O Código Civil de 2002, ao tratar do negócio jurídico, cuidou também de estabelecer as normas acerca da invalidade deste, conforme se observa do Capítulo V, do Título I de seu Livro III. E, como se sabe, os negócios jurídicos inválidos são divididos em nulos ou anuláveis. Os nulos, por sua vez, na dicção do art. 169 do mencionado Diploma Legal, são insuscetíveis de convalidação e não convalescem com o decurso do tempo.

Todavia, o art. 170 traz disposição que merece análise aprofundada. Para tanto, de proêmio, deve-se tomar o texto legal, vazado nos seguintes termos: “Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”.

O dispositivo legal transcrito parece até mesmo conflitar com o contido no art. 169, posto que, por uma leitura apressada, poder-se-ia concluir que o art. 170 estaria a permitir que a nulidade fosse sanada.

Contudo, não é o que se passa.

O art. 170 parte da premissa de que há um negócio nulo que como tal deve ser declarado. No entanto, caso esse negócio contenha em si os requisitos de um outro, que seja válido e que se possa também considerar ser da vontade das partes, então será possível afastar-se aquele e considerar a existência válida deste último.

Trata-se da chamada conversão substancial do negócio jurídico, admitida pela doutrina, a exemplo de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2013, p. 636).

O Superior Tribunal de Justiça, tribunal competente para fixar, em última locução, a interpretação da lei federal, igualmente tem aplicado o art. 170 do Código Civil. Pela didática das razões de decidir, enfeixadas na respectiva ementa, é de bom alvitre a citação de aresto da lavra da eminente Ministra Nancy Andrighi, o qual traz um esboço teórico do tema e a sua aplicação a um caso concreto, que se presta como exemplo. Confira-se:

CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE DOAÇÃO. AUSÊNCIA DE SOLENIDADE ESSENCIAL. PRODUÇÃO DE EFEITOS. CONVERSÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO NULO.

PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DOS ATOS JURÍDICOS. CONTRATO DE MÚTUO GRATUITO. ART. ANALISADO: 170 DO CC/02.

1. Ação de cobrança distribuída em 13/04/2006, da qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 13/01/2011.

2. Cinge-se a controvérsia a decidir a natureza do negócio jurídico celebrado entre a recorrente e sua filha, e se a primeira possui legitimidade e interesse de agir para pleitear, em ação de cobrança, a restituição do valor transferido à segunda.

3. O contrato de doação é, por essência, solene, exigindo a lei, sob pena de nulidade, que seja celebrado por escritura pública ou instrumento particular, salvo quando tiver por objeto bens móveis e de pequeno valor.

4. A despeito da inexistência de formalidade essencial, o que, a priori, ensejaria a invalidação da suposta doação, certo é que houve a efetiva tradição de bem móvel fungível (dinheiro), da recorrente a sua filha, o que produziu, à época, efeitos na esfera patrimonial de ambas e agora está a produzir efeitos hereditários.

5. Em situações como essa, o art. 170 do CC/02 autoriza a conversão do negócio jurídico, a fim de que sejam aproveitados os seus elementos prestantes, considerando que as partes, ao celebrá-lo, têm em vista os efeitos jurídicos do ato, independentemente da qualificação que o Direito lhe dá (princípio da conservação dos atos jurídicos).

6. Na hipótese, sendo nulo o negócio jurídico de doação, o mais consentâneo é que se lhe converta em um contrato de mútuo gratuito, de fins não econômicos, porquanto é incontroverso o efetivo empréstimo do bem fungível, por prazo indeterminado, e, de algum modo, a intenção da beneficiária de restituí-lo.

7. Em sendo o negócio jurídico convertido em contrato de mútuo, tem a recorrente, com o falecimento da filha, legitimidade ativa e interesse de agir para cobrar a dívida do espólio, a fim de ter restituída a coisa emprestada.

8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.

(STJ, REsp 1225861/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/04/2014, DJe 26/05/2014, grifos acrescidos).

Mas o STJ tomou o cuidado de sedimentar o entendimento de que só haverá de se falar em conversão substancial do negócio jurídico se a parte válida puder subsistir autonomamente, tal como se observa do seguinte julgado:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA.

CONFISSÃO DE DÍVIDA FEITA POR MEIO DE INSTRUMENTO PÚBLICO DE ESCRITURA DE MÚTUO COM GARANTIA HIPOTECÁRIA. VINCULAÇÃO COM EXECUÇÃO E RESPECTIVOS EMBARGOS. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO.

(...)

4. A Lei da Usura (Decreto 22.626/33) veda expressamente a estipulação de juros superiores ao dobro da taxa legal, que, na época do negócio jurídico entabulado, era de 0,5% ao mês (Código Civil, arts. 1.062, 1.063 e 1.262), correspondendo o dobro, então, a 1% mensal e 12% anual. Nesse contexto, verificada a prática de usura, com a cobrança disfarçada de juros de 8,11% ao mês, houve o correto reconhecimento pelas instâncias a quo da ilegalidade dos juros praticados no negócio jurídico firmado entre as partes litigantes.

5. O Código Civil de 1916, tal como o atual Codex (2002), e o Decreto 22.626/33 consagram o princípio do aproveitamento do negócio jurídico nulo ou anulável.

6. Somente será possível a decretação de nulidade parcial do contrato, resguardando-se, pois, sua parte válida, se esta puder subsistir autonomamente.

7. Em nosso ordenamento jurídico, há vedação do comportamento contraditório, consubstanciado na máxima venire contra factum proprium. Há, por outro lado, consagração ao princípio da boa-fé objetiva.

8. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido.

(STJ, REsp 1046453/RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 25/06/2013, DJe 01/07/2013, grifos acrescidos).

Como se pode observar, pelo art. 170 do Código Civil não há a convalidação ou o convalescimento do negócio nulo. O que se tem é a sua reclassificação, ou seja, é dada outra qualificação jurídica a um negócio que seria declarado nulo.

E assim se procede porque o referido artigo de lei é fundado no princípio da conservação dos atos jurídicos. Mais que tudo, com a conversão substancial dos negócios jurídicos, tem-se a salvaguarda da declaração negocial e a preservação da função social dos negócios jurídicos. Enfim, sai fortalecido o princípio da boa-fé objetiva.

Referências:

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 20 abr. 2016.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.046.453/RJ. Relator: Raul Araújo. Data de julgamento: 25/06/2013. Diário da Justiça Eletrônico de 01 jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2016.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.225.861/RS. Relatora: Nancy Andrighi. Data de julgamento: 22/04/2014. Diário da Justiça Eletrônico de 26 abr. 2014. Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2016.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 8. Ed. São Paulo: Lumen Juris, 2009.

Data da conclusão/última revisão: 2016-04-28

 

Como citar o texto:

GONÇALVES, Tarcisio Vieira..Conversão substancial do negócio jurídico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 27, nº 1437. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-obrigacoes-e-contratos/3646/conversao-substancial-negocio-juridico. Acesso em 9 mai. 2017.

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