Medidas que visem ao aperfeiçoamento das garantias penais, funcionando como meios de contrapoder e contenção ao excesso de poder punitivo do Estado fortalecem a cidadania e em decorrência valorizam a democracia. A cautela quanto às intervenções estatais restritivas à liberdade individual de qualquer pessoa constitui sinalização positiva para que o garantismo penal adquira concretude, funcionando com efetividade.

                   A busca pela funcionalidade não pode, contudo, ser orientada por uma exasperação teórica, como se as fórmulas para a institucionalização das garantias devessem seguir o padrão da alta complexidade e da supressão imotivada das estruturas existentes. Relevante deve ser a substância, a formalidade será satisfatória se valida e permite a chegada ao objetivo. Não possui o procedimento um valor intrínseco por si só; sempre estará a serviço de um parâmetro material.

                   Esse paradoxo tem sido detectado na discussão em torno da adoção no Brasil do sistema da audiência de custódia. Segundo a proposta,  todas as pessoas presas em flagrante delito seriam submetidas a uma audiência pessoal com o juiz criminal no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.           

                   O PLS n. 554/2011de autoria do senador Antonio Carlos Valadares, substituído por emenda do senador João Capiberibe afirma que a apresentação pessoal do preso ao juiz, junto com o auto de prisão em flagrante delito, tem como finalidade a verificação quanto à aplicação de liberdade provisória e/ou outras medidas cautelares (art. 310, Código de Processo Penal). Além disso, intenciona-se que o magistrado possa verificar eventual violação aos direitos ou garantias do preso.

                   Instaurada a audiência com a apresentação do preso, de acordo com a modificação proposta ao art. 306, CPP pelo PLS 554/2011, é colhido o depoimento do preso, que não pode ser utilizado como fonte de prova contra ele.  No relato, as indagações devem ser referentes a legalidade e necessidade da prisão, prevenção da ocorrência da tortura ou maus-tratos e sobre os direitos assegurados aos presos.

                   Devem participar da audiência, o Ministério Público, o defensor do preso e na sua ausência, a Defensoria Pública, velando pelos interesses daquele, inclusive com o direito processual de reperguntas ao custodiado e a manifestação antes da decisão judicial.

                   São enumerados vários motivos para que a nossa legislação processual penal receba tal alteração. Argumento denso tem origem na recomendação desse procedimento pela Convenção Americana de Direitos Humanos e Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

                   A ideia ainda é defendida como forma de se eliminar a superlotação carcerária, diminuindo-se o número de presos provisórios. Destaca-se por oportuno, que no sistema vigente, por força de garantia constitucional do preso, a prisão de qualquer pessoa deve ser informada imediatamente ao juiz, através da remessa do auto de prisão em flagrante delito. Não havendo motivos para sua manutenção ou verificada a ilegalidade,  o juiz deve determinar automaticamente a soltura do preso (art. 5º, LXII, LXV e LXVI, CF)     .       

                   Registre-se que a novidade na audiência de custódia consiste no contato pessoal do juiz com o preso e a instauração de um contraditório sobre as circunstâncias da prisão e a possibilidade de soltura. Não é que não exista o contato do preso com a autoridade, pois a lavratura do auto de prisão em flagrante, via de regra, é feita pelo delegado de polícia ou pelo próprio juiz, em casos residuais.

                   No nosso sistema, a autoridade policia         l reúne o atributo de abster-se de realizar a prisão em flagrante, quando não entender presentes os pressupostos do art. 302, CPP. Assim, necessariamente há o contato pessoal do preso com autoridade que detém carga de poder do Estado para realizar ou não a sua prisão.

                   Com a conclusão policial pela efetivação da prisão, comunica-se ao juízo com a remessa do auto de prisão em flagrante delito, impondo-se de imediato a aferição pelo magistrado da pertinência da prisão, possibilidade de concessão de liberdade provisória, com ou sem incidência de outras medidas cautelares. Afastadas essas premissas, o juiz se converter a prisão inicial em prisão preventiva, deverá anunciar fundamentos idôneos de tal deliberação com base nos arts. 312 e 313, CPP.

                   Tem-se com isso, que o mecanismo vigente possui alta funcionalidade. A crença de que o contato pessoal entre juiz e preso, logo após a prisão possa significar um ganho real em termos de qualidade de uma decisão – medição que deve ser feita na avaliação dos seus  fundamentos – é orientar a jurisdição por um parâmetro de subjetivismo de seus operadores.  

                   A proposta, todavia, tem fins nobilitantes. Por isso, não podemos transformá-la em uma quimera desarrazoada. Tampouco é lícito permitir que seus defeitos provoquem a inibição da atuação dos setores do Estado que atuem na defesa social e segurança pública ou que sacrifiquemos o procedimento vigente, que possui inegável qualidade (Lei 12.403/2011). Devemos extrair dela a objetividade da contribuição para a melhoria do sistema, sem comprometer as estruturas em funcionamento.

                   Ora, se todos os presos em flagrante delito forem encaminhados aos juízos criminais para a audiência no modelo trazido pelo PLS 554/2011, verdadeiro e incontrolável caos ocorrerá no funcionamento das atividades judiciais e policiais. Isso porque, os agentes de segurança deverão ser deslocados de maneira permanente para o foro a fim de realizarem a apresentação do preso. A escolta deve ser apta, pois o cidadão está sob custódia do Estado, significando o envolvimento de número importante de servidores, impossibilitando a sua dedicação nesse período a outras atividades funcionais.

                   No ambiente forense, o aumento na realização das audiências implicará certamente na dificuldade de gestão das outras extensas atribuições da unidade judiciária, comprometendo outros atos processuais como audiências, decisões e sentenças (principalmente de réus presos). O estrangulamento das atividades é risco concreto, ante a insuficiência da estrutura de recursos humanos e materiais.

                   Com a afetação à organização dessas unidades judiciárias criminais e entendendo-se que resultado idêntico pode ser obtido por outros meios, busca-se assim uma equalização dos problemas, eliminando-se excessos das normas como redigidas no PLS 554/2011.

                   Visando uma colaboração para esse debate, sugerimos uma alteração na redação do art. 306, CPP,  que teria o seguinte conteúdo, a partir da construção do art. 306-A, CPP e da modificação do inciso V, art. 581, CPP com o acréscimo de uma hipótese para interposição de recurso em sentido estrito :

                   Art. 306.  A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada.

                      § 1o  Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente, preferencialmente por meio eletrônico, o auto de prisão em flagrante, acompanhado de exame de corpo de delito realizado no preso antes de seu recolhimento ao estabelecimento prisional e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. 

                § 2o  No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas. 

                   Art. 306-A. No prazo de 24 (vinte e quatro) horas após o recebimento do auto de prisão em flagrante, o juiz deverá proferir a decisão prevista no art. 310, I, II, III e páragrafo único deste Código.

                § 1º  Se convertida a prisão em flagrante em preventiva e havendo indícios de violação a direitos do preso,  o juiz de ofício, ou em razão de requerimento do Ministério Público, defensor constituído do preso ou Defensoria Pública, designará audiência para oitiva do preso em até 05 (cinco) dias.

              § 2º Não se convencendo da presença de indícios de violação a direitos do preso, o juiz indeferirá a realização da audiência para sua oitiva, sem prejuízo da incidência do disposto no art. 316, CPP.

               § 3º  Na audiência será verificado se estão presentes elementos que confirmem os indícios de violação aos direitos fundamentais do preso e nesse caso, a autoridade judicial adotará as medidas cabíveis para preservá-los e para a apuração de eventual violação.

            § 4º A oitiva a que se refere o § 1º será registrada  em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova  contra o depoente ou outros presos e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e  necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de  maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso, admitindo-se a juntada de documentos de ofício ou a requerimento das partes.

            § 5º Durante a oitiva, o juiz elaborará as perguntas ao preso, que em seguida será inquirido pelo Ministério Público, assistente se houver, defensor constituído ou defensor público que o assistir, exclusivamente sobre o conteúdo previsto no parágrafo anterior.

            § 6º O juiz indeferirá as perguntas das partes que já tiverem sido respondidas e as que não se enquadrarem na exclusividade prevista no § 3º.

            § 7º O juiz indeferirá as reperguntas diretas ao depoente em relação à parte que advertida inicialmente não se abstiver de tratar o depoente ou qualquer pessoa que deva tomar função no ato processual com urbanidade, ou insistir em indagações que se enquadrem no que dispõe o § 3º.

            § 8º Adotado o procedimento previsto no parágrafo anterior, constará da ata da audiência, o teor da decisão judicial, podendo a parte se dirigir ao juiz para a realização das indagações ao depoente, sob pena de preclusão da sua intervenção na inquirição.

            § 9º Finalizada a inquirição, as partes, sucessivamente, Ministério Público e Defesa poderão se manifestar verbalmente pelo prazo máximo de 15 (quinze) minutos para cada parte,  com sucinto registro escrito das razões e requerimentos na ata da audiência.

            § 10 Realizadas as manifestações e requerimentos das partes, o juiz proferirá decisão de imediato ou no prazo de 48 horas, podendo deliberar de ofício ou deferir requerimento das partes sobre a manutenção da prisão preventiva ou adoção das providências previstas no art. 310, I e III, 317, 318,  319, I a IX e 320, todos deste Código.

            § 11 Será admitida a intervenção do assistente do Ministério Público nos termos do art. 272, deste Código.

            § 12 Não se aplica a audiência prevista no caput, se a prisão preventiva for decretada fora da hipótese prevista no art. 310, II, deste Código, no curso do inquérito policial, durante outro tipo de investigação de natureza criminal ou ação penal.

            § 13 Havendo mais de um preso custodiado em razão do mesmo auto de prisão em flagrante delito e sendo colidentes os interesses da Defesa, cada um deles deverá ser assistido por defensor constituído ou defensor público distintos, assegurando-se o direito de reperguntas do Ministério Público e de cada um dos defensores em relação a todos os inquiridos.

             Art. 581.  Caberá recurso, no sentido estrito, da decisão, despacho ou sentença:

            (...)

             V - que conceder, negar, arbitrar, cassar ou julgar inidônea a fiança, indeferir requerimento de prisão preventiva ou revogá-la, conceder liberdade provisória, relaxar a prisão em flagrante ou indeferir a realização de audiência para oitiva do preso em flagrante delito; 

                   A alternativa sugerida para fins de debate considera que devem ser aproveitados os instrumentos legais e de estrutura no funcionamento da máquina policial e judiciária, em vigor atualmente. Na luta pela construção de um segmento de controle do Estado com aptidão para se impedir a violação de direitos do preso, não se pode deixar de evocar que a normatividade existente se encontra dotada de um mecanismo que determina a rápida fluência da informação e da intervenção judicial.

                   Se alguns segmentos setorizados não correspondem a essa expectativa, necessária uma abordagem individual e direcionada a um aprimoramento específico. Não se autoriza a partir disso, a implosão de todo o sistema.

                   O ponto central da modificação proposta é a transformação da audiência de custódia em regra, apenas na hipótese do mecanismo inicial não conferir a liberdade provisória com ou sem outras medidas cautelares, alternativas à prisão. Cria-se ainda a obrigação de realização de exame de corpo de delito no preso. Assim, seria aplicada a audiência, apenas quando o juiz recebendo o auto de prisão em flagrante, convertesse aquela cautelar em outra, isto é, a prisão preventiva e estivessem presentes indícios de violação a algum direito do preso.

                   Da maneira em que se encontra redigido o PLS 554/2011 até mesmo nos casos em que a autoridade policial confere a liberdade provisória com fiança ao preso (art. 322, CPP), haverá a necessidade da audiência de custódia. E soa contraditório, ouvir o autuado em verificação sobre a sua custódia, quando não estiver mais custodiado.

                   Os riscos quanto às violações dos direitos fundamentais do ex-preso ou a apuração de responsabilidades poderão nessa hipótese serem evitados ou minimizados com a sua direta reclamação ou representação. Nos outros casos em que o juiz deferir a liberdade provisória, a partir da análise do próprio documento, não existirá também a necessidade da audiência de custódia.

                   Certamente, o conteúdo do auto de prisão em flagrante delito chegará mais rapidamente ao conhecimento judicial (meios eletrônicos) do que a apresentação física do preso com todos os seus inconvenientes. Analisada a perspectiva da cessação da constrição à liberdade, no prazo de 24 horas, não existirá razão para a audiência de custódia. Poupam-se recursos, tempo e mobilização de pessoal necessários a outras atividades, que são também destinadas à tutela de direitos fundamentais.

                   A proposição ainda se preocupa em descrever minuciosamente o procedimento da inquirição, para serem evitadas dúvidas quanto à sua extensão e forma de atuação das partes e do juiz, pois composto de uma singularidade no nosso sistema processual.  Assim, são feitas previsões das intervenções das partes e do assistente do Ministério Público, se for o caso.

                   Não se olvida do fundamental: a possibilidade de utilização do contraditório e ampla defesa, mesmo com os limites inerentes à própria natureza da prisão cautelar, permitindo que o juiz verifique, após a realização da audiência de custódia, se a decisão anterior que decretou a prisão preventiva deve ser mantida.

                   O debate em torno do tema é necessário para que o aprimoramento se construa sem sobressaltos, atingindo-se a finalidade visada, mas sem o desperdício de energias, simplesmente para que seja adotada uma fórmula vistosa, mas que nada acrescente de relevante em termos de conteúdo.

 

 

Elaborado em fevereiro/2015

 

Como citar o texto:

SILVA, Amaury..Audiência De Custódia E A Racionalidade Possível. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1239. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/3463/audiencia-custodia-racionalidade-possivel. Acesso em 10 mar. 2015.

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