justamente como uma resposta a essa sobreposição do Poder Executivo em relação aos demais poderes. Isto porque, ao fixar a separação de poderes, ela pretendeu impedir que um deles prevalecesse sobre os demais. Portanto, uma interpretação sistemática do dispositivo em análise não pode desconsiderar o mencionado princípio, na medida em que este encerra um dos valores essenciais da Lei Maior, qual seja, o espírito democrático. Noutras palavras, adotar uma interpretação literal e entender que o regime de urgência impediria a deliberação sobre todas as espécies normativas implicaria num retrocesso às conquistas políticas consolidadas pela atual Constituição Federal. Há que se ter em mente, então, que a função legislativa é exercida pelo Executivo de forma atípica, devendo ocorrer de excepcionalmente, embora na prática não seja o que efetivamente se verifica. Destarte, por consistir numa exceção, tal competência há de ser interpretada restritivamente. No entender de Michel Temer, “em matéria legislativa, o Poder Executivo, por meio do Presidente da República, pode editar medidas provisórias com força de lei, na expressão constitucional. É uma exceção ao princípio segundo o qual ao Legislativo incumbe legislar. (...) Então, volto a dizer: toda vez que há uma exceção, esta interpretação não pode ser ampliativa. Ao contrário. A interpretação é restritiva. Toda e qualquer exceção retirante de uma parcela de poder de um dos órgãos de Governo, de um dos órgãos de poder, para outro órgão de Governo, só pode ser interpretada restritivamente” [3]. Conclui-se, então, que uma interpretação sistemática leva ao entendimento de que a expressão “deliberações legislativas” abarcaria somente as leis ordinárias que cuidassem de matérias passíveis de integrar o conteúdo de uma Medida Provisória, sobre pena de grave comprometimento às atividades primárias do Legislativo e uma incongruente e anti-democrática concentração de poder nas mãos do Executivo.

 [1] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, ver. atual. e ampl.. São Paulo: Saraiva: 2010, pg. 478.  [2] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008 (pp. 883/899). Material da 1ª aula da Disciplina Poderes do Estado: Poder Legislativo e Poder Executivo, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera-UNIDERP | REDE LFG, pg.3.  [3] Extraído do site http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2667594, acessado em 01/02/2010

Referências bibliográficas

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, ver. atual. e ampl.. São Paulo: Saraiva: 2010. MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008 (pp. 883/899). Material da 1ª aula da Disciplina Poderes do Estado: Poder Legislativo e Poder Executivo, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera-UNIDERP | REDE LFG. Site: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2667594, acessado em 01/02/2010

 

 

Elaborado em dezembro/2011

 

Como citar o texto:

FRANÇA, Marcela Moura..Medida Provisória no sistema de governo presidencialista e o desequilíbrio na repartição funcional dos poderes. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1130. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/2942/medida-provisoria-sistema-governo-presidencialista-desequilibrio-reparticao-funcional-poderes. Acesso em 30 dez. 2013.

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