§ 1. Ausência de limites probatórios: comparação com a AIJE.

A ação de impugnação de registro de candidato (AIRC) deve atender os requisitos do art.282 do CPC. Desse modo, deve indicar o órgão judicial para o qual está sendo dirigida, qualificar as partes, narrar os fatos e fundamentos jurídicos que ensejam a propositura da ação, deduzir pedido certo, juntar as provas documentais e requerer a produção das provas necessárias, além de ser subscrita por advogado inscrito na OAB, com procuração nos autos outorgada por um dos legitimados.

Um dos temas mais importantes sobre a AIRC, que vem sendo negligenciado pela doutrina, diz respeito aos fatos que constituem a sua causa de pedir, ou seja, ao complexo de fatos que dá ensanchas ao ajuizamento da ação. Vez por outra, em razão desse absenteísmo teórico, tem-se visto algumas decisões judiciais que impõem limites severos ao manejo da ação de impugnação de registro de candidato, tendo por motivação o equivocado argumento de que ela apenas se prestaria para atacar as inelegibilidades flagrantes, havidas tais aquelas já fundamentadas em provas pré-constituídas, sem necessidade de dilação probatória.

Com esse entendimento trazido no bolso do colete, há quem afirme que a AIRC apenas se prestaria para impugnar: (a) a ausência das condições de elegibilidade; (b) a carência de algum documento legalmente exigido e omisso no pedido de registro; e (c) a existência de alguma inelegibilidade previamente constituída por outra decisão (sentença penal transitada em julgado; decisão negativa do Tribunal de Contas ou do Legislativo, rejeitando as contas prestadas; ação eleitoral de pleitos anteriores, com efeitos ainda em vigor; etc.). Chamo a atenção que essa linha, inclusive, vem sendo a adotada pela jurisprudência.

Tal posição reducionista é sem base jurídica, merecendo com veemência toda a objurgação possível. A uma, porque impõe timidez ao uso dessa importante ação de direito material; a duas, porque desatende ao ordenamento jurídico positivo, que não impôs limites probatórios ao remédio jurídico processual (procedimento); e, a três, porque tal tese parte de uma má compreensão da finalidade da ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), inflacionada indevidamente, em perda de utilidade prática de ambas as ações.

O art.3º da LC 64/90 previu uma ação de direito material, cuja finalidade seria tutelar a pretensão declaratória negativa do direito de alguém ao registro de candidatura, vergastando o pleito daquele indicado em convenção partidária e requerente do registro. A ação de impugnação de registro de candidatura, destarte, tem por finalidade atacar o pedido de registro feito por quem, em razão de sua inelegibilidade (inata ou cominada) ou da falta de algum documento essencial, não possa obter o registro de sua candidatura, ganhando o direito de ser votado. Tal impugnação (ação de direito material), consoante dicção precisa do preceito, deve ser feita em petição fundamentada (remédio jurídico processual, "ação" processual), na qual serão especificados, desde logo, os meios de prova com que pretende demonstrar a veracidade do alegado, arrolando testemunhas, se for o caso, no máximo de seis (§ 3º do art.3º).

Mais enfático ainda, acerca da possibilidade ampla de dilações probatórias, o art.4º prescreve que, na contestação do impugnado, poderão ser juntados documentos, indicado rol de testemunhas e requerida a produção de outras provas, inclusive documentais.

Note-se, da leitura das normas citadas, que o legislador permitiu a possibilidade de produção de provas testemunhais (no máximo de seis), documentais, bem como de outras provas, vale dizer, periciais, depoimento pessoal das partes, etc. Sendo tão clara a determinação legal, de onde poderia sacar o exegeta a interpretação segundo a qual a AIRC não admitiria o amplo debate das matérias deduzidas, agitando fatos ainda não provados com antecedência, de cuja existência tivessem as partes que debater para formar a convicção judicial do magistrado? Noutro giro, com que base legal se poderia sustentar a inviabilidade da AIRC para manietar atos de abuso de poder econômico, ou de abuso de poder de político, ocorridos antes de seu ajuizamento?

A confusão existente, em verdade, não decorre da própria AIRC, mas da impressionante azáfama com que tem se havido a doutrina e a jurisprudência no tratamento dispensado à ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), causada por um portentoso equívoco teórico, qual seja, a negação da natureza judicial do remédio previsto no art.22 da LC 64/90. Há quem veja a AIJE como o elixir para todos os males da Justiça Eleitoral, sem observar o seu aleijão congênito, causado pelo inciso XIV do mesmo dispositivo referido, vez que tal ação, ainda que julgada procedente, infligindo uma inelegibilidade cominada contra o político ímprobo, apenas terá efeitos práticos quando transitada em julgado. Tal trânsito em julgado, no mais da vez - e aí reside o seu maior problema -, salvo improvável exceção decorrente da perda de algum prazo recursal, apenas ocorrerá após a diplomação do candidato, quando a decisão dependerá, para sua efetivação prática, do exercício da ação de impugnação de mandato eletivo (AIME). Essa algaravia desaconselha a inflação do uso da AIJE, eis que de parca utilidade para, de uma cutelada, ferir o registro de candidatura do nacional e, com isso, inibir o exercício de sua elegibilidade.

Afora esse aspecto, um outro, envolvendo também a AIJE, traz repercussão no estudo da AIRC. É que não se tem chegado a um consenso sobre o dies a quo de propositura da ação de investigação. Há quem sustente que a AIJE pode ser proposta a qualquer tempo antes da diplomação, não havendo, por isso mesmo, nenhum marco inicial para o seu ajuizamento, de modo que, mesmo antes da indicação dos pré-candidatos em convenção, já se poderia atacá-lo através dessa ação, bastando para isso qualquer manifestação do demandado, no sentido de desejar concorrer às eleições. Desse modo, e.g., se alguém exercesse o cargo de Governador do Estado e manifestasse o seu desejo de no futuro concorrer à reeleição, já poderia ser atacado pela AIJE, acaso praticasse algum ato de abuso de poder nesse período.

Esse raciocínio, parece-nos, não pode ser acolhido, por desatender a algumas exigência legais intransponíveis. Ora, a AIJE apenas pode ser ajuizada contra candidato beneficiado por abuso de poder econômico, abuso de poder político, uso indevido dos meios de comunicação social, etc., na forma do caput do art.22 da LC 64/90. Se a ação deve ter, obrigatoriamente, como um dos sujeitos passivos, o candidato beneficiado pelo abuso de poder, além de quem lhe deu causa - se não foi apenas ele próprio -, resta claro, de uma luminosidade solar, que não pode ser a AIJE proposta contra quem ainda não tenha sido indicado em convenção partidária e pedido o registro de sua candidatura, qualificando-se como pré-candidato oficial. Por essa razão, com supedâneo em nosso direito positivo, entendo que a AIJE deve ser proposta contra os fatos ilícitos ocorridos após o pedido de registro de candidatura, podendo ser manejada até a diplomação.

Não nos parece procedente ilustres opiniões, no sentido de que a época da propositura pode anteceder ao deferimento dos registros, quando a ação for proposta contra não-candidato. Tal assertiva contraria preceito legal expresso, que põe o candidato na qualidade de sujeito passivo da AIJE. De fato, quem interpõe essa ação tem a pretensão de atacar abuso de poder econômico ou político que beneficie ilicitamente algum candidato, para inocular em sua esfera jurídica a sanção de inelegibilidade. Não haveria sentido em se acionar alguém que, embora desejando lançar-se candidato a algum cargo, não tenha ainda sido indicado pelo partido político em convenção, tendo pedido à Justiça Eleitoral o seu registro de candidatura. Ainda que venha praticando atos ilícitos com fins eleitorais, não se reveste da qualidade de candidato, podendo nunca vir a sê-lo, em razão da sua não indicação em convenção. Não se pode obliterar, nem tampouco esmaecer, a finalidade para qual foi instituída a AIJE: preservar a legalidade e moralidade da disputa. Se alguém, desejando ser candidato, porfia por distribuir benesses, nem por isso tal ato terá efeito eleitoral. Sendo ele agente público, e estando se valendo de bens públicos para tal fim espúrio, poderá ser acionado na Justiça Comum, por improbidade administrativa. Apenas quando se revestir da qualidade de pré-candidato, ou seja, quando for indicado em convenção, na forma da ata, e houver pedido o registro de candidatura, é que poderá ser sujeito passivo da AIJE. E os atos ilícitos praticados antes do pedido de registro? Podem ser atacados pela ação de impugnação de registro de candidatura (AIRC), que é uma ação de rito sumário, mas de cognição plena e exauriente. Se nessa oportunidade não forem os atos ilegais atacados, precluem, consoante adiante mostraremos, naturalmente se não forem de escalão constitucional.

Se houver, por exemplo, a utilização indevida de propaganda publicitária da administração pública, antes do período próprio para o registro de candidatura, com a finalidade de beneficiar a pessoa que viria a ser, posteriormente, escolhida como candidato do partido do governo, há abuso de pode político, passível de ser atacado por AIRC. Os fatos ocorreram antes das convenções partidárias, mas podem ser objeto da ação de impugnação de registro de candidatura, pois beneficiaram indevidamente o futuro candidato do governo, em detrimento da liberdade do voto. Os fatos ocorreram antes do registro de candidato; a AIJE apenas após o registro poderia ser ajuizada, pois se o beneficiado não conseguir ser indicado em convenção partidária, benefício algum obteve, pois sequer concorreu a cargo eletivo. Logo, a AIJE não poderá abarcar tais fatos, por serem tratados como matéria infra-constitucional, preclusa após o registro da candidatura.

Ora, os não-candidatos, que podem figurar no pólo passivo da AIJE, são aqueles que beneficiaram o candidato (após o seu pedido de registro), formando com ele um litisconsórcio necessário não-unitário.

O abuso de poder econômico e abuso de poder político são hipóteses causadoras de inelegibilidade, e como tais previstas na Lei Complementar 64/90. Destarte, se ocorrerem antes do registro, e não forem suscitadas quando da AIRC, precluirá a faculdade de vergastá-las por meio de AIJE, eis que não são causa de inelegibilidades decorrentes de preceito constitucional.

Desse modo, cremos que a AIJE pode ser ajuizada em qualquer tempo, desde que entre o registro de candidato e a diplomação. Nem antes, nem depois.

Analisando essa minha posição, o eminente eleitoralista Lauro Barretto, na nova edição de sua respeitável obra, aguçadamente obtempera:

"Segundo este entendimento, seria necessário aguardar o registro do candidato, de nada valendo a possibilidade de suspensão liminar dos atos de abuso de poder previstas na LC nº 64/90.

Na prática, contudo, a Justiça Eleitoral tem acatado as representações a essa investigação antes mesmo do registro dos candidatos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a representação do PT (Partido dos Trabalhadores) contra o Presidente Fernando Henrique Cardoso, referente aos abusos de poder verificados na convenção do PMDB, realizada em março de 1998, que desprezou a tese de candidatura própria à sucessão presidencial."

De fato, o Tribunal Superior Eleitoral, bem como alguns Tribunais Regionais Eleitorais, têm recebido a ação proposta pelos legitimados, mesmo quando não haja ainda registro de qualquer candidatura. Mas tal posição não merece achegas; ao revés, deve ser repelida. E por que motivo? Consoante bem afirmou o próprio Lauro Barretto, a AIJE alcança os candidatos diretamente beneficiados pelo abuso de poder e todos aqueles, candidatos ou não, que tenham contribuído para a prática do ato. Aqui é que reside o busílis do problema: os terceiros apenas são legitimados passivos se tiverem contribuído para a prática do ato que beneficiou ilicitamente o candidato. Mas, antes das convenções e do pedido de registro, como se pode aferir se já há candidato a ser beneficiado? Como já visto, apenas alguém é candidato a um cargo eletivo quando obtém o registro de sua candidatura. Pode ele até intimamente desejar lançar-se candidato; pode até ser reconhecido como tal pelos seus seguidores, mas legalmente apenas será candidato quando tiver o seu registro de candidatura deferido.

A dificuldade que ainda hoje se tem para se compreender essa verdade, deve-se ao paradigma da teoria clássica da inelegibilidade, que não consegue delimitar bem os conceitos com os quais trabalha. O Presidente da República, antes de ser indicado em convenção partidária e pedir o registro de sua (re)candidatura, apenas possui expectativa de fato de ser candidato. Após ser indicado em convenção e pedir o registro perante a Justiça Eleitoral, pode atuar como candidato, pois já tem a expectativa de direito, ou seja, já está expectando a consumação do processo de registro para ser, legalmente, candidato. Os atos abusivos, que acaso tivesse praticado em convenção nacional do partido político, podem ser atacados por meio ação de impugnação de registro de candidatura (AIRC). Tal ação tem finalidade eleitoral, para impossibilitar a consumação de uma candidatura ilegítima.

Todavia, se houvesse abuso na convenção do partido, com uso da máquina para beneficiar o pré-candidato, poderia o interessado provocar o Juiz Eleitoral ou o Corregedor Eleitoral, a depender da eleição, para que tomassem eles as providências administrativas necessárias à paralisação dos atos ilegais, exercendo o seu poder de polícia, com esteio no art.20 da LC 64/90. Porém, a propositura da AIJE, penso, seria inviável, mercê da ilegitimidade passiva das partes: quem seria o candidato beneficiado? Como ele seria juridicamente qualificado como tal? Eis as questões que a teoria clássica não poderia responder.

Para demonstrar com clareza o que quero dizer, raciocinemos ab absurdam. Um Governador de Estado, no início do terceiro ano de mandato, é flagrado destinando recursos em excesso para um determinado Município, visando se tornar mais popular naquela localidade. Mais ainda: é fotografado distribuindo leite e merenda escolar, em solenidades pagas pelo dinheiro público. Indago: caberia a propositura de AIJE contra o Governador de Estado, levando-se em conta que a eleição, na qual pretende ele sair candidato à reeleição, apenas ocorrerá no ano seguinte? Se nós admitirmos que sim, estaremos concordando que a AIJE pode ser proposta a todo o tempo, em período eleitoral ou não, contra qualquer suposto candidato futuro. Basta alguém sonhar, por exemplo, que algum empresário concorrerá às eleições, e poderá propor contra ele a AIJE, alegando, e.g., que ele está fazendo doações à determinada comunidade carente, há dois anos antes da eleição, buscando cooptar ilicitamente a vontade dos eleitores.

Como, para a doutrina clássica, não existem critérios objetivos para se determinar a qualificação jurídica de "candidato", seria havido como tal, para efeito da ação de investigação judicial eleitoral, quem supostamente tivesse interesse em se candidatar. Nesse diapasão, todos os detentores de mandato eletivo poderiam, a todo o tempo, verem-se incomodados por ações dessa natureza, abarrotando a Justiça de Eleitoral de processos inócuos e sem finalidade eleitoral legítima. Descambaríamos para o subjetivismo e para o patrulhamento ostensivo das ações de qualquer cidadão com aumento de popularidade.

Volto a repetir: a AIJE tem por sujeito passivo o candidato, ou seja, aquele que, ao menos, já tenha sido indicado em convenção partidária e já tenha feito o pedido do registro de sua candidatura. Sem atender a esses dois pressupostos mínimos, não há sequer expectativa de direito, não havendo elegibilidade. Os terceiros, legitimados passivos, apenas são partes enquanto tiverem ligação com a prática do ato reputado ilícito. Não por outro motivo, em que pese os respeitáveis argumentos de Lauro Barretto e da doutrina que com ele comunga, penso que a AIJE apenas pode ser proposta após o pedido de registro de candidatura e antes da diplomação dos eleitos.

Sendo assim - e é assim -, temos que advertir que o abuso de poder econômico ou abuso de poder político praticado antes do pedido de registro de candidatura, além daquelas inelegibilidades não reputadas constitucionais, devem ser trauteados pela ação de impugnação de registro de candidatura, sob pena de preclusão. A AIRC é a ação própria, concebida pelo ordenamento jurídico, para fustigar os fatos geradores de inelegibilidade ocorridos antes do pedido de registro de candidatura, inclusive, e com maioria de razão, aqueles previstos pela Lei Complementar 64/90, de escalão infraconstitucional, mercê da possibilidade legal de sua preclusão.

Para demonstrar a falácia dos que sustentam a limitação da AIRC apenas para ferir as inelegibilidades que já possuam prova pré-constituída, basta uma comparação ligeira das normas de ambas as ações:

 

 

AIRC

AIJE

 

 

Art.3º, § 3º da LC 64/90 - O impugnante especificará, desde logo, os meios de prova com que pretende demonstrar a veracidade do alegado, arrolando testemunhas, se for o caso, no máximo de 6 (seis).

Art.22, caput da LC 64/90 - Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meio de comunicação social, em benefício de candidato ou partido político, obedecido o seguinte rito:

 

 

Art.4º da LC 64/90 - A partir da data em que terminar o prazo para impugnação, passará a correr, após devida notificação, o prazo de 7 (sete) dias para que o candidato, partido político ou coligação possa contestá-la, juntar documentos, indicar rol de testemunhas e requerer a produção de outras provas, inclusive documentais, que se encontrarem em poder de terceiros, de repartições públicas ou em procedimentos judiciais, ou administrativos, salvo processos em tramitação em segredo de justiça.

Art.22, inc.I da LC 64/90 - O Corregedor, que terá as mesmas atribuições do relator em processos judiciais, ao despachar a inicial, adotará as seguintes providências:

a) ordenará que se notifique o representado do conteúdo da petição, entregando-se-lhe a segunda via apresentada pelo representante com as cópias dos documentos, a fim de que, no prazo de 5 (cinco) dias, ofereça ampla defesa, juntada de documentos e rol de testemunhas, se cabível.

Como se pode observar ictu oculis, as normas sobre a AIRC são bem mais explícitas sobre o cabimento de todas as provas admitidas pelo direito processual civil, que é aplicável subsidiariamente ao direito processual eleitoral; doutra banda, dada a redação sofrível consumada para as disposições sobre a AIJE, seria lícito, embora impertinente, discutir-se sobre o não cabimento de outras provas, que não as documentais e testemunhais, nesse remédio processual específico. Ou seja, se alguma dúvida fosse agitada sobre a existência de limitações probatórias, não deveria recair sobre a AIRC, mas sim sobre a AIJE.

Todavia, conquanto a timidez do legislador tenha empanado o sentido que ele atribuiu aos preceitos cotejados, não há negar a clareza meridiana da possibilidade de dilações probatórias em sede de AIRC, tornando injustificável a tese reducionista, que não tem suporte na legislação em vigor, nem tampouco na sã interpretação das normas postas.

Outro grave erro interpretativo, a incentivar a limitação do uso da AIRC, tem sido aquele nominalista, de entender que a representação aludida pelo art.1º, inc. I, alínea d da LC 64/90 estaria se referindo apenas à AIJE, de modo que apenas por essa outra ação poderia o abuso de poder econômico ser manietado. Ora, o signo representação, previsto no art.1º, inc. I, letra d da LC 64/90 está aí por petição inicial, tal como ocorre no art.3º, caput ("petição fundamentada") e art.22, inc. I ("despachar a inicial") e sua alínea a ("conteúdo da petição"), todos da LC 64/90. Logo, é de uma pobreza evidente argumentar que o abuso de poder econômico apenas poderia ser vergastado pela AIJE, com base na palavra "representação", presente no art.1º, inc. I, alínea d da Lei Complementar. Pior ainda, quando, com base nesse argumento, se saca aqueloutro da necessidade de prova pré-constituída para instruir a AIRC, contrariando a própria dicção do texto legal glosado.

É preciso entender que os fatos descritos no art.1º, inciso I da LC 64/90, os quais ensejam a inelegibilidade, podem ser atacados, em sua integralidade, tanto pela AIJE como pela AIRC. A diferença entre ambas, quanto ao conteúdo da ação, está no momento em que tais fatos ocorreram: se foram praticados antes do pedido de registro de candidatura, cabe a AIRC; se praticados entre o registro e a diplomação, é a AIJE que tem cabida.

As alíneas d, h e i, do inc.I do art.1º da LC 64/90 são normas de direito material, que estabelecem causas de inelegibilidade. Desse modo, nada dizem do rito processual adotado para serem levadas a juízo, pois tal matéria é afeta às normas processuais próprias, que regrarão o modo de exercício da pretensão à tutela jurídica. As ações previstas para combater tais fatos ilícitos, estipuladas nas normas pertinentes, foram regradas nos arts. 3º e 22 do mesmo diploma, com os ritos processuais ali definidos para o seu ajuizamento. Se, ao tratar da AIRC, o legislador não elencou, em numerus clausus, os fatos que a ensejam, apenas a criando como meio de fustigar o pedido de registro, não haverá como o intérprete lhe subtrair a possibilidade de trazer à colação quaisquer fatos geradores de inelegibilidade, quando mais se se leva em conta que as provas, a serem produzidas, não precisam ser pré-constituídas, dada a literalidade do preceito dos arts.3º e 4º da LC 64/90.

Insistamos ainda mais um pouco sobre esse tema. Um mesmo fato jurídico, ainda que ilícito, pode ensejar duas ou mais ações; bem assim, um mesmo resultado ou efeito jurídico pretendido pode ser obtido por meio de duas ou mais ações. Em casos que tais estamos diante da chamada concorrência de ações. No primeiro caso, há concorrência de ações por fluência, ou causalística; no segundo, da concorrência de ações por fim, ou finalística. Como é ressabido, quando o interessado possui mais de uma ação ao seu dispor, pode ele escolher qualquer uma delas, ficando apenas proibido de exercitar as demais se, em relação a primeira, houver julgamento do mérito.

Quando a Lei Complementar 64/90 estabeleceu, em seu art.1º, tipos geradores de inelegibilidade, não se preocupou em estabelecer quais as ações cabíveis para fustigá-los, deixando tal matéria para os arts.3º e 22. Ali dispôs sobre ações cabíveis para impedir a concessão do registro de candidatura, ou mesmo para cancelá-lo, em caso de inelegibilidade do candidato, bastando para isso a leitura atenta do art.15 desse mesmo diploma legal. Logo, é necessário, para se compreender quais os fatos ilícitos que geram as respectivas ações, que se faça uma análise do que sobre elas dispôs o ordenamento jurídico. Vendo o art.22, caput, da LC 64/90, sabemos que a AIJE cabe para irrogar a inelegibilidade contra quem pratique abuso de poder econômico ou político, uso indevido dos meios de comunicação social e uso indevido de transportes. Outrossim, ver-se-á de uma maneira clara que a AIRC tem cabimento para impossibilitar a concessão do registro de candidatura àquele que não atenda os pressupostos legais (as chamadas condições de elegibilidade), ou que não junte os documentos necessários em seu pedido de registro, ou ainda que tenha praticado algum ato ilícito que o torne inidôneo para concorrer a um mandato eletivo (inelegibilidade cominada decorrente de abuso de poder, corrupção, fraude, uso ilegal dos meios de comunicação social, etc.)

A mesma finalidade (= inelegibilidade) pode ser obtida por meio de qualquer uma dessas ações. Ambas possuem quase o mesmo rito, variando apenas alguns prazos. O que estabelece a diferença entre elas é o período em que podem ser propostas e o tempo em que os fatos atacados ocorreram: a AIRC apenas pode ser proposta cinco dias após a publicação do edital que comunica os pedidos de registro, atacando fatos que lhe sejam anteriores; e a AIJE pode ser proposta entre o registro e a diplomação, atacando fatos posteriores ao registro e ocorridos até o dia da eleição. Por descurarem desse aspecto, a doutrina e a jurisprudência têm cometidos graves erros, impondo à legislação eleitoral ataques imerecidos e atendimento imperfeito.

AIRC

AIJE

 

 

Pode ser proposta até cinco dias após intimação por edital dos pedidos de registro de candidatura.

Pode ser proposta entre o registro de candidatura e a diplomação. Entre os legitimados passivos deve constar obrigatoriamente algum candidato.

 

 

Pode atacar qualquer fato ilícito gerador de inelegibilidade cominada; a ausência de alguma condição de elegibilidade; e a omissão de algum documento indispensável.

Pode atacar qualquer dos fatos ilícitos previstos no art.22, caput da LC 64/90, bem assim aqueles previstos no art.1º, inc. I, alíneas d, e, e h.

Seria difícil compreender o porquê da módica finalidade atribuída à AIRC pela doutrina clássica, em malsã influência sobre a jurisprudência, se não fosse pela sua visão limitada do fenômeno da inelegibilidade. Ao não perceberem com clareza a existência da inelegibilidade inata, bem assim por não isolarem as espécies de inelegibilidade cominada, terminam por terem dificuldades de trabalhar com esse instrumental teórico deficitário, empanando a riqueza e possibilidades das ações eleitorais previstas. Apenas com a superação desses conceitos ambíguos e imprecisos, é que poderemos analisar o ordenamento jurídico com uma certa lógica, encontrando nele respostas concretas aos problemas surgidos em nossa prática. Haveremos, então, de observar o sistema jurídico de modo mais objetivo e, por isso mesmo, com maior profundidade.

§ 2. A AIRC e o problema da cognição sumária.

Das ações eleitorais típicas (AIRC, AIJE, RecDiplo e AIME), apenas o recurso contra a expedição de diploma possui limitação na cognição do objeto litigioso. De fato, por força do art.262 do Código Eleitoral, a inelegibilidade do candidato eleito apenas pode ser suscitada se fundada em prova pré-constituída, seja documental ou decorrente de uma decisão anterior (art.262, incs. I e IV).

A doutrina, no estudo da cognição judicial, não obteve ainda um consenso, inclusive terminológico, para explicar a qualidade e a quantidade do conhecimento das matérias objeto de determinado processo. Kazuo Watanabe, em sua preciosa obra sobre o tema, classifica a cognição em dois planos distintos: horizontal (extensão, amplitude) e vertical (profundidade). No plano horizontal, a cognição pode ser plena ou parcial (limitada), segundo a extensão permitida; no plano vertical, doutra banda, pode ser exauriente (completa) ou sumária (incompleta).

Giuseppe Chiovenda, por outro lado, não se preocupa com a área de cognição propriamente dita, mas sim com o plano do seu corte ou seccionamento. Se na análise das questões da causa houvesse um corte horizontal, limitando a profundidade do seu conhecimento, teríamos uma cognição superficial ou incompleta; se, ao revés, o corte fosse vertical, de cima para baixo, teríamos uma limitação da extensão da matéria, sendo a cognição parcial ou limitada.

Como se pode perceber, ambas as classificações são essencialmente assemelhadas, distando apenas em razão do ângulo pela qual apreciam o mesmo fenômeno. Se excluíssemos a problemática da horizontalidade e verticalidade, veríamos que a classificação de ambos é idêntica, sem qualquer dissemelhança digna de menção.

Tal qual o mandado de segurança, o recurso contra diplomação sofre uma limitação quanto as provas admitidas. Ou seja, embora se permita que a ação possa abranger todas as questões possíveis (cognição plena), fica limitada quanto aos meios de prova dos fatos alegados, razão pela qual apenas superficialmente podem ser eles conhecidos (cognição superficial ou incompleta). Faz-se um corte horizontal na cognição, inibindo os embates probatórios no decorrer do procedimento. A sumariedade da cognição, destarte, é quanto à profundidade do debate admitido, possibilitando às partes, a depender da ação concreta, a propositura de uma ação plenária futura.

Quanto a ação de impugnação de registro de candidatura (AIRC), o legislador não impôs qualquer limitação das matérias a serem atacadas (corte vertical), nem tampouco acerca da profundidade das questões a serem debatidas (corte horizontal). Assim, qualquer fato capaz de infirmar a pretensão do pré-candidato, gerando o indeferimento do pedido de registro, pode ser suscitado pela AIRC, em debate pleno e exauriente das questões trazidas aos autos.

§ 3. Sobre a causa de pedir.

Há três espécies de fatos que podem ensejar a AIRC: (a) a inelegibilidade inata, decorrente da ausência de alguma condição de elegibilidade; (b) a inelegibilidade cominada, procedente de algum ato reputado ilícito pelo ordenamento; e (c) a falta de algum documento legalmente exigível para o pedido de registro, não suprida em tempo hábil.

Quanto as espécies (a) e (c) a doutrina e a jurisprudência não têm polemizado, sendo matéria pacífica o seu cabimento. O pomo da discórdia é quanto a possibilidade de a AIRC ser meio de impugnação do pedido de registro, esgrimindo contra a pretensão do pré-candidato à prática de algum ato ilícito, de cuja apuração dependa a existência de dilações probatórias. Ou seja, admite-se que a inelegibilidade cominada, documentalmente provada, possa ser suscitada em sede de AIRC (inabilitação para mandato eletivo; perda do mandato por infringência do disposto nos incisos I e II do art.58 da CF/88; rejeição da prestação de contas por irregularidade insanável; abertura de processo de liquidação judicial ou extrajudicial, em relação aos seus diretores, administradores ou representantes dos últimos doze meses; etc.). Portanto, os fatos ilícitos previstos na legislação, aos quais seja cominada a inelegibilidade, podem ser suscitados pela ação de impugnação de registro de candidatura, pouco importando se as normas prescritoras sejam constitucionais ou não.

Se é assim, por que motivo a inelegibilidade decorrente de abuso de poder econômico, abuso de poder político, uso indevido dos meios de comunicação social e dos meios de transporte, fraude, corrupção, etc., ficaria excluída da AIRC? Como já vimos, a LC 64/90 não impôs nenhuma causa de limitação da cognição dos fatos alegados nessa ação, nem tampouco prescreveu qualquer espécie de poda dos meios probatórios. Ao revés, mencionou o cabimento das provas documentais, testemunhais, bem como a possibilidade de se requerer a produção de outras provas (art.4º da LC 64/90).

Logo, rigorosamente falando, não existe qualquer empeço de ordem legal ou jurídica para o amplo uso da AIRC com a finalidade de impugnar o pedido de registro de candidatura, podend

 

Como citar o texto:

COSTA, Adriano Soares da.A petição inicial da ação de impunação ao registro de candidato: O problema da causa de pedir. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-eleitoral/40/a-peticao-inicial-acao-impunacao-ao-registro-candidato-problema-causa-pedir. Acesso em 1 ago. 2000.

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