Antes de adentrarmos o cerne deste artigo, é de fundamental importância tecermos considerações preliminares, vez que, o fulcro deste assunto, pode ser tratado de maneira tridimensional: sociedade-direito-valorização dos direitos humanos. 

       Esclarecedores e sábios são os ensinamentos de ULPIANO, quando lecionava no vetusto Direito Romano que ubi societas, ibi jus. Traduzindo, vislumbramos que onde existir sociedade, haverá Direito. Neste ínterim, magistral é o ensinamento da festejada professora ADA PELLEGRINI (2014) em sua obra de Teoria Geral do Processo, ao narrar que não haveria espaço e tampouco necessidade para atuação do Direito, na remota ilha onde habitava Robson Crusoé, antes da chegada do índio Sexta-Feira. Esta ideia de sociedade-direito é fruto do pensamento aristotélico, difundido nos ensinamentos de São Thomás de Aquino. Sendo assim, bastam a existência de dois homens, vivendo num mesmo local, com pensamentos diferentes, para que hajam conflitos intersubjetivos de interesses, carecendo então, de normas reguladoras do convívio social. Neste ambiente é que o Direito atua como distribuidor da justiça social, pacificando os conflitos que possam existir.

Lembrando ainda os ensinamentos de ULPIANO, temos, quiçá, a melhor definição do que seria justiça. Para o jurista romano, justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito. Nesta linha de pensamento, guarda verossimilhança, o ensinamento magistral de Rui Barbosa, considerado por muitos como o maior jurista do Direito brasileiro. O festejado jurista alertava, com a prudência que sempre lhe foi peculiar, que “a força do Direito deve superar o Direito da força”!

       A valorização dos Direitos Humanos, amiúde, faz com que o legislador atue na busca incessante de mecanismos e ações para resguardarem direitos e muitas vezes punir aqueles que transgredirem regras de conduta social. A criação do Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser exemplificado como um destes mecanismos de ação, criado não somente para resguardar direitos e punir condutas desajustadas, mas também como fonte de valorização de um grupo hipossuficiente: crianças e adolescentes! Seria correlato, classificarmos como uma forma de ação afirmativa a criação do referido ESTATUTO! Isto porquê as chamadas affirmatives actions oriundas do Direito norte-americano, nada mais são do que medidas de discriminações positivas, ou seja, ações que buscam valorizar grupos que se encontram em situações de inferioridade na sociedade. É a busca daquilo que a doutrina resolveu chamar de igualdade material, substancial ou real. Manifesta é a situação que crianças e adolescentes encontram-se perante a sociedade de forma geral. Ademais, o próprio ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE os identificam como seres humanos em desenvolvimento, demonstrando assim necessidade primordial e especial de proteção. Nas disposições preliminares do referido ESTATUTO, a contida no art. 6º enfatiza que na interpretação do ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

       O legislador pátrio, no exercício de seu mais nobre poder legiferante, editou a Lei 8.069/90, doutrinariamente conhecida como ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, para dar um tratamento especial e diferenciado às crianças e adolescentes, trazendo não somente medidas de proteção a seus direitos, mas também mecanismos de punição de suas condutas que violarem o convívio social. Neste artigo, não iremos aprofundar o estudo completo desta lei, uma vez que, nosso escopo é abordar o instituto da internação, como a medida mais drástica de punição para aqueles adolescentes que descumprirem e violarem nosso Estatuto Penal Substantivo. Trataremos este instituto, não somente como uma medida punitiva-retributiva e sim como medida de ressocialização e “desintoxicação” na busca sempre constante de valorização dos direitos humanos.

Esta busca sempre incessante pela valorização dos direitos humanos, sempre foi matéria que nos motivou a aprofundar nossos estudos, mesmo ainda nos primórdios de nossa vida acadêmica. Temas ligados à discriminação racial, ao fundamentalismo religioso que atrofia a valorização dos direitos humanos, o combate às práticas de tortura dentre outros assuntos, foram temas que nos motivaram a discorrer ao longo dos anos e açambarcaram nossos conhecimentos.

Depois deste rápido introito, é conveniente que passemos a discorrer acerca do tema em questão, para que nosso desiderato não seja afastado.

Neste ínterim, pedimos vênia para que de forma narrativa, possamos esclarecer ao leitor o porquê de classificarmos a internação como uma medida de ressocialização e “desintoxicação” social. Ad instar à prisão, a internação é medida sócio educativa máxima contida no art. 112, inciso VI da Lei 8.069/90 – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Depois de alguns anos trabalhando na Delegacia da Criança e do Adolescente da Asa Norte em Brasília/DF, a teoria se fez prática e possibilitou que vislumbrássemos que por detrás da ineficiência do Poder Executivo, o Judiciário poderia fomentar tal carência e mudar a vida de alguns adolescentes infratores que viessem a cometer atos infracionais graves. Narrando de forma breve, o tempo nos rememora uma manhã de domingo. Inverno atípico no Planalto Central. Assumíamos mais um plantão naquela Delegacia Especializada onde jovens que não tiveram a mesma sorte que nós, eram excluídos diariamente da sociedade. O fato ganhava pilares sociais e não somente morais como muitos diziam. O mundo do crime era opção e ao mesmo tempo: atração! Talvez receberemos críticas por pensar assim, sobretudo por sermos policial. Entretanto, combater o crime, respeitando a legalidade e acima de tudo a dignidade da pessoa humana, sempre foi motivação para defendermos a sociedade. Todavia, o combate ao crime que preconizamos, não é aquele estereotipado em paradigmas tradicionais de atuação, mas num modelo otimista que acredita na ressocialização do transgressor da lei. Naquela manhã, o pedido de uma adolescente infratora foi mais do que inusitado, serviu como verdadeira elucubração para nossas ideias. Ela foi direta e objetiva obsecrando: por favor, me ajude a pedir ao juiz para ser internada, estou grávida, tentei matar uma garota e não aguento mais ficar nas ruas usando drogas. Meu marido me agride. Quero ganhar minha filha longe das ruas e das drogas. A internação é a única saída que tenho!

De fato, a internação não deveria ser, mas naquele momento era a única esperança que aquela adolescente tinha para livrar-se de toda “toxidade” que a sociedade provocava em sua vida. Com o passar dos anos trabalhando naquela Delegacia, fomos percebendo que o anseio daquela garota não era um caso isolado. Incontáveis adolescentes viam na internação a última saída para “mudarem de vida”! O mais nefasto e deprimente, era vislumbrar que pessoas com poucos anos de vida, seres em formação, em desenvolvimento, deveriam estar movidos por ambições, esperanças, típicos de um contexto normal que vivem os adolescentes. Mas não, estavam descrentes da vida! As mazelas de uma sociedade famigerada pelas drogas, pobreza, falta de educação e violência contaminam e “intoxicam” diariamente a vida de um “batalhão” de crianças e adolescentes que acabam se tornando “soldados” do crime”!

A internação prevista no art. 121 do ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE enaltece o respeito aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito a condição peculiar da pessoa em desenvolvimento. Preconizamos tudo isto, mas acreditamos que a internação se faz mais necessária ainda para afastar o adolescente infrator da sociedade que o contaminou e continuará contaminando. Retorná-los à sociedade, sem antes lhes oferecer baldrame, seria o mesmo que construirmos uma linda e voluptuosa casa sem ferragens!

Crianças e adolescentes, por serem seres em eminente estágio de formação, por não terem completado ainda maturidade biopsicológica, necessitam de cuidados especiais e acima de tudo proteção. Neste particular, esclarecedores são os ensinamentos do festejado psicólogo e epistemólogo suíço JEAN PIAGET ao salientar que os adolescentes encontram-se num estágio de operações formais, ou seja, o amadurecimento biológico do adolescente torna possível a aquisição de determinadas operações formais, que representam o último estágio para que seja completado o processo do desenvolvimento cognitivo. O referido período das operações formais, estende-se dos 12 aos 21 anos de idade, ocasião em que na maioria das vezes se conquista o total desenvolvimento cognitivo. De encontro ao que foi explicado, a psicologia do desenvolvimento demonstra que os aspectos cognitivos, emocionais, sociais e morais da evolução da personalidade do indivíduo, são determinantes para influenciar seus comportamentos. Estes ensinamentos servem como sustentáculo para aquilo que defendemos: internação como medida de ressocialização e “desintoxicação” para aquele adolescente que esteve mais exposto e vulnerável às mazelas da sociedade que está lhe contaminando. O adolescente infrator da lei, demanda sim uma atenção maior por parte dos órgãos públicos que falharam em algum estágio neste processo de desenvolvimento cognitivo.

Preconizamos e defendemos fielmente, que diversos setores do poder público têm sua parcela de responsabilidade neste processo de desenvolvimento cognitivo da criança e principalmente daquele adolescente que se tornou infrator da lei. O processo ressocialização precisa ser iniciado desde o momento que o adolescente infrator é apresentado à Delegacia de Polícia, para que desde já seja desmistificado o paradigma de que o policial é seu inimigo. Pelo contrário, o policial é o elo de ligação entre ele e o Poder Judiciário, que na figura do Estado-Juiz poderá mudar o curso e o caminho de sua vida. De fato, a ressocialização começa ao entrar na Delegacia, ocasião em que o policial deverá entender todo contexto social em que foi inserido aquele adolescente infrator e respeitar todos direitos inerentes a sua condição de pessoa humana. Devemos nos ater para a ideia de que o criminoso de hoje, foi o adolescente infrator de ontem. Muito além, infelizmente, da realidade do restante do país, a Delegacia da Criança e do Adolescente de Brasília/DF, não somente por suas instalações modernas e também pelos policiais que lá trabalham, figura hoje no cenário do país como modelo de valorização dos direitos e garantias elencados no ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Todavia, este modelo de Delegacia Cidadã, precisa ser copiado e aplicado no restante do país. Precisa ainda ser aplicado ao sistema físico das unidades de internação dos adolescentes infratores, vez que estas são as grandes responsáveis pela efetiva reintegração do adolescente à sociedade. Quando tocamos no assunto UNIDADES DE INTERNAÇÃO, aqui vislumbramos o grande freio que dificulta a ressocialização: a superlotação do sistema! Sem acreditar em utopias, pois entendemos que o assunto é muito complexo para discorrermos neste momento, mais uma vez identificamos a força motriz para que tudo possa ser mudado, ou seja, o JUDICIÁRIO, o MINISTÉRIO PÚBLICO, as DEFENSORIAS PÚBLICAS ESTADUAIS e ONGS de proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes, precisam se unir e, por meio de medidas legais, amparadas na própria Constituição Federal, compelir o Poder Executivo a destinar recursos para que sejam construídas UNIDADES DE INTERNAÇÃO dignas e capazes de ressocializar e enfim “desintoxicar” o adolescente que infringir a lei.

Não podemos mais nos escudarmos, usando dizeres de que nossos sistemas de internação estão superlotados, não ressocializam e por isso devemos “colocá-los” nas ruas. A “rua” não é a solução. É na verdade a escuridão, é a treva! Um país que gasta BILHÕES em corrupção, que angaria verbas para promoção de eventos desnecessários como diariamente vislumbramos, não pode ficar aveludado num discurso pitoresco de que não há verbas públicas para serem investidas em determinados segmentos da sociedade. O Poder Executivo precisa ser compelido a cumprir aquilo que promete e está legalmente incumbindo de cumprir.

O assunto que por nós aqui fora aventado, é cerne de acaloradas discussões. Por esta razão, nossos operadores do Direito altercam opiniões inflamadas acerca do que fora até aqui exposto. Nossas proposições não soam como elucubrações, vez que, como nós, doutos colegas coadunam. Nosso desiderato, é mais do que teórico, é prático, na medida que buscamos externar aos leitores aquilo que vivenciamos na prática.

No interregno do que fora até agora abordado, ramificações do tema fariam brotar diversos assuntos que nos fariam discorrer por um sem número de linhas. Neste momento, nosso escopo é outro. Nossa pretensão foi demonstrar que a internação prevista no ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, não pode ser imposta tão somente como medida punitiva-retributiva por uma violação da lei. Precisa ir além e trazer o adolescente infrator ao convívio social, afastando-o num primeiro momento daquele mal que havia “intoxicado” sua vida. Neste diapasão, pedimos vênia para tecermos nossas considerações finais.

Nas primeiras linhas deste artigo, expusemos que o assunto que aqui seria tratado deveria ser analisado numa ótica tridimensional, ou seja, sociedade-direito-valorização dos direitos humanos. Por tudo que aqui relatamos, esta assertiva se faz verdadeira. O direito, como ciência que estuda e cria leis capazes de reger e muitas vezes apaziguar conflitos intersubjetivos, deve estar sempre corroborando o ideal de valorização dos direitos humanos. Estes seriam direitos sobrepostos, não meramente “postos” à sociedade. Esta ideia ganha mais alicerce ainda, quando falamos da aplicação de normas que cerceiam o “status libertates” do indivíduo, logo, a aplicação do Direito Penal. Referida ramificação do Direito, é sobretudo fragmentária. Sendo assim, deve ater-se somente aos fatos mais graves que afligem à sociedade. Como leciona ROXIN, “o direito penal é desnecessário quando se pode garantir a segurança e a paz jurídica através do direito civil, de uma proibição de direito administrativo ou de medidas preventivas extra-jurídicas”. Por tais motivos, que acreditamos fielmente que a internação do adolescente infrator deve ser valorizada e tratada como medida punitiva e acima de tudo preventiva extra-jurídica, para reconquistar aquilo que momentaneamente a sociedade lhe retirou ou sequer proporcionou. Crianças e adolescentes, por serem seres em desenvolvimento, ocupam espaço de vulnerabilidade junto à sociedade. É salutar e necessária, por sua condição especial, que sejam buscadas medidas e ações afirmativas, para que a igualdade substancial seja então alcançada. Sempre oportuno é lembrar do magistral ensinamento do jurista baiano RUI BARBOSA, que em sua eternizada peça “Oração aos moços” discorreu acerca do princípio da igualdade dizendo que “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade iguais, ou desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”.

Ex vi, acreditamos que a internação do adolescente infrator, desde que como já salientado, em locais dignos para sua ressocialização, é medida crucial para resgatá-lo daquela sociedade que fora responsável por sua “intoxicação”. NÉLSON HUNGRIA, considerado o maior penalista do direito brasileiro, ao tratar do tema norma penal em branco, transcreve que o jurista alemão KARL BIDING a comparou com uma “alma errante em busca de corpo”. Pois bem, em razão de sua condição especial de vulnerabilidade social e desenvolvimento intelectual, os adolescentes infratores podem ser considerados, metaforicamente, como corpos em busca de almas. Precisam de “almas” do bem que lhe sirvam de paradigmas para enfim torna-los cidadãos e afastá-los das mazelas “tóxicas” que a sociedade lhe oferece gratuitamente.

Referências

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Volume I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense.

NASCIMENTO, Edmundo Dantès. Linguagem Forense. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

NUCCI, Guilherme Souza. Manual de Direito Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014

OLIVEIRA, Rui Barbosa de. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ruy_Barbosa.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

 

Elaborado em abril/2014

 

Como citar o texto:

CAMPOS, Lucas Seabra de. .Internação no ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: uma medida de ressocialização e "desintoxicação" social. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1202. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-da-infancia-e-juventude/3248/internacao-estatuto-crianca-adolescente-medida-ressocializacao-desintoxicacao-social. Acesso em 13 out. 2014.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.