INTRODUÇÃO

 

A presente monografia, ofertada à discussão do controverso tema pertinente à desconsideração da personalidade jurídica ou disregard doctrine, utilizada para superar a personalidade jurídica das sociedades empresárias, tem por escopo não exaurir as controvérsias sobre o assunto, muito menos explanar demasiadamente sobre o tema, mas sim demonstrar de uma forma prática e objetiva as referências expressas à teoria da desconsideração no ordenamento jurídico brasileiro. O tema somente é pertinente ao estudo da desconsideração no direito positivado brasileiro, ou seja, examinaremos nos seus pormenores a disregard doctrine inserta pelo legislador expressamente nas leis nacionais que a comportam. Não será objeto de estudo neste trabalho a desconsideração não expressamente prevista em lei, pois isto seria abandonar o objetivo proposto inicialmente.

Esta pesquisa traz seus estudos fundamentados em doutrinas e legislações nacionais e estrangeiras presentes no meio jurídico desde o início do século XIX nos Estados Unidos da América até os dias de hoje, iniciando o estudo pela matéria referente às pessoas jurídicas, após destaca as sociedades empresárias, a desconsideração da personalidade jurídica e por fim a desconsideração no direito positivo brasileiro.

O trabalho objetiva analisar os textos legais que expressam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, estudar-se-á a positivação da disregard doctrine no ordenamento jurídico nacional, mas sem deixar de examinar a teoria juntamente com as pessoas jurídicas e sociedades empresárias. No que à teoria se referem, serão examinados e colocados em evidência os acertos, as imperfeições, benefícios, impropriedades e outras informações julgadas necessárias das seguintes leis: 8.078/1990, 8.884/1994, 9.605/1998 e Lei n.º 10.406/2002, respectivamente mais conhecidas como Código de Defesa do Consumidor, Lei Antitruste, Lei de Crimes Ambientais e Código Civil brasileiro.

O tema proposto no título do trabalho tem a finalidade de investigar a desconsideração da personalidade jurídica, conforme já frisado, somente no que a ela dizem respeito às leis no parágrafo acima mencionadas. Desdobra-se este estudo em uma análise pormenorizada de cada artigo de lei que comporta a disregard doctrine onde são colocadas em evidência as imperfeições e os acertos destes dispositivos legais.

Trata o primeiro capítulo do instituto da pessoa jurídica, seu estudo é realizado desde a origem nos direitos romano, germânico e canônico, após passa-se à natureza jurídica, análise, divisão e requisitos legais para a existência destes entes criados pelo direito. Posteriormente analisa-se a capacidade das pessoas jurídicas, finalizando esta matéria com investigações sobre o princípio da autonomia patrimonial, extinção e responsabilidade civil destas pessoas.

O segundo capítulo aborda as sociedades empresárias, destinadas à atividade econômica em geral. Inicia-se seu estudo pela personalização, efeitos e dissolução de forma objetiva e prática. Em seguida cuida-se da classificação das mesmas segundo o direito vigente, terminando com uma análise sobre as sociedades irregulares e de fato.

A terceira parte cuida do tema referente à teoria da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, usada com o objetivo de coibir fraudes e abuso de direito através da personalidade jurídica, onde será visto que o princípio da autonomia patrimonial não é mais absoluto nestes tempos modernos. Primeiramente há um estudo histórico sobre a desconsideração com enfoque na doutrina original da disregard doctrine, sendo que após há uma investigação sobre a contribuição doutrinária e sua origem no direito brasileiro. Uma exposição da teoria é feita considerando-se a teoria maior e menor da desconsideração, terminando com um enfoque nos pressupostos necessários para se efetivar a aplicação deste instituto criado pelo direito.

O derradeiro capítulo, foco central desta monografia, aborda amplamente a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades empresárias no direito positivo brasileiro. Presente expressamente nas leis pátrias desde o início da década de 90, esta teoria revolucionou a maneira como os magistrados enfrentam os problemas relativos à fraude e ao abuso de direito nas questões societárias. Este capítulo final destina-se a analisar a disregard doctrine nos dispositivos legais elencados no Código de Defesa do Consumidor, Lei Antitruste, Lei de Crimes Ambientais e Código Civil, onde investiga as impropriedades e acertos destes diplomas legais. Começa o estudo com o exame do artigo 28 do CDC, avançando ao artigo 18 da Lei Antitruste, artigo 4º. da Lei de Crimes Ambientais e finalmente faz uma abordagem do artigo 50 do Código Civil brasileiro.

O método escolhido para a elaboração desta pesquisa é o indutivo e a técnica a pesquisa bibliográfica. Esta técnica foi escolhida em virtude da sua confiabilidade e qualidade que oferece ao pesquisador, o que dificultou um pouco o estudo em vista de que não há conhecimento de obras com enfoque a este tema específico.

1 AS PESSOAS JURÍDICAS

1.1 UMA BREVE INTRODUÇÃO E O CONCEITO DE PESSOA JURÍDICA

Importantíssimo é o estudo das pessoas jurídicas quando temos em mente o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, objeto de estudo do presente trabalho. Não há neste capítulo o propósito de discorrer profundamente sobre a personalidade jurídica, e sim fazer uma abordagem geral e ampla, mas não menos importante sobre esta matéria. Pois conhecendo corretamente de algumas considerações sobre as pessoas jurídicas, há de se ter uma melhor compreensão do trabalho em tela.

Rachel Sztasn, nos traz importante lição de Werner Flume, sobre a importância do estudo das pessoas jurídicas para se ter uma completa noção da teoria da desconsideração:

Diz Werner Flume na Encyclopädie der Rechtes-und Staatswissenchaft, quando trata das pessoas jurídicas, que o estudo da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades para alcançar seus membros é parte do estudo das pessoas jurídicas, o imenso fenômeno da pessoa jurídica, esta estupenda criação humana, segundo Salvatore Satta (SZTASN, 1999, p. 81, grifo do autor).

O homem, talvez almejando a felicidade, seu bem estar, a própria realização pessoal ou simplesmente com o intuito de amealhar riqueza, por muitas vezes se lança a fazer projetos que lhe garantam um futuro promissor, uma garantia de bem estar para si e para sua família.

Muitas vezes esses projetos ou negócios, frutos do seu trabalho, tomam grandes dimensões, difíceis de serem controlados de uma forma que não se apresente complexa, isto os tornam difíceis de serem administrados por uma única pessoa. Em razão destes motivos, o homem, através do direito, criou as pessoas jurídicas.

Estes entes intitulados pessoas jurídicas, são criados pela lei e constituídos pela união de pessoas que se esforçam para atingir algum objetivo em comum, mas a personalidade destas últimas não se confunde com a das primeiras, ou seja, são pessoas distintas cada uma com autonomia própria.

Quem melhor transmite a lição sobre este tema é Silvio Rodrigues:

A esses seres, que se distinguem das pessoas que os compõem, que atuam na vida jurídica ao lado dos indivíduos humanos e aos quais a lei atribui personalidade, ou seja, a prerrogativa de serem titulares do direito, dá-se o nome de pessoas jurídicas, ou pessoas morais (RODRIGUES, 2003, p.86, grifo do autor).

Pode-se concluir então, que as pessoas jurídicas são sujeitos de direitos e obrigações independentes de seus sócios, há uma distinção de personalidades, onde seus patrimônios não se confundem, há de se considerar que as Pessoas jurídicas, portanto, são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil (RODRIGUES, 2003, p. 86).

Marcus Cláudio Acquaviva traz outro bom exemplo, para ele Chama-se pessoa jurídica, coletiva ou moral o ente ideal, abstrato, racional, que, sem constituir uma realidade do mundo sensível, pertence ao mundo das instituições ou ideais destinados a perdurar no tempo. A pessoa jurídica pode ser formada por pessoas naturais [...] ou bens, no caso da fundação [...]. A pessoa tem existência que independe de cada um dos indivíduos que a integram, e seu objetivo é próprio, destacado da simples soma dos objetivos daqueles que dela participam (ACQUAVIVA, 1999, p. 531-532, grifo do autor).

1.2 A ORIGEM E A NATUREZA DA PESSOA JURÍDICA

Tudo o que a inteligência do ser humano concebe, todos os frutos e obras da sua intelectualidade tendem a evoluir, e não foi diferente com uma de suas maiores criações no ramo do direito, a pessoa jurídica.

O processo de evolução do que hoje se conhece por personalidade jurídica, passou do princípio da universalidade para o princípio da unidade. No primeiro, era considerado isoladamente o indivíduo que fazia parte de uma entidade, esta não possuía autonomia, ao passo que no segundo, a entidade já desfrutava de autonomia patrimonial.

Foram os direitos romano, germânico e canônico, os principais influentes da concepção que se tem hoje da personalidade jurídica, embora se desconhecesse inicialmente no direito romano, o conceito de pessoa jurídica.

1.2.1 As pessoas jurídicas para os romanos

Os romanos somente tinham um conceito de pessoa jurídica no direito pós-clássico, mas esta já existia antes disso, sua existência, para eles não era desconhecida. Demorou a ocorrer, a desvinculação das pessoas naturais das pessoas jurídicas, pois os romanos idealizavam que o conjunto de bens ou o patrimônio pertencente a várias pessoas, não chegava a formar uma corporação, ou entidade idealizada, abstrata, mas sim, este patrimônio pertencia aos membros que constituíam este conjunto de bens, onde cada um era titular de uma parcela destes.

Os romanos somente conseguem ter uma idéia de corporação a partir do momento em que "[...] se admite uma entidade abstrata, com direitos e obrigações ao lado da pessoa física. Já no Direito clássico, os romanos passam a encarar o Estado, em sua existência, como um ente abstrato, denominando os textos de populus romanus." (VENOSA, 2001, p. 201, grifo do autor)

Operou-se, então, um desenvolvimento teórico no sentido de distinguir-se a universitas dos singuli. O patrimônio passou a constituir propriedade da entidade, sem nenhuma relação de condomínio com os seus membros componentes. Definiram-se duas modalidades de pessoas jurídicas: as universitates personarum, representadas por agrupamentos de indivíduos, e as universitates bonorum,formadas pelos estabelecimentos, fundações, hospitais etc. Excluía-se a societas, negando-se-lhe personalidade, por ser ela encarada como um fenômeno puramente contratual, vínculo obrigacional entre os respectivos sócios, considerados os verdadeiros titulares dos direitos (SERPA LOPES, 1996, p. 358, grifo do autor).

Para os antigos romanos, havia duas categorias de pessoas jurídicas, embora estas denominações não fossem originariamente deles. Podemos citar as universitates personarum e rerum. As primeiras, denominadas também de corpus, ou universitas, possuiam uma personalidade e patrimônio próprios, distintos de seus integrantes. As universitates rerum eram fundações, formadas por bens, com fins determinados, embora os romanos de início desconhecessem o conceito de fundação, pois estas são "[...] os templos no direito clássico; no direito pós-clássico, são as igrejas, os conventos, os hospitais e os hospícios, além dos estabelecimentos de beneficência." (VENOSA, 2001, p. 202)

Merece destaque o posicionamento de Marçal Justen Filho, para ele Duvida-se se o conceito de pessoa jurídica foi encontrado no direito romano.13 Retomado na Idade Média, a partir do trabalho de Sinibaldo de Fleshi (depois papa Inocêncio IV),14 a construção dogmática atingiu contornos mais ou menos definidos, com a concepção de que a pessoa jurídica era persona ficta. Tal significativa, segundo a grande maioria da doutrina atual, entendimento totalmente diverso daquele posteriomente consagrado por Savigni. A ficção desse não é a ficção dos canonistas e glosadores. Para estes, a fictio significava criação da mente humana (ou a existência no mundo das idéias); já para os ficcionistas do século XIX, a fictio da pessoa jurídica estava na sua falsidade (JUSTEN FILHO, 1987, p.18, grifo do autor).

1.2.2 A contribuição do direito germânico e canônico

Posteriormente, de uma forma mais lenta, ocorreu entre os germânicos o desenvolvimento da teoria da personalidade jurídica, passando-se novamente da universalidade para a unidade.

O Direito canônico também houve por contribuir para a formação da personalidade jurídica, como explica Lopes:

Todos os institutos da Igreja foram reputados entes ideais, fundados por uma vontade superior. Assim, qualquer ofício eclesiástico, dotado de um patrimônio, é tratado como uma entidade autônoma, e a cada novos ofícios criados correspondem outras tantas entidades independentes. Desse conceito surge o de fundação também autônoma, como o pium corpus, o hospitalis e a sancta domus. A universitas passa a representar um corpus mysticum, um nomem iuris (SERPA LOPES, 1996, p. 359, grifo do autor).

1.2.3 Pessoas jurídicas, principais teorias acerca de sua natureza jurídica

Os doutrinadores, no que alude à pessoa jurídica, formularam diversas teorias a fim de determinarem sua natureza jurídica, neste trabalho são citadas as mais importantes, são elas: a teoria da ficção legal, teoria da pessoa jurídica como realidade objetiva, teoria da pessoa jurídica como realidade técnica e a teoria da instituição.

A teoria da ficção legal, afirma que é a lei, através de uma ficção, a criadora da personalidade jurídica, e que esta não tem existência real. A pessoa jurídica é uma ficção legal que visa atender os interesses das pessoas. Sustentada por Savigny, esta teoria teve maior relevância na segunda metade do século XIX.

No que se reporta à segunda teoria, esta sustenta que as pessoas jurídicas são entes reais, criados pela sociedade, com autonomia própria. A teoria provém do direito germânico e é sustentada por Gierke e Zitelmann.

A teoria da pessoa jurídica como realidade técnica, existe para suprir os interesses humanos de uma forma indireta.

O Estado, as associações, as sociedades existem; uma vez que existem não se pode concebê-los a não ser como titulares de direitos. A circunstância de serem titulares de direito demonstra que sua existência não é fictícia, mas real. Apenas, tal realidade é meramente técnica, pois, no substrato, visa à satisfação dos interesses humanos (RODRIGUES, 2003, p. 88).

Formulada por Hauriou, a teoria da instituição sustenta que "uma instituição preexiste ao momento em que uma pessoa jurídica nasce." (RODRIGUES, 2003, p. 88)

As pessoas jurídicas, para esta teoria, se dedicam a um determinado fim, o qual às vezes não pode ser conseguido pelo homem individualmente, há necessidade destes se unirem ordenadamente para obterem êxito no que pretendem.

1.2.4 A personalidade jurídica no Brasil

Até o início do século XX o direito brasileiro não reconhecia as pessoas jurídicas em seu ordenamento, nem mesmo o Código Comercial de 1850 às contemplava.

Foi somente o Decreto 1.102 de 21 de novembro de 1903, o qual instituí regras para o estabelecimento de empresas de armazéns gerais, determinando os direitos e obrigações dessas empresas, que introduziu no direito pátrio a expressão pessoa jurídica, concedendo esta personalidade às empresas de armazéns de que tratava.

Posteriormente, surgiu no ano de 1907, o Decreto 1.637, que reconhecia a personalidade jurídica dos sindicatos. O antigo Código Civil de 1916 tratava do assunto nos artigos 16 e 20. O atual Código de 2002 contempla a personalidade jurídica amplamente.

Quanto aos doutrinadores, foi Teixeira de Freitas, através do seu esboço de Código Civil, quem introduziu a teoria da personalidade jurídica, no direito brasileiro. Freitas "[...] apresentou a regulamentação das pessoas jurídicas, incluindo as sociedades na categoria de pessoas [...] (REQUIÃO, 1998, p. 347).

O artigo 17 do referido esboço prescrevia que as pessoas ou eram de existência visível, ou de existência ideal, que poderiam adquirir os direitos que eram regulados pelo então código, nos casos e pelo modo e forma que no mesmo se determinar.

Outros doutrinadores da época também se lançaram a estudar o tema, temos como exemplo J. X. Carvalho de Mendonça, o professor Porchat e Clóvis Beviláqua.

1.3 A DIVISÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS, DIREITO PÚBLICO E PRIVADO

De acordo com o critério utilizado pelo Código Civil brasileiro as pessoas jurídicas são divididas em duas grandes classes: pessoas jurídicas de direito público e pessoas jurídicas de direito privado. As de direito público ainda subdividem-se em pessoas jurídicas de direito público interno e pessoas jurídicas de direito público externo.

O artigo 40 do Código Civil nos traz as pessoas jurídicas de direito público interno, são estas: a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, Municípios, autarquias e outras entidades de caráter público criadas pela lei. No que se reporta às autarquias, temos como exemplo a OAB e o INMETRO, e quanto às entidades de caráter público criadas por lei, os partidos políticos são um exemplo clássico.

As pessoas jurídicas de direito público externo são de acordo com o artigo 42 do mesmo código: os Estados estrangeiros e as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público, exemplo destas últimas são organizações como a ONU e a Santa Sé. "A personalidade jurídica do estado, em direito das gentes, diz-se originária, enquanto derivada a das organizações." (REZECK, 1998, p. 155)

Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, estas vem elencadas no artigo 44 do Código Civil. São as associações, fundações e sociedades, pertencem à autonomia privada, objetivam fins e interesses comuns de particulares.

1.4 REQUISITOS LEGAIS PARA A EXISTÊNCIA DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

São as normas ou atos jurídicos que tornam as pessoas jurídicas existentes do ponto de vista legal, e permitem, que elas possam realizar todos os atos que não lhes sejam vedados pela lei. Assim, as pessoas jurídicas, em seu próprio nome, poderão abrir contas correntes, contrair empréstimos etc.

Parafraseando Serpa Lopes (1996, p. 373), Existem três sistemas que vigoram acerca das condições para a existência das pessoas jurídicas:

1.º) sistema da concessão, onde há necessidade de autorização estatal para a aquisição da personalidade jurídica;

2.º) sistema misto, onde haverá necessidade de concessão estatal somente para determinada classe de pessoas jurídicas, este é o sistema adotado pelo direito brasileiro;

3.º) sistema da plena liberdade de formação de associações.

De acordo com o artigo 45 do Código civil, as pessoas jurídicas somente existem legalmente quando da inscrição do seu ato constitutivo no respectivo registro. Ainda determina o mesmo artigo que, poderá, antes ainda, ser necessária a autorização ou do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

Desta feita, cabe ao estado a fiscalização das pessoas jurídicas de direito privado. As sociedades e associações, ao serem criadas, devem obedecer ao requisito do prévio registro formal, para o início da personalidade jurídica, para a publicidade de sua existência.

O ato de vontade das pessoas naturais na criação não é o bastante, no sistema, pois fica condicionado ao ato registral, que confere reconhecimento à nova pessoa jurídica (LOTUFO, 2003, p. 131).

O artigo 985 do nosso Código Civil, no que diz respeito à sociedade, normatiza que esta adquire personalidade jurídica com a inscrição dos seus atos constitutivos no registro próprio e na forma da lei, devendo-se ainda respeitar o que prescreve o artigo 1.150 do mesmo diploma legal.

É importante também ressaltar que o registro civil das pessoas jurídicas é disciplinado atualmente pelo Título III da lei de Registros Públicos, Lei n.º 6.015 de 31 dezembro de 1973.

Desta forma, são requisitos para se constituir uma pessoa jurídica, elementos jurídicos formais e materiais, além da licitude de seu objetivo ou fim.

Quanto aos requisitos formais, há necessidade da aquisição da capacidade jurídica na forma da lei, a qual será adiante estudada.

Quanto aos requisitos materiais, estes se fundam na vontade humana, onde se organizam bens ou pessoas com objetivo de criar uma entidade com personalidade distinta de seus sócios.

Por último temos o requisito da licitude, que se não for cumprido poderá ser causa da extinção ou dissolução da pessoa jurídica, conforme anuncia o Decreto-lei 9.085 de 1946.

1.5 CAPACIDADE E REPRESENTAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS

A capacidade apresentada pelas pessoas jurídicas advém da personalidade jurídica que a lei lhes confere. É portanto o ordenamento jurídico, que lhes outorga essa capacidade quando essas pessoas preenchem determinados requisitos.

A pessoa jurídica quando adquire capacidade

"[...] pode exercer todos os direitos subjetivos, com exceção dos próprios ao ente humano, como ser biológico, ou, por outras palavras, a pessoa jurídica tem capacidade para o exercício de todos os direitos compatíveis com a natureza especial de sua personalidade. [...] E quanto à capacidade, dentro dos limites próprios à sua natureza, ela é a mais ampla possível, não comportando quaisquer restrições (SERPA LOPES, 1996, p. 374).

O instante em que a pessoa jurídica registra o contrato constitutivo que lhe deu origem, na repartição competente, é o instante em que adquire a capacidade jurídica, adquire sua personalidade, o que a torna capaz de exercer os direitos que lhe são compatíveis.

O artigo 52 do Código Civil garante as pessoas jurídicas a proteção dos direitos relativos à personalidade, visto que não são admitidos a elas os direitos personalíssimos. Para exercê-los, entretanto, elas necessitam das pessoas físicas que as representam. Regra esta que vinha inserta no artigo 17 do Código Civil de 1916, e suprimida no atual.

Quanto à representação em juízo, esta é regulada pelo artigo 12 do Código de Processo Civil, o qual preceitua no seu caput que serão representadas em juízo, ativa e passivamente:

I- a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, por seus procuradores;

II- o Município, por seu prefeito ou procurador;

III- a massa falida, pelo síndico;

VI- as pessoas jurídicas, por quem os respectivos estatutos designarem, ou, não os designando, por seus diretores;

VII- as sociedades sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens;

VIII- a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil (art. 88, parágrafo único);

§ 2.º - As sociedades sem personalidade jurídica, quando demandadas, não poderão opor a irregularidade de sua constituição.

§ 3.º - O gerente da filial ou agência presume-se autorizado, pela pessoa jurídica estrangeira, a receber citação inicial para o processo de conhecimento, de execução, cautelar e especial.

Como sabemos, a pessoa jurídica tem existência distinta de seus integrantes ou membros, e os atos do representante, quando atuar dentro dos limites da lei e do ato constitutivo, ficam vinculados à pessoa jurídica onde o representante atua. "Ultrapassados tais poderes, exime-se a sociedade da responsabilidade, cabendo ao representante que exorbitou responder pelo excesso." (RODRIGUES, 2003, p. 94)

1.6 O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL

Adquirindo personalidade jurídica, adquire-se a autonomia patrimonial, que nada mais é do que a separação dos patrimônios dos sócios do das sociedades.

É uma proteção tanto para os sócios como para as sociedades, pois aqueles não respondem com seu patrimônio por dívidas destas, e estas resguardam seu patrimônio no caso de dívidas de um ou alguns dos sócios. O que não ocorre com as sociedades irregulares, as quais sem a devida personalidade jurídica, acabam por confundir seu patrimônio com o dos sócios, e estes, então respondem ilimitadamente pelas obrigações contraídas por aquelas.

Diferente também é a responsabilidade dos sócios das sociedades ilimitadas ou mistas. Nas primeiras, as sociedades em nome coletivo, todos os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais, enquanto nas últimas, sociedades em comandita simples ou por ações, somente alguns respondem de forma ilimitada.

As pessoas jurídicas, validamente constituídas, respondem somente com seu patrimônio pelos atos praticados por seus administradores, desde que estes atos sejam válidos aos olhos da lei.

É esta autonomia, a patrimonial, um dos impulsores da economia moderna, pois se não existisse esta separação de patrimônios, pessoas, empresários, industriais, comerciantes etc., não se lançariam aos riscos que a conjuntura econômica atual oferece nos dias de hoje, é um fenômeno praticamente no mundo todo, onde pouquíssimas pessoas arriscariam seu patrimônio pessoal em algum negócio que não oferecesse cem por cento de certeza de retorno.

O artigo 596 do Código de Processo Civil, também preceitua que os bens do sócio não respondem pelas dívidas da sociedade, exceto nos casos previstos em lei, ainda afirma que quando demandado, o sócio tem o direito que exigir que primeiro sejam exauridos os bens da sociedade.

Mas o princípio da autonomia patrimonial tem suas limitações, e nos dias atuais está perdendo um pouco de seu prestígio, como nos adverte Fábio Ulhoa Coelho:

Em suma, observa-se certa tendência do direito no sentido de restringir ao campo das relações especificamente comercias os efeitos plenos das personalizações das sociedades empresárias. [...] O princípio da autonomia patrimonial tem sua aplicação limitada, atualmente, às obrigações da sociedade perante outros empresários. Se o credor é empregado, consumidor ou o estado, o princípio não tem sido prestigiado pela lei ou pelo juiz (COELHO, 2002, p.19-20).

Deste modo, quando os credores da sociedade não são outros comerciantes, empresários, bancos etc., o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica poderá restar abalado, dando ensejo à desconsideração da personalidade jurídica, objeto de estudo deste trabalho, que será analisada adiante nos seus pormenores.

1.7 EXTINÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS

De diferentes formas se extinguem as pessoas jurídicas de direito público e privado. As primeiras terminam da mesma maneira como foram criadas, "Logo, extinguem-se pela ocorrência de fatos históricos, por norma constitucional, lei especial ou tratados internacionais." (DINIZ, 1997, p.162)

Quantos às pessoas jurídicas de direito privado, com finalidade lucrativa, quando da sua dissolução, seus bens são repartidos entre os sócios na proporção de suas participações.

Silvio Rodrigues aponta que:

O Decreto-lei n. 9.085/46 trata da proibição de se registrarem pessoas jurídicas e de sua dissolução, se já registradas, quando têm por objeto fins ilícitos ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral ou aos bons costumes (RODRIGUES, 2003, p. 98).

No que se reporta ao destino dos bens da pessoa jurídica, quando esta não tiver finalidade lucrativa, deve seguir o que rege seu estatuto, mas no caso de haver omissão "[...] deve-se examinar se os sócios adotaram alguma deliberação eficaz sobre a matéria. Se eles nada resolveram, ou se a deliberação for ineficaz, devolver-se-á o patrimônio a um estabelecimento público congênere ou de fins semelhantes." (RODRIGUES, 2003, p. 88)

Entretanto, deve-se seguir a regra do artigo 61, parágrafo 2º., do Código Civil, quando não for possível encontrar estabelecimentos nas condições de que trata o mesmo artigo, neste caso, os bens os bens da pessoa jurídica passarão a integrar o patrimônio da Fazenda pública.

1.8 RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS JURÍDICAS

Diferentes são os tratamentos das responsabilidades civis extracontratuais que envolvem as pessoas jurídicas de direito público e privado. Não trataremos da responsabilidade civil das primeiras neste trabalho, pois somente nos interessa, para o melhor estudo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado.

Na esfera civil a pessoa jurídica de direito privado é responsável, contratual e extracontratualmente. O artigo 389 do Código Civil nos traz a hipótese da responsabilidade contratual, no caso de a pessoa jurídica se tornar inadimplente.

A questão da responsabilidade extracontratual é mais complexa e merece maior análise.

A responsabilidade decorrente de atos ilícitos praticados pelos representantes das pessoas jurídicas, quando esses causassem danos a outrem, antes de entrar em vigor o Código Civil de 2002, era vista pela jurisprudência de maneira diversa do que expressavam os artigos 1.521, 1.522 e 1.523 do antigo código.

Da combinação da leitura dos referidos artigos pode-se concluir que o ônus da prova, no caso de uma lide que tinha por objeto a reparação de um dano causado pelo ato do representante da pessoa jurídica, recaía sobre quem alegava o dano. Este deveria provar que a pessoa jurídica concorreu com culpa ou negligência para a ocorrência do evento danoso.

Porém, a jurisprudência da época dava interpretação diferente ao artigo 1.523 e se orientou por transferir o ônus da prova à pessoa jurídica, deveria esta então demonstrar que não concorrera com culpa ou negligência.

"Com efeito, essa jurisprudência, em vez de reconhecer a obrigação da vítima de demonstrar a culpa do patrão, do amo, do comitente etc., criava uma presunção de culpa, de onde decorre que seriam aquelas pessoas que deveriam provar sua não-culpa." (RODRIGUES, 2003, p. 95, grifo do autor)

Hoje, não mais prospera a presunção de culpa dos representantes da pessoa jurídica, pois o Código Civil em vigor não contém regra semelhante à do artigo 1.522 do Código de 1916. "[...] a responsabilidade das pessoas jurídicas por ato de seus administradores, quer se trate de sociedades, quer de associações, só emerge se o autor da ação demonstrar a culpa da pessoa jurídica, quer in vigilando, quer in eligendo." (RODRIGUES, 2003, p. 96, grifo do autor)

A responsabilidade da pessoa jurídica decorrente de dano ambiental não é objeto de estudo neste trabalho, no que diz respeito à pessoa jurídica, será estudada desconsideração de sua personalidade na Lei de Crimes Ambientais no item 4.4 do capítulo 4.

2 AS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

Tratou-se o capítulo anterior, de matéria referente às pessoas jurídicas em geral, agora neste, em breves palavras tratar-se-á de questões referentes à personalização, responsabilidade dos sócios, dissolução e classificação das sociedades empresárias. Também serão abordadas as sociedades irregulares e de fato.

As pessoas jurídicas, no âmbito do direito privado, podem se constituir de três maneiras diferentes: sociedades, fundações e associações, para este estudo, interessa somente a primeira classe, visto que serão principalmente sobre essas pessoas, que excepcionalmente se estenderão os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica.

Quanto às espécies de sociedades existentes no ordenamento jurídico brasileiro, existem duas: as sociedades empresárias e as sociedades simples.

A sociedade simples, "[...] explora atividades econômicas específicas (prestação de serviços de advocacia, por exemplo) e a sua disciplina jurídica se aplica subsidiariamente à das sociedades empresárias e às cooperativas." (COELHO, 2002, p.13)

Quanto às sociedades empresárias, estas se destinam a atividades econômicas em geral, ou seja, quando diversas pessoas se unem para realizar atividades que envolvam o aspecto econômico, visando lucro, a busca da riqueza, ter-se-á uma breve noção do conceito de sociedade empresária.

A sociedade empresária nasce da união de dois fatores: o primeiro é a condição desta ser uma pessoa jurídica, o segundo está ligado à atividade empresarial, ou seja, deve exercer uma atividade ligada ao empreendimento empresarial.

Alerta Fábio Ulhoa Coelho (2003, p. 109) que somente algumas espécies de pessoas jurídicas exploradoras de atividades definidas pelo direito como de natureza empresarial podem ser conceituadas como sociedades empresárias. Existem ainda pessoas jurídicas que são sempre empresárias, qualquer que seja o seu objeto, como as sociedades anônimas e em comanditas por ações.

"[...] a sociedade empresária pode ser considerada como a pessoa jurídica de direito privado não-estatal, que explora empresarialmente seu objeto social ou a forma de sociedade por ações." (COELHO, 2003, p.111)

Empresário não é o sócio ou integrante da empresa, mas sim esta última, pois é ela quem desenvolve a atividade econômica, os primeiros são melhor denominados de empreendedores, ou investidores.

2.1 A PERSONALIZAÇÃO DAS SOCIEDADES E SEUS EFEITOS

2.1.1 O início da personalização das sociedades empresárias

Os requisitos para a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado, já foram abordados no item 1.4 do primeiro capítulo deste trabalho. Cabe agora aqui tratar do início da personalização da sociedade empresária.

Suzy Koury, tratando da personalização da empresa explica que

[...] apesar de a personalidade jurídica não lhe dar vida, pois já a possui, tem personalidade moral, é através dela que ficará assegurada a continuidade e a coesão dessa célula social fundamental, além do que, ao reconhecê-la, o direito adequar-se-á a uma ordem de idéias mais racional, mais verdadeira, indo ao encontro da realidade social (KOURY, 2002, p.56).

O registro na Junta Comercial de seus atos constitutivos é o marco inicial da aquisição da personalidade jurídica pela sociedade empresária, pois este ato torna pública a sociedade e permite a qualquer interessado retirar informações sobre determinada pessoa jurídica.

Fábio Ulhoa Coelho explica que:

Mas, deve-se registrar uma certa impropriedade conceitual e lógica nessa sistemática. A rigor, desde o momento em que os sócios passam a atuar em conjunto, na exploração da atividade econômica, isto é, desde o contrato, ainda que verbal, de formação de sociedade, já se pode considerar existente a pessoa jurídica.

Em outros termos, a melhor sistemática de disciplina da matéria não é a legal, que identifica no registro o ato responsável pela personalização da sociedade empresária, mas a compreensão de que o encontro de vontade dos sócios já é suficiente para dar origem a uma nova pessoa, no sentido técnico de sujeito de direito personalizado (COELHO, 2002, p. 16, grifo do autor).

Disto conclui-se que quando duas ou mais pessoas se unem com ânimo de atuarem juntas, e praticam atos caracterizem os praticados por uma empresa, este simples encontro de esforços já é suficiente para caracterizar a existência da pessoa jurídica.

Embora não tendo os integrantes dessa sociedade formalizado o contrato social ou estatuto, e por conseqüência serem impedidos de registrar a sociedade empresária no órgão competente para tal, ela pode ser considerada existente. Mas, enquanto não regularizada a situação, o regime jurídicos destas sociedades irregulares, será o da sociedade em comum, onde os sócios são titulares em comum dos bens e das dívidas da sociedade, isto é, todos respondem solidaria e ilimitadamente por obrigações contraídas pela mesma, e esta ainda responde com seus bens por atos praticados por seus sócios, excluindo-se o que dispõe o artigo 990 do Código Civil.

2.1.2 O fim da personalização das sociedades empresárias

É um procedimento dissolutório que acaba com a personalização das sociedades empresárias, matéria tratada no item 2.1.5 deste capítulo, mas desde já deve ficar claro que a simples paralisação da empresa não caracteriza o fim de sua personalização, ou sua dissolução.

2.1.3 A responsabilidade dos sócios

Será feito aqui um breve comentário a respeito da responsabilidade dos sócios, visto que esta matéria também é tratada no item 2.2.3 deste trabalho.

A responsabilidade dos sócios poderá ser ilimitada e direta, ou ilimitada e subsidiária dependendo do caso.

No primeiro, poder-se-á fazer com que a execução recaia diretamente sobre o patrimônio do sócio, independentemente de ter ou não bens a sociedade, no segundo caso, deverão ser primeiro executados os bens da sociedade, e somente após, os do sócio.

Na prática temos que "[...] se a sociedade empresária irregular é pessoa jurídica, a responsabilidade dos sócios será ilimitada e subsidiária; se despersonalizada, ao contrário, será ilimitada e direta. " (COELHO, 2002, p. 17, grifo do autor)

Fábio Coelho, em seu Curso de direito comercial (2002, p. 17), sustenta a idéia de que em razão do direito vigente, a personalização ocorre no momento em que é feito o registro do ato constitutivo na Junta Comercial. E para haver coerência, o sistema legal deveria dar sustentação à responsabilidade ilimitada e direta. Ocorre que a lei trata de forma diferente os sócios da sociedade empresária enquanto não for regularizado o registro, quando atribui responsabilidade subsidiária à generalidade dos sócios, e direta somente ao que se apresentar como seu representante. E na sociedade regularmente registrada, a responsabilidade do sócio será sempre subsidiária, mesmo que esta seja ilimitada. Isto é, excluindo a do sócio representante de sociedade irregular, em todas as demais, a regra é a da subsidiariedade.

2.1.4 Os efeitos da personalização

Da personalização das sociedades empresárias decorre a separação do seu patrimônio do patrimônio do sócio integrante, aquelas adquirem obrigações e direitos próprios, e seus sócios limitam sua responsabilidade pelas obrigações sociais contraídas pela sociedade.

Coelho, ainda em seu Curso de Direito Comercial (2002, p. 7), ensina que há direitos, como o do Reino Unido, que associam a personalização da sociedade à limitação da responsabilidade dos sócios. Para tais sistemas, as sociedades onde os sócios respondem integralmente pelas obrigações sociais são despersonalizadas.

Diferente ocorre no Brasil, onde podem existir sociedades personalizadas que seus sócios respondem de forma ilimitada pelas obrigações sociais, ou uns respondem ilimitadamente e outros limitadamente.

Após adquirida a personalidade jurídica, com as separação das pessoas dos sócios da pessoa da sociedade, adquire esta última a autonomia patrimonial, princípio consagrado do direito societário e já estudado no item 1.6 do primeiro capítulo.

É este princípio, o norte teoria da personalização das sociedades empresárias, graças a ele as pessoas se lançam a fazer empreendimentos, por muitas vezes arriscados, os quais sem a segurança da autonomia patrimonial, diante do insucesso da atividade empresarial, poderiam levar o sócio-empreendedor, à ruína, diante da possibilidade de perda dos bens particulares arrecadados durante anos, ou mesmo uma vida inteira de trabalho.

Personalizada então a sociedade, separados o patrimônio dos sócios do patrimônio da sociedade, por conseqüência temos a autonomia patrimonial. E desta personalização ocorrerão alguns efeitos, os quais segundo Fábio Ulhoa Coelho (2002, p.14) são: a titularidade obrigacional, a titularidade processual e a responsabilidade patrimonial.

Quanto à titularidade obrigacional, decorrente da personalização da sociedade, esta última assume por completo direitos e obrigações decorrentes da exploração da atividade que exerce, afastando as pessoas dos sócios das relações com terceiros, quer sejam estas judiciais ou extrajudiciais.

Em outros termos, é a pessoa jurídica que celebra contratos comerciais, como por exemplo a compra e venda de máquinas para realizar sua atividade econômica, a contratação de funcionários, aluga imóveis para sede, etc. Os sócios encontram-se fora deste pólo de obrigações e direitos contraídos pela sociedade, mas administram-na através de atos praticados por pessoas naturais que são, como os do sócio-gerente.

Somente em "situações excepcionais, tratadas em normas específicas [...] estendem-se os efeitos da mesma relação à esfera subjetiva de quem agiu pela sociedade empresária." (COELHO, 2002, p. 15) Clássico exemplo disto é a responsabilização do gerente de sociedade limitada, por obrigações tributárias da sociedade, a qual sob seu comando deveria ter corretamente cumprido com suas obrigações fiscais.

Quanto ao segundo efeito, o da titularidade processual, "a personalização da sociedade empresária importa a definição da sua legitimidade para demandar e ser demandada em juízo." (COELHO, 2002, p.14) Será então a pessoa jurídica, a própria sociedade, a detentora de legitimidade ativa e passiva, para eventualmente propor ou responder às ações de diversas naturezas perante o judiciário.

Os sócios, no caso de ser proposta ação qualquer em face da sociedade, não terão legitimidade passiva ad causam para contestar a ação, como também não terão legitimidade ativa para demandar pela sociedade.

O derradeiro efeito, decorrente da personalização, é a responsabilidade patrimonial. Assim, somente os bens sociais respondem por obrigações contraídas pela sociedade, isto é, os bens que constituem e integram o patrimônio social, estes bens são a garantia dos credores por eventuais dívidas contraídas pela sociedade, pois como já vimos, o patrimônio do sócio não se confunde com o patrimônio desta última.

A questão da responsabilidade patrimonial, é bem explicada por Fábio Ulhoa Coelho:

Os bens integrantes do estabelecimento empresarial, e outros eventualmente atribuídos à pessoa jurídica, são de propriedade dela, e não dos seus membros. Não existe comunhão ou condomínio dos sócios relativamente aos bens sociais; sobre estes os componentes da sociedade empresária não exercem nenhum direito, de propriedade ou de outra natureza. É apenas a pessoa jurídica da sociedade a proprietária de tais bens. No patrimônio dos sócios encontra-se a participação societária, representada pelas quotas da sociedade limitada ou pelas ações da sociedade anônima. A participação societária, no entanto, não se confunde com o conjunto de bens titularizados pela sociedade, nem como uma sua parcela ideal. Trata-se, definitivamente, de patrimônios distintos, inconfundíveis e incomunicáveis os dos sócios e o da sociedade (COELHO, 2002, p. 15).

2.1.5 A dissolução das sociedades empresárias

Serão brevemente aqui tratadas as formas de dissolução das sociedades empresárias, não entrando na seara da causas determinantes dessas dissoluções, nem da liquidação e apuração de haveres, pois estes são assuntos complexos e extensos, e um breve relato sobre o tema constante neste subtítulo será suficiente para a compreensão exata deste trabalho.

A dissolução das sociedades poderá ocorrer de duas formas: judicial ou extrajudicial, o modo dependerá de como ocorrer o ato dissolutório.

Ocorre a dissolução judicial, quando o judiciário, em sentença proferida por juiz competente, em ação específica, determina que sejam dissolvidos os vínculos contratuais. Mas, "Se a dissolução operou-se por deliberação dos sócios registrada em ata, distrato (na extensão total) ou alteração contratual (na extensão parcial, será a hipótese de dissolução extrajudicial [...]" (COELHO, 2003, p. 167).

Ainda a dissolução poderá ser total ou parcial, a primeira implica na extinção por completo da sociedade, com a extinção de todos os vínculos contratuais, e a segunda ocorre com a dissolução de somente parte destes vínculos, permitindo que a sociedade continue a existir.

"Portanto, de acordo com a abrangência, tem-se dissolução total ou parcial. No Código Civil de 2002 a dissolução parcial é chamada de resolução da sociedade em relação a um sócio (arts. 1.028 a 1.032, 1.085 e 1.086)." (COELHO, 2003, p. 167, grifo do autor)

Temos ainda, após a dissolução, total ou parcial, a liquidação e a apuração de haveres. "À dissolução total seguem-se a liquidação e a partilha, enquanto à dissolução segue-se a apuração de haveres e o reembolso. Entre uma e outra forma de dissolução não há, nem pode haver, qualquer diferença de conteúdo econômico." (COELHO, 2003, p.173)

2.2 CLASSIFICAÇÃO DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

O Direito brasileiro contempla cinco espécies de sociedades empresárias. Merecem maior destaque as duas primeiras, pois a importância que estas exercem se deve a sua influência na economia brasileira, diretamente proporcional ao número de cada uma existente. As três restantes, não constituem um número expressivo, nem tem um impacto relevante sobre a economia.

As sociedades empresárias admitidas pelo ordenamento jurídico nacional são as seguintes:

1) Sociedade por Quotas de Responsabilidade Limitada;

2) Sociedade Anônima;

3) Sociedade em nome Coletivo;

4) Sociedade em Comandita Ações;

5) Sociedade em Comandita Simples.

Não se admite outras formas de constituição de sociedades empresárias, senão estas, mas, existe ainda a Sociedade em conta de Participação, que não é considerada propriamente uma sociedade em função de suas peculiaridades.

"Com efeito, [a Sociedade em Conta de Participação] trata-se de uma conjugação de esforços despersonalizada, e, portanto, sujeita a regras muito específicas, que impossibilitam considerá-la no tratamento geral do tema." (COELHO, 2002, p. 23)

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, também foi abolida do direito pátrio a Sociedade de Capital e Indústria.

Neste trabalho, não será tratada de cada uma das sociedades em seus pormenores, visto que não são elas em si o objeto de estudo, e sim a desconsideração de suas personalidades jurídicas.

Fábio Ulhoa Coelho, em seu Curso de Direito Comercial (2002), propõe três critérios de classificação das sociedades empresárias: 1) Sociedades de Pessoa ou de Capital; 2) Sociedades Contratuais e Institucionais e quanto à 3) Responsabilidade dos Sócios.

2.2.1 O primeiro critério: sociedades de pessoas ou de capital

Coelho (2002, p. 23), afirma que o primeiro critério de classificação (Sociedades de Pessoa ou de Capital), é o que leva em conta o grau de dependência da sociedade em relação às qualidades subjetivas dos sócios (classificação que repercute nas condições para a alienação da participação societária, penhorabilidade desta e conseqüências da morte de sócio), e que segundo este critério pode-se ter uma sociedade de pessoas ou de capitais.

Podem ser, de acordo com o que dispuser o contrato social, sociedades de pessoas ou de capital, as seguintes: A sociedade limitada, sociedade em nome coletivo e a sociedade em comandita simples.

Serão sempre constituídas na forma de sociedades de capital, as sociedades em comandita por ações e as sociedades anônimas.

Disto pode-se concluir que em determinadas sociedades empresárias é muito relevante a característica individual do sócio, suas qualidades subjetivas influem de maneira determinante no modo de atuação da sociedade, enquanto noutras, as características individuais do sócio não são relevantes, como por exemplo, em uma sociedade anônima.

Então, esse critério é determinante no que diz respeito à cessão da participação societária, pois,

[...] nas sociedades em que prepondera o fator subjetivo, a cessão a cessão da participação societária depende da anuência dos demais sócios. Como os atributos individuais do adquirente dessa participação podem interferir na realização do objeto social, é justo e racional que o seu ingresso na sociedade fique condicionado à aceitação dos outros sócios, cujos interesses podem ser afetados. Já em relação às sociedades de capital, a regra é a inversa, ou seja, o sócio pode alienar sua participação societária a quem quer que seja, independentemente da anuência dos demais, porque as características pessoais do adquirente não atrapalham, não têm como atrapalhar o desenvolvimento do negócio social (COELHO, 2002, p. 24, grifo nosso).

Existe ainda a questão da penhorabilidade das quotas de participação, questão de extrema importância, pois é diferente a situação nas sociedades de pessoas e nas de capital.

As quotas são impenhoráveis por dívida particular do sócio nas sociedades de pessoas, o que não ocorre no caso das sociedades de capital. Quanto ao primeiro caso a medida se justifica, pois caso fossem penhoradas as quotas de determinado sócio, após arrematadas, ocorreria uma mudança de titularidade onde o arrematante tomaria o lugar do sócio devedor, o que poderia ser prejudicial à sociedade.

Relevante também é a situação onde ocorre a morte do sócio. Nas sociedades de pessoas, quando morre um sócio, os remanescentes, se não concordarem, podem impedir o ingresso na sociedade, do sucessor ou sucessores do de cujus, através da dissolução parcial da sociedade.

Já não acontece o mesmo nas sociedades de capital, pois os sócios remanescentes não podem se opor ao ingresso do sucessor ou sucessores proprietários das quotas sociais, através da causa mortis.

Coelho define bem as sociedades de pessoas e as de capital, para ele

As sociedades de pessoas são aquelas em que a realização do objeto social depende mais dos atributos individuais dos sócios que da contribuição material que eles dão. As de capital são as sociedades em que essa contribuição material é mais importante que as características subjetivas dos sócios. A natureza da sociedade importa diferenças no tocante à alienação da participação societária (quotas ou ações), à sua penhorabilidade por dívida particular do sócio e à questão da sucessão por morte (COELHO, 2002, p. 24, grifo do autor).

2.2.2 O segundo critério: sociedades institucionais e contratuais

Podem ainda ser, de acordo com o segundo critério de classificação, serem as sociedades classificadas em Institucionais ou Contratuais.

As primeiras, as institucionais, podem se revestir na forma de sociedade anônima ou em comandita por ações. Nestas sociedades, o vínculo estabelecido entre os sócios não tem natureza contratual, elas se constituem através da emissão de um ato de manifestação de vontade por parte dos seus integrantes, o estatuto, que disciplinará suas relações sociais.

As sociedades contratuais podem tomar a forma de sociedade limitada, sociedade em nome coletivo ou sociedade em comandita simples. Estas sociedades são constituídas através de um contrato, denominado contrato social, elaborado entre os integrantes, os quais entre si, a partir daí, passam a ter tem um vínculo contratual.

A sociedade empresária é contratual se constituída por um contrato entre os sócios; e é institucional se constituída por um ato de vontade não contratual. A diferença diz respeito à aplicação, ou não, do regime do direito contratual às relações entre os sócios (COELHO, 2002, p. 27).

2.2.3 O terceiro critério: a responsabilidade dos sócios

As sociedades empresárias, sempre respondem ilimitadamente pelas obrigações que assumirem. Não se deve confundir, então, a responsabilidade das sociedades, com a responsabilidade dos sócios, como freqüentemente ocorre.

A responsabilidade dos sócios será limitada, ilimitada ou mista, em relação às sociedades, dependendo do caso, como será a seguir estudado.

O princípio da autonomia patrimonial impede, em regra, que se responsabilize o sócio por eventuais dívidas da sociedade, somente em casos excepcionais, e mesmo após ser totalmente exaurido o patrimônio da sociedade, poderá se cogitar em atingir o patrimônio do sócio para satisfazer as obrigações contraídas pela sociedade.

Portanto, deve-se ter em mente, que esta responsabilidade dos sócios em relação às sociedades "[...] é uma responsabilidade subsidiária, isto é, uma responsabilidade perante terceiros, pelos compromissos sociais, caso o patrimônio da sociedade seja insuficiente para satisfazer os compromissos assumidos por esta." (MARTINS, 1998, p. 220, grifo do autor)

O artigo 1.024 do Código Civil preceitua que os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade antes de serem executados os bens sociais, e o artigo 596 do Código de Processo Civil também nos traz regra clara neste sentido, quando também preceitua que tais bens do sócio, somente respondem por dívidas da sociedade nos casos previstos em lei.

Coelho (2003, p. 116) afirma que quando a lei classifica de solidária a responsabilidade dos membros da sociedade em nome coletivo, dos comanditados na comandita simples, dos diretores da comandita por ações e dos sócios da limitada em relação à integralização do capital social, a lei se refere às relações entre eles, o que quer dizer que se um sócio descumpre sua obrigação, esta pode ser exigida dos demais, se forem solidários.

Ainda continua o mesmo autor, explanando que

O direito brasileiro da atualidade não conhece nenhuma hipótese de limitação de responsabilidade pessoal. Assim, quando a sociedade estiver respondendo por obrigação sua, terá responsabilidade ilimitada; também o sócio, quando responder por ato seu, ainda que relacionado com a vida social, terá responsabilidade ilimitada. Somente se concebe, no presente estágio evolutivo do direito nacional, a limitação da responsabilidade subsidiária. Os sócios respondem, assim, pelas obrigações sociais, sempre de modo subsidiário, mas limitada ou ilimitadamente (COELHO, 2003, p. 117, grifo nosso).

Portanto, no que tange a responsabilidade dos sócios, como foi supramencionado, as sociedades classificam-se em ilimitada, limitada e mista.

Existe sociedade, onde após esgotado seu patrimônio, os credores poderão buscar, para satisfazer o restante de seu crédito, os bens particulares dos sócios de forma ilimitada. Esta é classificada como sociedade ilimitada, ou seja, os patrimônios de todos os sócios respondem de forma ilimitada pelas obrigações contraídas pela sociedade, o único exemplo desta sociedade no direito brasileiro é a sociedade em nome coletivo.

Quantos às sociedades classificadas como limitadas, nestas os sócios respondem pelas obrigações contraídas pela mesma de uma forma limitada ao total da quantia restante à integralização do capital social, observa-se que se totalmente integralizado pela parte do sócio seu capital social, sua responsabilidade é nenhuma, mas eventualmente poderá ele responder pela parte não integralizada pelo outro sócio, este é o caso das sociedades limitadas ou Ltda.

O mesmo não vale para as sociedades anônimas ou S/A, onde os acionistas somente respondem pelo que subscreveram e ainda não integralizaram, não tendo estes nenhuma responsabilidade pelo que o outro acionista susbcreveu e não integralizou. Estas são portanto as duas sociedades classificadas como limitadas: a Ltda e a S/A.

As sociedades classificadas como mistas são duas: a sociedade em comandita simples e a sociedade em comandita por ações, nelas a responsabilidade é limitada para uns sócios, e ilimitada para outros.

2.3 A SOCIEDADE IRREGULAR E A SOCIEDADE DE FATO

Rubens Requião (2003, p. 380) explica que a sociedade adquire personalidade jurídica por concessão da lei. E que isto se dá nos termos dos artigos 44 e 45 do Código Civil, este último dispõe sobre o começo da existência legal das pessoas jurídicas.

Muitas vezes ocorre confusão sobre o que seriam as sociedades de fato e as sociedades irregulares. Resumidamente podem ser consideradas sociedades irregulares ou de fato, aquelas que não tem seu registro arquivado no órgão competente, ou seja, o estatuto ou contrato social, este órgão seria a Junta Comercial. Mas convém aqui fazer uma distinção entre as sociedades irregulares e as de fato.

Fran Martins ensina que

No entanto, assinalam os autores que sociedades de fato são aquelas que existem eivadas de nulidades, apresentando-se ao público como se fossem sociedades sem, entretanto, possuírem as formalidades dessas. Irregulares são as sociedades que se constituem dentro das prescrições legais mas que deixam de cumprir as obrigações impostas por lei, embora conservem a personalidade. As sociedades de fato não possuem personalidade jurídica, apesar de autores as confundirem com irregulares [...] (MARTINS, 2001, p. 144, grifo do autor).

Importante é ressaltar que as sociedades empresárias que atuam sem o seu devido registro na Junta Comercial não estão sujeitas às regalias concedidas pela falência ou concordata, isto é, elas não podem fazer jus a este dois benefícios concedidos pela lei.

Ainda, a questão de maior relevância é o fato dessas sociedades ensejarem aos seus sócios responsabilidade ilimitada pelas obrigações por elas contraídas, a teor do artigo 990 do Código Civil.

Para os sócios representantes esta responsabilidade será direta, para os demais, subsidiária. Os livros comerciais dessas sociedades também não possuem eficácia probatória.

3 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1 O SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO

Inicialmente há de se ter, para melhor compreensão do trabalho em tela, uma breve noção do significado da expressão "desconsideração da personalidade jurídica" à luz do direito pátrio e da nossa língua portuguesa.

A palavra desconsideração, quando inserida no contexto da expressão título deste capítulo, significa tornar sem efeito, ignorar, anular, ou seja, não reconhecer a personalidade jurídica de determinada sociedade.

A personalidade jurídica, já estudada no presente trabalho, pode-se dizer que é uma ficção criada pela lei, para distinguir, separar ou ocultar os sócios da sociedade de que fazem parte. Esta última adquire uma autonomia em relação aos seus sócios, passando ela própria a ser sujeito de direitos e obrigações, distinguindo-se de seus sócios, estes então denominados de pessoas físicas.

Desconsideração da personalidade jurídica significa, então, não mais separar as pessoas do sócio e sociedade, tornando os primeiros também suscetíveis de responder pelas obrigações contraídas pela sociedade da qual fazem parte.

Nos Estados Unidos e Inglaterra esta teoria é denominada Disregard of Legal Entity, Piercing the Corporate Veil, Lifting the Coporate Veil ou simplesmente Disregard Doctrine, na Itália Superamento della Personalità Giuridica, Abus de la Noction de Personnalité Sociale para os franceses, Durchgriff der Juristischen Personen na Alemanha e Teoria de la Penetración de la personalidad ou Desestimación de la Personalidad Societaria para os argentinos.

3.2 O SURGIMENTO E A HISTÓRIA DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.2.1 A Disregard Doctrine

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou disregard doctrine, utilizada como um instrumento para coibir fraudes ou abuso de direito, obteve seu inicial desenvolvimento através da jurisprudência nos Estados Unidos da América, no começo do século XIX.

Assim, "[...] a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não foi produzida pela ciência do direito, mas a partir da jurisprudência (ou seja, da atividade judiciária de aplicação do direito ao caso concreto)." (JUSTEN FILHO, 1987, p. 54, grifo nosso)

O marco jurisprudencial inicial foi mais precisamente o ano de 1809, quando uma decisão do juiz norte-americano Marshall, no caso Bank of United States x Deveaux, acabou por estender aos sócios os efeitos da personalidade da entidade da qual faziam parte.

Antonio Bottan, Carlos Roslindo e Gislaine Mohr em excelente artigo publicado no periódico de jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, citando Suzy Elisabeth Cavalcante Koury, prelecionam o seguinte:

Conforme os estudos de Koury², em 1809, nos EUA, já se discutia a Disregard Doctrine, No caso Bank of united States v. Deveaux, o Juiz Marshall conheceu da causa, com a intenção de preservar a jurisdição das Cortes Federais sobre as Corporations, já que a Constituição Federal Americana, no seu artigo 3º, seção 2ª, limita tal jurisdição às controvérsias entre cidadãos de diferentes estados. A decisão, em si, não foi relevante, visto que foi repudiada pela doutrina da época, mas, já em 1809, as Cortes levantaram o véu personal e consideraram as características dos sócios individuais (BOTTAN; ROSLINDO; MOHR, 2000, n. 89, p. 26).

Este foi portanto o leading case, ou seja, o primórdio do que se conhece hoje por disregard doctrine.

Alguns autores sequer mencionam em suas obras o caso supramencionado, talvez pela pouca relevância que o mesmo obteve, ou por este ter sido de certo modo encoberto ou esquecido em virtude de casos mais famosos que surgiriam posteriormente, notadamente na Inglaterra, o que será demonstrado a seguir.

Mas a verdade é, ao que tudo indica, este é o caso de desconsideração da personalidade jurídica mais antigo já registrado pela doutrina, e também, que o início de toda sua formulação aconteceu em decisões proferidas por juízes norte-emericanos.

Também adotam este posicionamento alguns doutrinadores brasileiros e vários outros estrangeiros, interessante é o posicionamento do argentino Guillermo Cabanello de Las Cuevas, onde confirma a origem jurisprudêncial da teoria no direito norte-americano:

A doutrina da desestimação da personalidade societária [esta é uma das formas como é chamada a teoria da desconsideração no direito argentino] tem uma origem fundamentalmente jurisprudencial, praticamente em todos os países onde esta doutrina tem uma aplicação efetiva. Esta formação jurisprudencial necessariamente implica o ditado de regras aplicáveis em casos determinados, dos quais é preciso extrair um conjunto orgânico de normas de origem jurisprudencial aplicáveis nesta matéria. [...] Também desde o ponto de vista histórico, e em virtude da deficiente sistematização da doutrina da desestimação da personalidade societária, é certo que esta doutrina teve sua origem e desenvolvimento nos Estados Unidos, de onde foi tomada por outros sistemas jurídicos (LAS CUEVAS, 1994, p. 70-71, trad. nossa).

De acordo com o demonstrado até agora, conclui-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica evoluiu, num primeiro momento, a partir de decisões jurisprudênciais norte-americanas que de certa forma "contaminaram" outros países, e a partir daí, aconteceu o desenvolvimento doutrinário da teoria, na Alemanha, Itália e Inglaterra.

Outra disputa judicial, famoso exemplo da Disregard Doctrine nos Estados Unidos, ocorreu no ano de 1892, envolvendo a Standard Oil Co., fundada por John Davison Rockefeller em 1870. A Standard Oil, pouco tempo depois de fundada, tornava-se monopolista e controlava 90% a 95% da produção refinada de petróleo nos estados Unidos.

Waldirio Bulgarelli, traz este caso em sua obra Concentração de empresas e direito antitruste, ele afirma que o truste

[...] foi utilizado no fim do século XIX, a serviço da concentração de empresas, por John D. Rockefeller (embora se atribua sua autoria ao advogado S. E. Dodd, em 1881), que reuniu todas as participações da Standard Oil Co. Of Ohio, cerca de 600, transferindo-as a trustees, empregados da empresa. Não se tendo obtido ainda assim uma suficiente descentralização admi.

 

Como citar o texto:

REALI, Ronaldo Roberto..A desconsideração da personalidade jurídica no Direito Positivo Brasileiro (Disregard of legal entity). Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 1, nº 88. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/316/a-desconsideracao-personalidade-juridica-direito-positivo-brasileiro-disregard-of-legal-entity-. Acesso em 1 ago. 2004.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.