RESUMO:

Em um primeiro comento, quadra ponderar que a deserdação consiste na privação, decorrente de disposição contida em cédula testamentária, da legítima do herdeiro necessário. Consoante apregoa Gama, deserdar é o ato por meio do qual o autor da sucessão exclui da herança herdeiro tido como necessário. Trata-se de instituto peculiar da sucessão testamentária, sendo possível, por óbvio, sua ocorrência tão somente em ato de disposição de última vontade. A deserdação encerra situação extraordinária à regra que determina a reserva de bens para os herdeiros necessários. Desta feita, em razão das consequências oriundas da decretação da deserdação, o legislador adotou precauções concernentes à limitação das causas, indicação dos motivos determinantes e comprovação judicial posterior da ocorrência do motivo que desencadeou a deserdação. Nesta trilha, a simples declaração de vontade do autor da herança não basta para torná-la eficaz. É negado, inclusive, a presunção das alegações apresentadas para a deserdação, sendo admitido tão apenas quando devidamente comprovado o motivo determinante que materializa a verdadeira ingratidão do deserdado.

Palavras-chave: Deserdação. Sucessão Testamentária. Efeitos.

Sumário: 1 Abordagem Conceitual Instituto da Deserdação; 2 Pressupostos da Deserdação; 3 Comprovação da Disposição Testamentária; 4 Hipóteses de Deserdação; 5 Efeitos da Deserdação

1 Abordagem Conceitual Instituto da Deserdação

Em um primeiro comento, quadra ponderar que a deserdação consiste na privação, decorrente de disposição contida em cédula testamentária, da legítima do herdeiro necessário. Consoante apregoa Gama, deserdar é o ato por meio do qual o autor da sucessão exclui da herança herdeiro tido como necessário[1]. Trata-se de instituto peculiar da sucessão testamentária, sendo possível, por óbvio, sua ocorrência tão somente em ato de disposição de última vontade. Cuida assinalar que não há deserdação quando o testador deixa de contemplar herdeiros que não são necessários ou mesmo dispõe que a metade disponível será dada em favor dos herdeiros que não estes. Tal exclusão simples é denominada de erepção.

A deserdação encerra situação extraordinária à regra que determina a reserva de bens para os herdeiros necessários. Como bem anota Orlando Gomes, “dado o seu caráter excepcional, a faculdade de deserdar sujeita-se a restrições impostas para prevenir que seu exercício traduza propósitos condenáveis e veicule injustiças sob a aparente cobertura de indignação moral[2].  Em mesmo sentido assinala Maria Helena Diniz, “a deserdação constitui exceção à regra geral que assegura ao herdeiro necessário a reserva legitimaria, que corresponde à metade da herança do de cujus, uma vez que da outra metade pode o testador dispor como bem lhe aprouver[3].

Desta feita, em razão das consequências oriundas da decretação da deserdação, o legislador adotou precauções concernentes à limitação das causas, indicação dos motivos determinantes e comprovação judicial posterior da ocorrência do motivo que desencadeou a deserdação. Nesta trilha, a simples declaração de vontade do autor da herança não basta para torná-la eficaz. É negada, inclusive, a presunção das alegações apresentadas para a deserdação, sendo admitido tão apenas quando devidamente comprovado o motivo determinante que materializa a verdadeira ingratidão do deserdado.

2 Pressupostos da Deserdação

O vocábulo deserdar tem seu sentido atrelado à concepção de privar alguém do direito de participar da sucessão de outrem. “Esse direito se exerce unicamente contra os descendentes, ascendentes e o cônjuge do autor da herança quanto à sua legítima[4]. Anote-se, oportunamente, que se o auctor successionis não possui herdeiros legitimários, poderá, de maneira livre, dispor de seus bens, não sendo carecido declarar a motivação de não ter contemplado aqueles que seriam chamados à sucessão se porventura falecesse intestado. Nesta trilha, a privação de uma mera expectativa não é confundida com a deserdação. Logo, salta aos olhos, consoante disposição contida no artigo 1.845 do Código de Processo Civil[5], que o primeiro pressuposto da deserdação é a presença de herdeiros necessários.

Ao lado do exposto, cuida salientar que a deserdação só é passível de declaração em testamento válido com expressa menção ao fato determinante que ensejou a exclusão, ocorrido antes do óbito do autor da sucessão. “A deserdação só pode ser declarada em testamento, com expressa referência à causa[6]. Consoante é ressaltado por Maria Helena Diniz em seu magistério, “o testador só pode deserdar seus herdeiros necessários por meio do testamento, ante a solenidade com que se reveste esse ato. Se nulo for o testamento, igualmente nula será a deserdação[7]. Acrescenta, ainda, Gomes que “se o testamento for nulo, revogado ou caduco, não subsiste a determinação do testador, ou, por outras palavras, cai a deserdação[8].

Outro pressuposto a ser destacado concerne à fundamentação em causa expressamente contida na lei, eis que nula será a cláusula testamentária por meio da qual o autor da herança deserda descendente, ascendente ou cônjuge sem que declare o motivo determinante ou mesmo invocando motivo que não encontra abrigo na legislação de regência da confecção da cédula testamentária. Deste modo, se o testador, ao realizar a confecção do ato de disposição de última vontade, laborar em vício intrínseco e não correspondendo a causa invocada, exatamente, a alguma das mencionadas no Estatuto de 2002, especificamente em seus artigos 1.814, 1.962 e 1.963, será inoperante a deserdação e o testamento será nulo quanto à porção legítima.

Desta sorte, o ordenamento pátrio retira do arbítrio do testador a decisão quanto aos casos de deserdação, em razão da gravidade desse ato, não sendo admitida interpretação extensiva nem a utilização de analogia. Ao lado do expendido, “a deserdação como medida extrema não admite analogias ou ampliação das possibilidades[9].

3 Comprovação da Disposição Testamentária

Insta anotar que a eficácia da disposição testamentária de deserdação encontra-se subordinada à comprovação da veracidade da causa sustentada pelo auctor successionis. A declaração simples se revela insuficiente, porquanto poderia decorrer da animosidade ao herdeiro necessário, sem constituir causa verdadeira de exclusão. Assim, exige o Código Civil que, após a abertura da sucessão, seja apurado, em Juízo, se o herdeiro deserdado praticou os atos apontados como o motivo da deserdação.

A prova da veracidade da causa declinada pelo testador produz-se por meio do aforamento de ação ordinária pelo herdeiro interessado na apuração ou pela pessoa a quem a deserdação aproveita. Ao primeiro, a demonstração do motivo ensejador da deserdação tem arrimo na demonstração da falsidade da increpação, não apenas pelo interesse econômico, mas também por questões morais. Ao segundo, por seu turno, é patente que se beneficiará com a exclusão, já que substituirá o deserdado. É válido salientar que o testamenteiro é carecedor de legitimidade para ajuizar mencionada ação, caso a deserdação não lhe aproveitar[10].

A ação a ser intentada pelo deserdado possui natureza cominatória, sendo direcionada ao interessado para que prove a veracidade da causa da deserdação. “A esse interessado é que incumbe o ônus da prova, não ao autor. Quando proposta contra o deserdado, cabe-lhe impugná-la, para obrigar o autor à comprovação[11]. Conforme burila o parágrafo único do artigo 1.965 do Estatuto Civil[12], o direito de provar a causa de deserdação extingue-se em quatro anos, cujo lapso temporal passa a ser contado com a abertura da cédula testamentária, em quaisquer das hipóteses, devendo-se, pois, considerar esse marco a decisão que determinou o cumprimento do ato de última vontade, já que tanto o testamento público e o particular não são abertos.

Prima evidenciar que, em havendo êxito durante a instrução processual e sendo comprovada, por meio de acervo probatório rígido, a causa de deserdação, a sentença privará o herdeiro da quota-parte a que faz jus. Em não sendo comprovada a veracidade da causa desencadeadora da deserdação, a disposição testamentária que a prescrevera é tida como ineficaz. “Se não se conseguir provar a causa da deserdação, ficará sem efeito a instituição de herdeiro e todas as disposições que prejudicarem a reserva legitimaria do deserdado[13], como bem afiança Diniz. Desta feita, a falsidade da causa alegada ou mesmo a ausência de comprovação de sua veracidade autorizará o herdeiro a receber o que tem direito. “Ausente prova da causa autorizadora da deserdação, improcede o pedido de exclusão de herdeiros, mesmo que haja manifesta animosidade entre ascendente e descendentes[14]. Colhe-se, ainda, o entendimento paradigmático do Ministro Massami Uyeda, ao relatoriar o Recurso Especial Nº. 1.185.122/RJ, no sentido, expresso, que:

Ementa: Recurso especial. Ação de deserdação. Mero ajuizamento de ação de interdição e instauração do incidente de remoção da herança, ambos em desfavor do testador sucedido. "injúria grave". Não ocorrência. Expedientes que se encontram sob o pálio do exercício regular do direito de ação. Denunciação caluniosa. Exigência de que a acusação se dê em juízo criminal. Ausência de comprovação de que as afirmações do herdeiro tenham dado início a qualquer procedimento investigatório ou mesmo ação penal ou de improbidade administrativa contra o seu genitor. Inviabilidade, in casu, de se aplicar a penalidade civil. Recurso improvido. [...] 2. Para fins de fixação de tese jurídica, deve-se compreender que o mero exercício do direito de ação mediante o ajuizamento de ação de interdição do testador, bem como a instauração do incidente tendente a removê-lo (testador sucedido) do cargo de inventariante, não é, por si, fato hábil a induzir a pena deserdação do herdeiro nos moldes do artigo 1744, II, do Código Civil e 1916 ("injúria grave"), o que poderia, ocorrer, ao menos em tese, se restasse devidamente caracterizado o abuso de tal direito, circunstância não verificada na espécie. 3. Realçando-se o viés punitivo da deserdação, entende-se que a melhor interpretação jurídica acerca da questão consiste em compreender que o artigo 1595, II, do Código Civil 1916 não se contenta com a acusação caluniosa em juízo qualquer, senão em juízo criminal. 4. Ausente a comprovação de que as manifestações do herdeiro recorrido tenham ensejado "investigação policial, processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa" (artigo 339 do Código Penal) em desfavor do testador, a improcedência da ação de deserdação é medida que se impõe. 5. Recurso especial improvido. (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp 1.185.122/RJ/ Relator: Ministro Massami Uyeda/ Julgado em 17.02/2011/ Publicado no DJe em 02.03.2011) (sublinhou-se)

Ademais, “o simples processo de justificação é inidôneo à comprovação do fundamento da deserdação[15]. Frisar se faz necessário que durante o lapso temporal em que a veracidade da causa determinante da deserdação reclamar para ser (in)comprovada, a posse da herança ficará sob a guarda do inventariante. Nesta senda, ainda, cuida sublinhar que não tem cabimento não tem que se atribua ao deserdado ou ao herdeiro instituído, pois aquele foi excluído e este ainda não tem direito à herança.

4 Hipóteses de Deserdação

4.1 Hipóteses Contidas no Artigo 1.814 do Código Civil

Ao instituto da deserdação, são aplicáveis as hipóteses contidas, taxativamente no artigo 1.814 do Código Civil, atinentes ao instituto da indignidade, consistentes em: atentados contra a vida, a honra e a liberdade do auctor successionis ou de membros de sua família. As hipóteses ora mencionada não são aplicadas tanto na deserdação do ascendente quando do descendente, desde que restem devidamente demonstradas. “Como se trata de uma pena civil, a exclusão por indignidade só pode ocorrer nos casos expressamente mencionados em lei, não comportando interpretação extensiva ou aplicação analógica ante o princípio nulla poena sine lege”[16]. Aliás, o entendimento jurisprudencial é assente no sentido que “as hipóteses legais de indignidade são taxativas e não comportam ampliação ou interpretação extensiva[17]. Anotar se faz carecido que as hipóteses contidas no dispositivo legal mencionado acima são taxativas e, por representarem restrição de direito, não comportam ampliação ou interpretação extensiva.

A primeira hipótese faz menção àqueles que houverem sido autores ou cúmplices em crimes de homicídio doloso ou voluntário, ou em sua tentativa, contra o autor da sucessão, seu companheiro, cônjuge, ascendente ou descendente, consoante redação capitulada no inciso I do artigo 1.814 do Estatuto Civilista[18]. Ao lado disso, conforme as lições apresentadas por Maria Helena Diniz, “não se estende, no caso, ao homicídio culposo por imprudência, imperícia ou negligência, como ainda não tem cabimento no error in persona; na aberratio ictus”[19] tal como nos casos de: legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de um direito, loucura ou embriaguez. Em aludidas situações o ato lesivo não é voluntário que enseje o afastamento do agente da sucessão, eis que o dolo se apresenta como elementar na determinação da causa de exclusão em análise. Desta feita, não é possível cogitar que qualquer hipótese em que a perda da vida derivou de uma ausência de animus necandi acarrete a exclusão.

Igualmente, a tentativa de homicídio viabiliza a exclusão do herdeiro faltoso da sucessão, porquanto na ótica adotada no arcabouço normativo regente a incriminação apresenta os mesmos baldrames dos crimes consumados. Destaque-se que a prova de deserdação pode ser produzida na esfera cível; contudo, sobrevindo a absolvição do acusado, em decorrência do reconhecimento de uma das causas de excludente da criminalidade, restará obstado o questionamento do fato em âmbito cível, nos termos contidos no artigo 935 do Código Civil[20], já que a sentença criminal tem o condão de produzir efeito da coisa julgada em relação aos efeitos civis. “Para afastar herdeiro ou legatário em caso de homicídio voluntário ou de sua tentativa, imprescindível será a prova do fato; mera suspeita não é o bastante[21].

A segunda hipótese está entalhada no inciso II do artigo 1.814 do Código de 2002[22], que prevê a aplicação da sanção de deserdação àqueles que acusarem o auctor successionis caluniosamente em juízo ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro. Como bem pontua Orlando Gomes, “a denunciação caluniosa, assim declarada em juízo criminal, considera-se fato determinante da indignidade. Refere-se o Código Civil à acusação ao de cujus, seu cônjuge ou companheiro, embora exija que tenha sido feita em juízo[23]. Acrescenta, ainda, Maria Helena Diniz, com bastante pertinência, que “será indigno [e deserdado em razão da aplicação do artigo 1.814 no tema em comento] tanto quem fizer denunciação caluniosa no juízo criminal como em inquérito civil ou em investigação administrativa[24].

Em mesmo caminho, Tartuce e Simão sustentam que “também pode ser excluído da sucessão aquele que incorrer em crime contra a honra do autor da herança ou de seu cônjuge ou companheiro[25]. Desta feita, será considerada causa de deserdação o fato de o sucessor cometer qualquer das condutas típicas capituladas nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, a saber: calúnia, difamação e injúria, respectivamente. Com bastante pertinência, Orlando Gomes[26] assinala que a expressão crimes contra a sua honra, contida no inciso II do artigo 1.814 do Estatuto Civil, compreende, também, as condutas atentatórias à memória do morto.

Por derradeiro, o artigo 1.814, inciso III, da Lei Substantiva Civil, anota que aqueles “que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade[27]. Salta aos olhos que a hipótese vertida no dispositivo legal ora mencionado apresenta como escopo primordial salvaguardar a liberdade de disposição do autor da sucessão, punindo o herdeiro que, de maneira fraudulenta, dolosa ou coativamente, praticar condutas, omissões, corrupção, alterações, falsificação, inutilização, ocultação, atentando contra essa liberdade ou mesmo instituindo empecilhos à execução do ato de última vontade.

4.2 Hipóteses Especiais

Além das hipóteses já explicitadas, a deserdação do descendente pelo ascendente funda-se no artigo 1.962, incisos I ao IV, do Código Civil[28]. A primeira hipótese consiste em ofensas físicas, leves ou graves, eis que demonstram que absoluta falta de afeto por parte do herdeiro, respeito ou mesmo gratidão para com seu ascendente, não sendo justo, em razão disso, que se lhe suceda, autorizando-se, deste modo, a deserdação. “Não importa a gravidade, nem é necessária a condenação penal. Necessário, porém, que se configurem como delito, ainda que não positivado no juízo criminal[29], como bem destaca Orlando Gomes. Com efeito, trata-se de conduta dotada de reprovabilidade tanto em relação ao descendente como ao ascendente, motivo por que autoriza a deserdação de um ou do outro.

Outra hipótese é a injúria grave que atinja seriamente a honra, a respeitabilidade, a dignidade do testador e não de pessoas de sua família ou de seu consorte. “A qualidade ofensiva da palavra falada ou escrita depende da opinião, dos hábitos e crenças sociais, variando conforme as circunstâncias[30], deixando-se ao critério do magistrado decidir se constitui ou não injúria grave, intolerável e propositada, que justifique a deserdação do ofensor. Doutro modo, são consideradas excluídas da acepção de injúria grave o pedido de interdição do testador, formulado pelo herdeiro; uso regular de ação em que o requerente venha a exceder-se, magoando o testador, ao articular fatos qualificativos do pedido; a circunstância de o herdeiro ter-se insurgido contra doação efetuada pelo testador, aforando ação contra ele; se o herdeiro ofensor for pessoa idosa, cega ou portadora de alienação mental; e, se sobrevier pedido do herdeiro requerendo a destituição do testador do cargo de inventariante. Com o escopo de robustecer as ponderações apresentadas, cuida transcrever o entendimento jurisprudencial que se coaduna com os argumentos aventados:

Ementa: Ação Ordinária de Deserdação. Tendo a falecida exarado em testamento a firme disposição de deserdar a filha e as netas, por ofensa moral, injúria e desamparo na velhice e, havendo comprovação destes fatos, há que ser mantida a ultima vontade da testadora. Apelação desprovida. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Oitava Câmara Cível/ AC N.º 70002568863/  Relator: Desembargador José Ataídes Siqueira Trindade/ Julgado em 31.05.2001) (destacou-se).

Alude, ainda, o artigo 1.962 do Código Civil às relações ilícitas com a madrasta ou o padrasto, eis que se apresentam como incestuosas ou adúlteras, porquanto existe um parentesco por afinidade, em linha reta, entre padrasto e enteada, e entre madrasta e enteado, o qual não se extingue com a dissolução do casamento que lhe deu gênese, subsistindo impedimento matrimonial entre essas pessoas. “As relações ilícitas a que se refere o Código configuram incesto e adultério, estendo-as o legislador aos companheiros constituindo sua prática uma grave injúria no sentido particular da expressão[31].

O desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade materializa hipótese de deserdação, “por revelar, por parte do herdeiro, desafeição pelo autor da herança, egoísmo, falta de sentimentos de solidariedade humana, autorizando, por essas razões, sua deserdação[32]. Há entendimentos jurisprudenciais que não autoriza a deserdação o fato de o descendente ter internado o ascendente como indigente em hospital, em razão da gravidade de sua situação de saúde, quando o descendente não disponibiliza de condições financeiras de custear o tratamento do testador.

Terá assentada a deserdação do ascendente pelo descendente se ocorrerem, além dos motivos justificadores elencados no artigo 1.814 do Código Civil, as hipóteses entalhadas no artigo 1.963 do Estatuto de 2002[33], a saber: ofensas físicas, injúria grave, relações ilícitas com a esposa ou companheira do filho ou do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou neta, e desamparo do descente (filho ou neto) em estado de deficiência mental ou grave enfermidade. Infere-se que o legislador tão somente repetiu no dispositivo legal mencionado as hipóteses contidas no artigo 1.962, fazendo, obviamente, as adaptações da deserdação do ascendente pelo descendente.

5 Efeitos da Deserdação

Os efeitos produzidos pela deserdação são de órbita pessoal, eis que é considerada como sanção, não podendo, por consequência, alcançar os descendentes do herdeiro culpado, em razão da parêmia nullum paris delictum innocenti filio poena est. Com efeito, justificativa não subsiste para recaia sobre os filhos a punição referente aos pais. Cuida anotar que tal entendimento não é pacificado, eis que “não contendo a lei no capítulo da deserdação disposição que atribua aos descendentes do herdeiro excluído o direito de sucessão como se ele morto fosse, não podem recolher a herança do deserdado”[34]. São aplicadas, por analogia, as regras instituídas no caso de exclusão por indignidade. No mais, a utilização de tal recurso tem pleno cabimento, eis que os dois títulos se aproximam e objetivam o mesmo fito, embora os processos de exclusão sejam distintos.

Dentre os efeitos decorrentes da deserdação, pode-se ponderar que o deserdado adquire o domínio e a posse dos bens da herança com a abertura da sucessão. Entretanto, com a publicação do testamento, surge uma condição resolutiva da propriedade. Com efeito, caso seja provada a causa de sua deserdação, será ele excluído da sucessão, retroagindo os efeitos da sentença até a data da abertura da sucessão. “Ou seja, o deserdado é considerado como se fosse morto, portanto, como se nunca tivesse tido o domínio daqueles bens do acervo hereditário do autor da herança[35].

Nesta toada, também, cuida assinalar que, em decorrência do aspecto personalíssimo da pena de deserdação, os descendentes do deserdado sucedem como se ele fosse falecido, promovendo-se a sua substituição, não sendo estendidos, aos descendentes do deserdado, os efeitos do instituto em comento. Ao lado disso, realce-se que, em razão do princípio geral que obsta a punição do inocente, a sanção alcança tão somente ao culpado, destacando, por conseguinte, ideia do caráter personalíssimo das cominações advindas da deserdação. Consoante as lições pertinentes de Gomes, “procedente a deserdação, os descendentes do deserdado sucedem por direito de representação, como se ele fosse morto [...] Se deserdado for um ascendentes, recolherá a herança, na parte indisponível, o outro, visto que não há representação nessa linha de parentesco[36].

É imprescindível, ainda, a preservação da integridade do acervo hereditário com o escopo de entregá-lo ao deserdado, caso logre êxito ao vencer a ação ajuizada pelo herdeiro beneficiado com sua deserdação ou mesmo para destiná-lo ao herdeiro instituído ou aos demais favorecidos com a exclusão do deserdado, se este for vencido. Cogente se faz, deste modo, a nomeação de um depositário judicial, o qual custodiará a herança até que sobrevenha o trânsito em julgado da sentença exarada nos autos supramencionados, trazendo uma situação definitiva no apostilado.

Caso não seja provada a causa da deserdação, ela não subsistirá, contudo o testamento produzirá todos os efeitos naquilo que não contrariar a legítima do herdeiro necessário, sendo reduzidos os quinhões dos herdeiros legítimos, instituídos e legatários, caso tal medida se faça necessária, com o escopo de inteirar a quota-parte legítima do herdeiro que foi, de maneira ineficaz, deserdado. No mais, vale anotar que a reconciliação entre o autor da herança e o deserdado não tem o condão de produzir a ineficácia da deserdação, caso o testado não lance mão da revogação testamentária, já que essa sanção é imposta em cédula testamentária.

Referências:

BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões, vol. 06. 24 Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

GAMA, Ricardo Rodrigues. Dicionário Básico Jurídico. Campinas: Editora Russel, 2006.

GOMES, Orlando. Sucessões. 15 Ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2012.

RIO DE JANEIRO (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em 11 nov. 2012.

RIO GRANDE DO SUL (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: . Acesso em 11 nov. 2012.

TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito das Sucessões, vol. 06. 3 Ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Método, 2010.

  

[1] GAMA, Ricardo Rodrigues. Dicionário Básico Jurídico. Campinas: Russel, 2006, p. 135.

[2] GOMES, Orlando. Sucessões. 15 Ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2012 p. 240.

[3] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões, vol. 06. 24 Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010 p. 200.

[4] GOMES, 2012 p. 240.

[5] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012: “Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”.

[6] RIO GRANDE DO SUL (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acórdão proferido em Apelação Cível Nº. 70034811208. Apelação. Ação de Deserdação ajuizada por pessoa viva, que quer deserdar um herdeiro necessário seu. Impossibilidade jurídica do pedido. Defensor Público que atuou como curador especial de réu revel. Honorários de sucumbência. Fixação. Descabimento. Negaram provimento a ambos os apelos. Órgão Julgador: Oitava Câmara Cível. Relator: Desembargador Rui Portanova. Julgado em 13.05.2010. Disponível em: . Acesso em 11 nov. 2012.

[7] DINIZ, 2010, p. 201.

[8] GOMES, 2012 p. 241.

[9] RIO DE JANEIRO (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acórdão proferido em Apelação Cível Nº 0003016.63.2010.8.19.0209. Apelação Cível. Direito Sucessório. Deserdação. Testamento. Necessidade de observância dos requisitos legais dos artigos 1.962 e 1.814 do Código Civil. Sentença de improcedência. Desprovimento do recurso. Órgão Julgador: Terceira Câmara Cível. Relator: Desembargador Sebastião Rugier Bolelli. Julgado em 31.08.2011. Disponível em: . Acesso em 11 nov. 2012.

[10] Neste sentido: DINIZ, 2010, p. 202.

[11] GOMES, 2012 p. 242.

[12] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012: “Art. 1.965. Ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, incumbe provar a veracidade da causa alegada pelo testador. Parágrafo único. O direito de provar a causa da deserdação extingue-se no prazo de quatro anos, a contar da data da abertura do testamento”.

[13] DINIZ, 2010, p. 202.

[14] RIO GRANDE DO SUL (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acórdão proferido em Apelação Cível Nº. 70029040417. Ação de Exclusão de Herdeiro. Tentativa de Homicídio, agressões, injúria, calúnia. Fatos incomprovados. Recurso Improvido. Órgão Julgador: Oitava Câmara Cível. Relator: Desembargador Claudir Fidelis Faccenda. Julgado em 21.05.2009. Disponível em: . Acesso em 11 nov. 2012.

[15] GOMES, 2012 p. 242.

[16] DINIZ, 2010, p. 51.

[17] RIO GRANDE DO SUL (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acórdão proferido em Apelação Cível Nº. 70.013.245.972. Apelação Cível. Ação Declaratória de Indignidade de Herdeiro. Negaram provimento à apelação. Órgão Julgador: Oitava Câmara Cível. Relator: Desembargador: Rui Portanova. Julgado em 20.07.2006. Disponível em: . Acesso em 11 nov. 2012.

 [18] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012: “Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente”.

[19] DINIZ, 2010, p. 51.

[20] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012: “Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.

[21] DINIZ, 2010, p. 53.

[22] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012: “Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: [omissis] II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro”.

[23] GOMES, 2012, p. 34.

[24] DINIZ, 2010, p. 53.

[25] TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito das Sucessões, vol. 06. 3 Ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Método, 2010, p. 89.

[26] GOMES, 2012, p. 35.

[27] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012.

[28] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012: “Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes: I - ofensa física; II - injúria grave; III - relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto; IV - desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade”.

[29] GOMES, 2012 p. 243.

[30] DINIZ, 2010, p. 202.

[31] GOMES, 2012 p. 244.

[32] DINIZ, 2010, p. 203.

[33] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012: “Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes: I - ofensa física; II - injúria grave; III - relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta; IV - desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade”.

[34] GOMES, 2012 p. 244.

[35] DINIZ, 2010, p. 205.

[36] GOMES, 2012 p. 245.

 

 

Elaborado em novembro/2012

 

Como citar o texto:

RANGEL, Tauã Lima Verdan..Apontamentos acerca do Instituto da Deserdação na Sucessão Testamentária. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 22, nº 1163. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/3035/apontamentos-acerca-instituto-deserdacao-sucessao-testamentaria. Acesso em 9 mai. 2014.

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