Resumo

Este artigo discute a influência do Poder Judiciário na conquista da igualdade racial nos Estados Unidos. Embora nos Estados Unidos a escravidão foi abolida pela 13ª Emenda à Constituição, a segregação racial perdurou na sociedade americana até a metade do último século. O artigo explica a visão das cortes americanas sobre a escravidão e segregação racial através dos séculos XIX e XX e conclui sobre a importância de um Poder Judiciário independente numa sociedade moderna.

Palavras-chave: escravidão; igualdade; direitos fundamentais; direito

                                                           Abstract

This article discuss the influence of the Judiciary Power in the racial equality achievement in the United States. Although in the United States the slavery was abolished by the 13 th amendment to US Constitution, racial segregation lasted in American society until the middle of the last century. This article explains the vision of the American Courts about slavery and racial segregation through the XIX and XX centuries and concludes about the importance of an independent Judiciary Power in a modern society.

Keywords: slavery; equality; law; Supreme Court

1 Introdução

Este artigo discute a influência do Poder Judiciário na conquista da igualdade racial nos Estados Unidos da América.

A escravidão foi abolida em 1865 através da 13ª Emendaà Constituição dos Estados Unidos determinado que “nem escravidão ou servidão involuntária” devem existir nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição.

Contudo, numa sociedade marcadamente constituída pela desigualdade racial, sendo um modo de vida observado especialmente dos estados do sul, a discriminação racialperdurou até os meados do século XX.

Anote-se que sem o Direito, não seria possível aos povos discutirem suas reivindicações. Segundo Dworkin, o aspecto argumentativo na prática do direito pode ser estudado sob dois pontos de vista. O primeiro ponto de vista é o do historiador ou sociólogo, que questiona por que determinados argumentos se desenvolvem em determinados momentos históricos e não em outros. O outro é o ponto de vista interior das pessoas que fazem as reivindicações. O ponto de vista interior não é, em última análise, histórico ou sociológico, embora possa considerar a história ou a sociologia relevante. O ponto de vista interior inclui o do historiador quando algum pleito jurídico se funda numa questão histórica (DWORKIN, 2014, p.17).Este artigo pretende examinar a conquista da igualdade racial nos Estados Unidos na visão dos argumentos dos juízes, isto é, sob o ponto de vista interno, mas utilizará o ponto de vista histórico ou sociológico quando entender importante para a compreensão do tema.

2 A Constituição dos Estados Unidos

A Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776, redigida por Thomas Jefferson, afirmava que “nós acreditamos que certas verdades são evidentes por si mesmas, que todos os homens nascem iguais e eles são agraciados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre eles são a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. (ARCHIVES.GOV, 2014)Inobstante a Declaração de Independência ser expressa no sentido de que todos os homens nascem iguais e o direito à liberdade ser inalienável, a escravidão foi amplamente tolerada na fundação dos Estados Unidos.

Ao declararem sua independência, os Estados Unidos precisavam de um novo governo, o que se tornou um problema político no final do século XVIII. Em 1787 foi promulgada a Constituição Americana, que no presente encontra-se em vigor, sendo um marco histórico do Direito Constitucional moderno ao prever um sistema de freios e contrapesos, um forte poder executivo, uma legislatura representativa e um Poder Judiciário Federal.

Originalmente, a Constituição de 1787 não previa os direitos fundamentais, limitando-se a enunciar a estrutura do governo dos Estados Unidos. Num primeiro momento, a ideia na época era organizar um governo federal que se originou a partir das treze ex-colônias da Inglaterra. O que dizia respeito aos direitos dos cidadãos deveria ser objeto das constituições estaduais, que quase todas já os previam.Cite-se o exemplo conhecido da Declaração dos Direitos do Povo da Virgínia, documento que antecedeu a Declaração de Independência. Após o debate entre Alexander Hamilton, que defendia que o papel da Constituição se limitava a disciplinar “os interesses gerais políticos da nação”, do que regular as relações entre os indivíduos entre si e Thomas Jefferson, que defendia a inclusão dos direitos fundamentais, a vontade popular acabou prevalecendo e em 25 de setembro de 1789 o Congresso aprovou as emendas que ficaram conhecidas como o Bill of Rights americano (COMPARATO, 2010, p. 133).

Em Marbury v. Madison, de 1803, a Suprema Corte dos Estados Unidos consagrou o princípio da supremacia da Constituição sobre as leis ordinárias.  Este precedente firmou o princípio da judiciabilidade de todo e qualquer direito fundado em norma constitucional, reconhecendo que a primeira e fundamental garantia desses direitos era de natureza judicial (COMPARATO, 2010, p. 125-126).A decisão representou uma inovação em relação ao Common Law inglês, eis que este reconhece a primazia da soberania do Parlamento. Ao contrário, nos Estados Unidos, foi reconhecido aos tribunais interpretar as leis e decidir se estavam de acordo com a Constituição, sendo declarada sua nulidade (null and void), caso desrespeitassem seus dispositivos. Posteriormente este postulado se espalhou pelo resto do mundo e passou a ser adotado por todas as democracias constitucionais, inclusive no Brasil.

3 A luta pela liberdade nos tribunais da América

            A medida que o território dos Estados Unidos se expandia seja através de aquisição de terras, guerras ou colonização, o debate sobre a escravidão se tornava cada vez mais acirrado e violento. Neste debate havia duas questões fundamentais: a questão moral e a questão prática. A questão moralentre liberdade e destino levantada por escritores, filósofos e poetas como Ralph Emerson,escritor americano que viveu no século XIX, em “Conduta da Vida” (GUTEMBERG.ORG, 2014) foi assim sintetizada:

Se você se contenta em ficar ao lado do destino e diz, o destino é tudo; então nós dizemos, uma parte do destino é a liberdade do homem. Sempre cultive o impulso de escolher e agir na alma. O intelecto anula o destino. Enquanto o homem pensa, ele é livre.

Em segundo lugar havia um interesse prático na discussão. Afinal, a escravidão deveria ser permitida nos novos territórios que se incorporavam à União?

            De todo o modo, aescravidão foi progressivamente abolida nos estados do norte a partir do final do século XVIII. Em 1781, por exemplo, a Suprema Corte do Estado de Massachusetts declarou a escravidão ilegal, não em razão de herança ou contrato e sim por violação direta à constituição estadual (MASSACHUSETTS COURT SYSTEM, 2014).

Nos estados do sul, ao contrário, ficava cada vez mais claro que a cor era uma questão crucial sobre o direito das pessoas.    Nas regiões produtoras de tabaco e algodão dos Estados do Maryland, Virgínia e a Geórgia ter um escravo equivalia a propriedade de um valioso bem e a quantidade simbolizava o prestígio social de seu dono. De acordo com Karnal et al (KARNAL et al, 2013):

Outro importante fator que pesava contra a possibilidade de abolição da escravatura é que o escravo, mercadoria, já fazia parte do mercado econômico do país. Ele estava inserido numa complexa rede de compra e venda e sua força de trabalho sustentava a produção nos campos, sendo o responsável pela mobilização de milhões de dólares. Quanto mais se dependia do escravo, maior era o esforço para mantê-lo nessa posição, mesmo porque crescia cada vez mais o receio de manifestações coletivas de escravos, que de fato resistiam, fugiam ou matavam senhores em nome da liberdade(KARNAL et al, 2013, p. 124).

 

            Como era de se esperar, muitos escravos fugitivos do sul fixavam domicílio no norte com o fim viver em liberdade. Entretanto, com o suporte de uma lei de 1793, caçadores de escravos (slave-catchers) agiam livremente nos estados do norte, causando repúdio aos abolicionistas. Em resposta, estados livres promulgaram leis “anti - sequestro”. Assim, processos de escravos fugitivos viravam intensas batalhas judiciais.         

            Em Prigg v. Pensylvannia, Edward Prigg era um caçador de escravos que prendeu a escrava fugitiva Margaret Morgan, que vivia no Estado da Pensilvânia. De acordo com a lei federal de 1793, Prigg precisava de uma certidão judicial para levar a escrava de volta, mas o juiz indeferiu. Mesmo assim, Prigg levou a escrava junto com suas crianças ao seu proprietário. Prigg foi processado por sequestro. O caso terminou na Suprema Corte, que julgou a lei anti - sequestro inconstitucional.

            Uma nova lei, “The Fugitive Slave Law”, de 1850, visava evitar controvérsias e tornar mais fácil a devolução de escravos fugitivos, mas igualmente a lei encontrou resistência feroz e às vezes violenta nas cidades livres do norte.          

Em 1857, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou uma decisão que afetou profundamente o debate jurídico da escravidão. Um escravo chamado Dredd Scott de propriedade de um médico do exército foi levado do Estado do Missouri para Illinois, onde a escravidão era ilegal. Após a morte do proprietário, Scott retornou ao Missouri e requereu sua liberdade, alegando que sua estadia num estado onde a escravidão era proibida o tornava um homem livre. Após 11 anos, Scott vs. Stanford chegou até a Suprema Corte dos Estados Unidos, que reformou a decisão dainstância inferior ao decidir que os afro-descendentes não podiam ser cidadãos americanos, e por não serem cidadãos, não tinham direito de jurisdição no tribunal.Ao negar a cidadania aos afro-americanos a eles era também negado o direitode proteção judicial(FRIEDMAN, 2005). De acordo com a decisão:

Os homens que elaboraram a declaração de direitos eram grandes homens –especialistas em literatura, grandes no seu senso de honra e incapazes de prever princípios inconsistentes com aqueles que estavam prevendo (...). A infeliz raça negra foi separada por marcas indeléveis e nas leis há muito estabelecidas nunca se pensou ou se falou exceto em propriedade, e assim quando o proprietário ou o comerciante a reclamam, eles merecem proteção (CORNELL, 2014). 

Scott vs. Sandford marcou a profunda divisão da sociedade americana na metade do Século XIX e sua repercussão foi um dos fatores que resultaram na Guerra da Sucessão, eis que com a eleição de Abraham Lincoln como presidente, político conhecido por suas ideias abolicionistas, os estados do sul decidiram se separar da União. 

            No final da Guerra Civil, vencida pelos estados livres do norte, em 31 de janeiro de 1865 foi aprovada a 13ª Emenda à Constituição Americana, abolindo a escravidão nos Estados Unidos.

4 “Separado mas igual”

            Apesar da escravidão ter sido abolida em todo o território americano após 13ª Emenda, em hipótese alguma os afro-americanos dos estados do sul podiam ser considerados iguais aos brancos. Tal como ensina Birnfeld, não se pode conceber uma constituição “como pináculo apoteótico da organização da racionalidade humana, estandarte do final feliz da história de um povo”(BIRNFELD, 2008).

Assim, os estados que fizeram parte da velha Confederação aprovaram leis que restringiam os direitos dos afro-descendentes. Proibiam os negros de possuir fazendas e, como empregados, eram impedidos de deixar o trabalho sem justa causa, podendo ser presos e obrigados a voltar ao empregador. Eram proibidos de testemunhar contra brancos e servirem como jurados. Era proibido o casamento inter-racial. Ainda, leis severas que tratavam da pobreza em todos os estados do sul, colocavam os afro-descendentes sob estrito controle da sociedade. Eram as chamadas “Jim Crow Laws”.

            Em 7 de setembro de 1868, o Congresso aprovou a 14ª Emenda Constitucional, determinando que todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos eram cidadão americanos e não poderiam sofrer restrições do direito à vida, à liberdade e à propriedade, sem o devido processo legal.Inobstante a 14ª Emenda, os negros dos estados do sul continuavam na posição de relegados a uma posição de peonagem, subordinados nas terras dos fazendeiros brancos.

 Leis estaduais e os costumes prendiam os afro-descendentes ao meio rural. Estas leis consideravam crime oferecer emprego aos afro-descendentes, mesmo que pagasse melhor salário. Promulgaram leis contra agenciadores de emprego e puniam a desistência “fraudulenta” do trabalho. Embora estas leis não mencionassem os negros, eram dirigidas a eles. A situação dos afro-descendentes americanos neste tempo não era muito diferente da própria escravidão, exceto pelo fato que poderiam ser demitidos do emprego.

            Ao longo do tempo, várias leis nos estados do sul foram se incorporando ao direito e aumentando cada vez mais o sistema de segregação racial. As leis previam trens separados para brancos e negros. O sistema eleitoral previa que brancos votassem separadamente. As constituições dos estados do sul restringiam o direito ao voto dos afros – descendentes ao exigir a leitura e compreensão de suas leis, prova de propriedades, testes de literatura e impostos. Afro-descendentes eram segregados em cabines telefônicas, leitura da bíblia nos tribunais, em elevadores. Mesmo após a morte a discriminação não cessava, pois havia cemitérios para brancos e negros.

            Nesta época poucos casos chegaram à Suprema Corte. Citemos Hall v. DeCuir, de 1877, no qual a uma afro-descendente foi negado o direito de viajar na cabine reservada aos brancos de um barco a vapor que partiria de Nova Orleans, na Louisianna até Vicksburg, Estado do Mississipi. Foi ajuizada ação de indenização que foi julgada procedente pela Suprema Corte da Louisianna, cuja constituição estadual proibia qualquer tipo de discriminação nos meios de transporte. O processo chegou a Suprema Corte dos Estados Unidos que decidiu que a proibição de discriminação era inconstitucional pelo fato de ser competência exclusiva do Congresso regular o comércio interestadual (FRIEDMAN, 2005).

            Em 1883, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou inconstitucional a Lei Federal dos Direitos Civis de 1875 (Civil Rights Act of 1875), que proibia a discriminação em hotéis, meios de transporte, teatros e outros lugares de diversão pública em razão de cor ou raça, ao entender que a proibição de restringir os direitos fundamentais prevista na 14ª Emenda, era de competência dos Estados e a negativa de acomodações iguais não significava escravidão, proibida pela 13ª Emenda:

O Congresso tem o direito de legislar todo o necessário para impedir e prevenir a escravidão e todas as suas consequências e incidentes, por outro lado, impedir a admissão de pessoas num hotel, transporte público ou teatro significa qualquer forma de servidão ou escravidão? Não, então o poder de aprovar esta lei não é impedido pela 13ª Emenda (CORNELL, 2005).

A decisão de 1883, que decidiu que “separação não era escravidão” abriu o precedente para um caso famoso, como veremos a seguir.

            Em Plessy v. Ferguson de 1896 o sistema “separado mas igual” foi consagrado pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Neste “landmark case”, foi analisado o caso deuma viagem de trem de Nova Orleans para Convington, e o passageiro Homer Plessy,  americano mestiço, sentou-se no vagão destinado aos brancos. Ante a recusa de mudar-se de vagão, Plessy foi preso por violar as leis estaduais que previam separação de assentos de acordo com o perfil racial. O caso subiu para a Suprema Corte e decidiu que mera distinção racial não ofende a 13ª Emenda, porque não equivale a escravidão (FRIEDMAN, 2005). Analisando o conflito da lei estadual que previa o transporte segregado com a 14ª Emenda, que proíbe a todos os cidadãos dos Estados Unidos sofrer restrições sobre o direito à vida, à liberdade e à propriedade, sem o devido processo legal, a Suprema Corte decidiu que:

Na determinante da questão da razoabilidade, é liberdade da lei agir com referência aos usos, costumes e tradições do povo, e com uma visão de promover seu conforto e preservação da ordem pública e a boa ordem. Baseados nestes argumentos, não podemos dizer que uma lei que autoriza ou requer a separação de duas raças de acordo com a conveniência pública não é mais razoável ou ofensiva à 14ª Emenda, que outros atos do Congresso que preveem escolas separadas no Distrito de Columbia, cuja constitucionalidade não parece ter sido questionada (CORNELL, 2014).

            Assim, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a constitucionalidade das leis estaduais que previam a segregação racial. Era a doutrina do “separate but equal” com a qual a sociedade americana conviveu até os anos cinquenta.

            Nesse ambiente de segregação, no final do Século XIX, surgiram grupos extremistas que defendiam o extermínio da “população inferior”, sendo o mais conhecido a Ku Klux Klan (KKK). Segundo Karnal et al (KARNAL,2013):

A KKK colocava-se como uma entidade moralizante, de defesa da honra, dos costumes e da moral cristã. A prática pavorosa de linchamentos era justificada por seus membros a partir de acusações de supostos estupros de mulheres brancas por negros (numa clara hierarquização da sociedade: a mulher, indefesa e inocente, estaria sendo vitimizada pelo negro, ser “inferior e bestial”, que precisava ser combatido pelos protetores dos “bons costumes”, os cavaleiros brancos da Klan.

 

5 O Judiciário da América no Século XX

            Nos anos de 1871 e 1872 o governo federal aprovou leis e tomou medidas para conter o avanço de organizações extremistas. Contudo, a Klan reapareceu na Geórgia em 1915 e o Século XX iniciou com 214 linchamentos por organizações racistas apenas em seus dois primeiros anos.

Como reação, em 1909 foi fundada a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP-National Association for the Advanced of Colored People) por William DuBois, primeiro afro-americano a receber o título de doutor pela Universidade de Harvard. Uma das atribuições da NAACP era evitar linchamentos e atuar em cortes federaispara assegurar julgamentos justos aos afro-descendentes. Posteriormente, por volta de 1930, a NAACP passou a demandar a completa integração dos negros à sociedade americana na educação, nos serviços públicos e no trabalho (KARNAL, 2013).

            Assim, o início do século XX foi marcado pelas primeiras pequenas vitórias na Suprema Corte em busca da justiça racial, embora o resultado fosse praticamente não notado pela sociedade.

            Em Bailey v. Alabama, de 1911, a Suprema Corte decidiu que a lei que considerava crime a desistência de prestar trabalho previsto em contrata era inconstitucional, mas o efeito foi nulo e o sistema da peonagem dos negros do sul foi mantido, prosseguindo o apartheid social.

            Em Buchanan v. Warley,de 1917, foi questionada na Suprema Corte a constitucionalidade de uma lei municipal de Louisville que proibia estabelecer moradia de pessoas de cor diferente da maioria dos residentes da quadra. A Suprema Corte decidiu que:

Impedir a venda de uma propriedade para uma pessoa de cor não está no legitimo exercício do poder de polícia do Estado e é uma violação direta ao direito fundamental erigido na 14ª Emenda, que proíbe a interferência nos direitos de propriedade sem o devido processo legal (CORNELL, 2014).

            Entretanto, a Corte ainda não tinha se posicionado abertamente sobre a doutrina “separado mas igual”.

            Em Gaenes v. Canada, em 1938, a Suprema Corte abordou a política pública da educação. Lloyd Gaines, afro-descendente, pretendia se graduar em direito pela Universidade do Missouri. A universidade na época não aceitava estudantes afro-descendentes, alegando que as leis estaduais previam escolas segregadas e a pequena demanda de afro-descendentes pelo ensino superior. Para compensar, a Universidade pagava bolsa para estudantes afro-descendentes em estados vizinhos. A Suprema Corte ordenou a Universidade do Missouri aceitar Gaines, ante a afirmação que a obrigação do Estado em oferecer proteção igual sob as leis não poderia ser transferida para um terceiro42 e assim deveria aceitar o estudante afro-descendente (FRIEDMAN, 2005).

            Apenas em 1954, a Suprema Corte modificou o precedente do “separado mas igual” em Brown v. Board of Education. Linda Brown era uma afro-descendente de sete anos de idade que precisava caminhar 1,5 km ao longo de uma estrada de ferro para pegar o ônibus para ir a uma “black elementary school”, apesar de existir uma escola para brancos mais próxima de sua casa(FRIEDMAN, 2005). Baseada em evidências científicas sobre a educação sob condições de segregação racial, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que:

Segregação de crianças brancas e negras nas escolas públicas de um estado, apenas em função da raça de acordo com as leis estaduais que permitem ou determinam esta segregação, negam às crianças negras à igual proteção das leis garantida pela 14ª Emenda – embora a estrutura física e outros fatores tangíveis das escolas para brancos e negros possam ser iguais. A história da 14ª Emenda não é conclusiva se é direcionada para produzir efeito no ensino público. A questão que se apresenta nestes casos deve ser determinada não com base nas condições existentes quando a 14ª Emenda foi adotada, mas a luz do pleno desenvolvimento do ensino público e sua presença na vida americana da Nação. Onde o Estado teve a oportunidade de assumir a educação nas suas escolas públicas, esta oportunidade é um direito que deve ser disponibilizado para todos nas mesmas condições. Segregação de crianças em escolas públicas somente em razão da raça, limita às crianças de um grupo minoritário às oportunidades iguais de educação, mesmo que as instalações físicas e outros fatores tangíveis possam ser iguais. A doutrina “separado mas igual” adotada em Plessy v. Ferguson, não tem aplicação no campo do ensino público (CORNELL, 2014)..

            Brown vs. Board of Education interpretou a lei de acordo com o seu tempo. Por exemplo, nos anos cinquenta os afro-americanos já haviam se incorporado às forças armadas americanas. Os afro-descendentes lutaram na Guerra Civil, na 2ª Guerra Mundial e na Guerra da Coreia. Muitos se sacrificaram em nome da liberdade e igualdade prometida pelos Pais Fundadores de 1776. Por que não agora, quase duzentos anos depois, não reconhecer plenamente seu direito à completa cidadania?

            A decisão da Suprema Corte não acabou imediatamente com a segregação racial. Numa segunda decisão, considerando a complexidade da matéria e o número de localidades envolvidas, foi realizada audiência com a ouvida dos procuradores-gerais dos estados onde ministravam educação segregada. Foi decidido que as autoridades escolares teriam a responsabilidade de esclarecer, ajudar e resolver os problemas práticos decorrentes decisão. Pela proximidade maior das comunidades envolvidas, aos tribunais estaduais coube fiscalizar se a decisão da Suprema Corte estava sendo cumprida de boa-fé. Baseada nestas determinações, foi solicitado que fosse implementada a educação não segregada com a maior rapidez possível.

            Embora a decisão do Caso Brown não revogou explicitamente Plessy v. Ferguson, eis que limitava-se ao ensino público, ficou evidente que a doutrina “separada mas igual” fora superada. Logo a Suprema Corte foi clara ao dizer que o Caso Brown serviria de “leading case” além das escolas. A 14ª Emenda significava agora que não deveria haver qualquer tipo de discriminação, em qualquer lugar, ou em qualquer aspecto da vida pública. O apartheid americano violava os direitos fundamentais.

            Assim, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu interferir na política pública de educação com o fim de extinguir a discriminação racial. Mister sinalar a preocupação da Suprema Corte em estender a sentença para todos os demais afro-descendentes, sendo que para tantodeterminou linhas gerais ao procedimento, o que evidencia a preocupação com a utilidade social do processo constitucional.         

CONCLUSÃO

Os Estados Unidos legaram ao mundo a ideia de um Poder Judiciário independente e a consagração do princípio da possibilidade da Suprema Corte, ao interpretar a Constituição, declarar a inconstitucionalidade das leis ordinárias. Marbury vs. Madison de 1803 talvez tenha sido o caso mais importante da história judicial, eis que ao conceder esses poderes à Suprema Corte, não só inovou o sistema do Common Law, mas influenciou o sistema jurídico de todas as nações que pretendem seguir os princípios de um Estado Democrático de Direito.  Tratam-se de regras consolidadas há mais de duzentos anos que ditam até hoje o comportamento dos atores jurídicos nas cortes e nos tribunais.

Estabelecidas as regras pela Suprema Corte, observamos uma longa e árdua batalha pela conquista da igualdade racial nos Estados Unidos. Com efeito, a mesma Suprema Corte que concedeu poderes para decidir o que violava os princípios da Constituição, negou a liberdade, negou qualquer direito aos afro-descendentes em Scott vs. Stanford em 1867. A 13ª Emenda de 1865 que proibiu a escravidão nos Estados Unidos, mas a Suprema Corte americana negou o direito à igualdade racial em Plessy vs. Ferguson de 1896consagrando a teoria do “separado mas igual”.

Observando o papel exercido pelo Poder Judiciário na conquista da igualdade racial nos Estados Unidos concluímos que a injustiça não termina com a pena de legislador, por meio de declaração de direitos ou uma emenda constitucional. A evolução do homem resultou, como efeito colateral, numa sociedade complexa onde a injustiça em muitas ocasiões encontra abrigo e segurança em inúmeras leis, instituições e hábitos culturais que são difíceis de mudar.

Assim, as injustiças mais profundas e enraizadas na sociedade levam muito tempo para serem corrigidas. De fato, a evolução da sociedade no campo dos direitos fundamentais é frustrantemente lenta. A própria ideia de que direitos fundamentais são mandados de otimização enseja a ideia de se tratam de uma promessa para um futuro distante.

Mas o problema maior não é a lentidão da sociedade de reagir às injustiças. O maior problema é o conformismo, porque o que se faz ou se deixa de fazer hoje repercutirá no amanhã, no ano que vem, daqui a cem ou duzentos anos.  Caso os precedentes Sandford vs. Scott e Plessy vs. Ferguson deixassem de ser questionados certamente a sociedade americana seria hoje completamente diferente e teria influência em outros países que ainda não haviam consagrado os direitos iguais. É preciso perceber que desistindo de reivindicar seus direitos se abre mão da possibilidade do sucesso ou das lições da derrota. 

Referências Bibliográficas

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Elaborado em março/2015

 

Como citar o texto:

FLORES, Rodrigo Gomes..A influência do Poder Judiciário na conquista da igualdade racial nos Estados Unidos. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1240. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direitos-humanos/3536/a-influencia-poder-judiciario-conquista-igualdade-racial-estados-unidos. Acesso em 16 mar. 2015.

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