INTRODUÇÃO

Acontecimentos que marcaram as últimas décadas vieram a corroborar, na contramão dos avanços obtidos na seara da proteção dos direitos humanos, o discurso que erige o Direito Penal como o principal instrumento de enfrentamento ao fenômeno da violência e da criminalidade. Os meios de comunicação, desde o final do século passado, propagam e divulgam críticas a um modelo penal que não acompanhou a evolução social, o que impulsiona o desenvolvimento de teorias que pregam a defesa dos cidadãos, a todo custo, contra os perigos que confrontam a sociedade, dando corpo a uma “cultura do medo”, geradora do entendimento de que somente o recrudescimento de penas, a criação de novos tipos penais e o afastamento de determinadas garantias processuais será capaz de “livrar” a sociedade de todo o “mal”. Nesta senda, o objetivo deste estudo é demonstrar que a atual demanda por segurança pautada em um modelo penal puramente repressivo não é nova, e contem raízes em movimentos e escolas doutrinárias pretéritas. Dentro dessa perspectiva, pretende-se contribuir com uma reflexão crítica acerca dos anseios de uma sociedade acossada pelo crime, mas que pode estar buscando o antídoto inadequado para a satisfação de suas pretensões legítimas por segurança, em desconformidade com os postulados de Direitos Humanos. Destarte, a abordagem proposta será tripartida, tendo início a partir da exposição, ainda que breve, do garantismo penal e do funcionalismo, no afã de apresentá-los ao leitor como possíveis pontos de observação em face das pretensões hodiernas. Em um segundo momento, objetivando sedimentar a compreensão sobre a dogmática penal contemporânea, a demanda cada vez mais crescente e urgente por segurança será colocada em exame. E, por derradeiro, a presente pesquisa bibliográfica intentará expor, utilizando-se dos ensinamentos do jurista espanhol Silva Sánchez, a preocupação relacionada ao desenvolvimento de um modelo penal que venha a reduzir direitos e garantias dos seus cidadãos em prol de um modelo capaz de ofertar aos indivíduos a tão cobiçada “segurança pública”.

1 Notas Sobre o Garantismo e o Funcionalismo

O Garantismo penal é uma corrente doutrinária que tem como seu principal fundador o italiano Luigi Ferrajoli. O modelo em estudo se pauta em uma justiça onde está garantido o previsto na lei, ocorrendo um envolvimento entre direito e sociedade. Ferrajoli determinou bases axiológicas para o desenvolvimento de sua doutrina garantista, quais sejam:

1) Nulla poena sine crimine: princípio da retributividade ou da consequencíalidade da pena em relação ao delito; 2) Nullum crimen sine lege: principio da reserva legai; 3) Nulla lex (poenalis) sine necessiíate: princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) Nulla necessitas sine injuria: principio da lesívidade ou da ofensividade do resultado; 5) Nulla injuria sine actione: principio da matenalidade ou da exterioridade da ação; 6) Nulla actío síne culpa: principio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) Nulla culpa sine judicio: principio da jurisdicionalidade; 8) Nullum judicium sine accusatione: prmcipio acusatóno ou da separação entre juiz e acusação; 9) Nulla accusatio sine probatíone: princípio do ônus da prova ou da verificação; e 10) Nulla probatio síne defensione; princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade. (MASSON, 2011, p. 81 e 82)

De outra banda, a teoria do funcionalismo penal teve berço na Alemanha em 1970, logo após o finalismo e por isso trouxe consigo alguns de seus fundamentos. Ademais o funcionalismo penal, como o próprio nome já diz, tem por intento o funcionamento adequado da sociedade por meio do Direito Penal. Neste sentido afirma Masson (2011, p.82):

Busca-se o desempenho pelo Direito Penal de sua tarefa primordial, qual seja, possibilitar o adequado funcionamento da sociedade. Isso é mais importante do que seguir à risca a letra fria da lei, sem desconsiderá-la totalmente, sob pena de autorizar o arbítrio da atuação jurisdicional. O intérprete deve almejar a real vontade da lei e empregá-la de forma máxima, a fim de desempenhar com esmero o papel que lhe foi atribuído pelo ordenamento jurídico

Há duas orientações teleológico-funcionalistas: a moderna, também chamada de moderada defendida por Claus Roxin; e a radical, também conhecida por sistêmica representada pelo funcionalismo sociológico de Günther Jakobs. A esse respeito explica Masson (2011, p. 83):

Com efeito, o funcionalismo de Roxin preocupa-se com os fins do Direito Penal, ao passo que a concepção de Jakobs se satisfaz com os fins da pena, ou seja, a vertente de Roxin norteia-se por finalidades político-criminais, priorizando valores e princípios garantistas, enquanto a orientação de Jakobs leva em consideração apenas necessidades sistêmicas, e o Direito Penal é que deve se ajustar a elas. Em suma, sustenta o funcionalismo que a dogmática penal deve ser direcionada à finalidade precípua do Direito Penal, ou seja, à política criminal. Essa finalidade seria a reafirmação da autoridade do Direito, que não encontra limites externos, mas somente internos (Günther Jakobs) ou então a proteção de bens jurídicos indispensáveis ao desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, respeitando os limites impostos pelo ordenamento jurídico (Claus Roxin).

Grifa-se que como consequência de seu funcionalismo sistêmico, Günther Jakobs desenvolveu a teoria do Direito Penal do Inimigo, que será objeto de uma apreciação mais detida em momento posterior no presente estudo.

2 A Demanda Social por Segurança

 A constatação de que a evolução da sociedade ocasiona a imperiosa necessidade de adaptação de suas ciências sociais é antiga e despreza demonstrações. Neste sentido é que se afirma ter o Direito Penal sofrido transformações ao longo dos anos – mudanças de paradigmas que não cessaram e continuarão a ocorrer.  Inúmeros foram os fatores que deram corpo a tais alterações. Acerca desta verificação, Masson (2011, p. 85) elucida que: As modificações introduzidas na humanidade ao longo dos últimos anos, com fenômenos como a globalização, a massificação dos problemas e, principalmente, a configuração de uma sociedade de risco, implicaram em profundas alterações no Direito Penal

 A questão que passa a ser relevante a partir do reconhecimento dessas alterações é o diagnóstico de sua amplitude.  Sobre este tema, Masson (2011, p. 85) expõe: Com efeito, o fato de o Direito Penal ser frequentemente convocado a controlar os novos problemas sociais acarretou mudanças na sua estrutura clássica, deturpando-se inclusive conceitos arraigados ao longo da história, O poder por ele transmitido mostra-se necessário para enfrentar os novos riscos da sociedade, na qual desponta a sensação de insegurança, profundamente institucionalizada, o delineamento de uma classe de “sujeitos passivos” dos recentes problemas, a identificação da maioria dos membros da comunidade com a vítima do delito e o descrédito de outras instâncias de proteção.

Não se pode negar o aumento das demandas em matéria penal. Em igual senda não se pode esconder os índices cada vez mais crescentes de criminalidade. Greco (2016, p. 21 e 22), em lição importante sobre este assunto, expõe:

Talvez a sociedade nunca tenha debatido tanto o tema “segurança pública” como se tem feito nos dias de hoje. Casos graves, que causam comoção social, tem sido objeto frequente de notícias pelos meios de comunicação de massa. O medo passou a fazer parte de nossas famílias. A justiça, muitas vezes morosa, entrou em descrédito. A todo instante, ouvem-se discursos no sentido de modificar a legislação penal e processual penal, normalmente visando ao aumento das penas cominadas, à redução da duração do processo e ao recrudescimento do cumprimento das penas aplicadas, procurando-se evitar a saída do condenado do sistema prisional.

Os debates lembrados por Greco acentuam o sentimento de que existe uma sociedade insegura em evidente expansão. A esse respeito, Silva Sánchez (2013, p. 40) afirma que “nossa sociedade pode ser melhor definida como a sociedade da “insegurança sentida” (ou como a sociedade do medo). Silva Sánchez (2013, p. 50) também aduz que “em medida crescente, a segurança se converte em uma pretensão social à qual se supõe que o Estado e, em particular, o Direito Penal, devem oferecer uma resposta”. Como bem destaca Andrade (1996, p. 37), ambiciona-se, com este tipo de postura, aplicar à sociedade o “efeito analgésico ou tranquilizante” do Direito Penal. Contudo, seria o Direito Penal o instrumento adequado para se atingir a “segurança” almejada? Retira-se das lições de Silva Sánchez não uma resposta, mas sim uma indagação complementar à pergunta formulada acima, uma vez que segundo o autor: A solução para a insegurança, ademais, não se busca em seu, digamos, “lugar natural” clássico – o direito de polícia -, senão no Direito Penal. Assim, pode-se afirmar que, ante os movimentos sociais clássicos de restrição do Direito Penal, aparecem cada vez com maior claridade demandas de uma ampliação da proteção penal que ponha fim, ao menos nominalmente, à angústia derivada da insegurança. (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 51)

Nesta mesma senda, Donna (apud Greco, 2016, p. 36) expõe a existência do que nomeia de Direito Penal Moderno, que em sua análise “(...) se encontra com um fenômeno quantitativo que tem seu desenvolvimento na parte especial. Não há código que nos últimos anos não haja aumentado o catálogo de delitos, com novos tipos penais, novas leis especiais e uma forte agravação das penas”. O pensamento deste Direito Penal Moderno se encontra acolhido pela promoção de um modelo pautado no uso de expedientes que combatam a criminalidade a qualquer custo. Acerca deste tema, Couto Neto (2009, p. 96-97) com clareza destaca que: A mídia age, através de seguidos noticiários, programas sensacionalistas e até mesmo de filmes, dando ênfase ao crescimento da criminalidade, associando violência estritamente à idéia de criminalidade, criando uma situação de total pânico na população que se sente ameaçada e legitima a ação, por vezes truculenta e com violação dos Direitos Humanos por parte da polícia; coloca o direito penal e a ação da polícia como solução sempre indispensável e única para a resolução de tais desvios.    Sobre a distorção do fenômeno da violência e sua consequência no campo da segurança, Silva Franco (2000, p. 112) elucida que: (...) Violência e criminalidade passam a ser expressões sinônimas, como se houvesse uma superposição conceitual, apesar da área de abrangência do conceito de violência ser bem maior do que a da criminalidade. Mas o que é pior, essa coincidência conceitual ajuda a criar um clima de pavor geral, de insegurança coletiva.

E, dentro deste contexto social de insegurança coletiva, nos dizeres de Couto Neto (2009, p. 98), “a própria população, até em sua parcela mais carente, exige uma postura “firme” da polícia (leia-se truculenta), leis mais duras e aplaude violações de Direitos Humanos, sem perceber que ela própria será a vítima dessa postura”. Ante o exposto até aqui, e com a inequívoca consciência de que o Direito Penal é a ultima ratio, um estudo mais detido sobre o clamor a este ramo jurídico para a satisfação da demanda social por segurança pode aclarar a crise perceptível em outras instâncias de proteção, conforme será ilustrado no tópico a seguir.

2.1 O Desprestígio de outras Instâncias de Proteção Social   O importante papel das outras instâncias que também e primariamente devem oferecer proteção aos cidadãos é destacado por Masson (2011, p. 86-87) ao arrazoar que: A análise da legislação moderna indica que o Direito Penal tem preferido um meio-termo, buscando a sua adaptação aos novos tempos sem, entretanto, relegar a outros ramos do Direito a relevante missão de combate à criminalidade e garantia da paz pública.

Destarte, acompanhando os ensinamentos de Silva Sánchez (2013), a referência neste ponto deve ser feita à ética social, ao Direito Civil e ao Direito Administrativo.  Em uma exposição acerca da ética social, o autor diz que: (...) a ausência de uma ética social mínima torna, de fato, imprevisível a conduta alheia e produz, obviamente a angústia que corresponde ao esforço permanente de asseguramento fático das próprias expectativas, ou a constante redefinição das mesmas. (...) Se você fala com os magistrados, eles afirmam que deles se exige uma tarefa impossível: não apenas aplicar o direito, que é sua função natural, senão também a de produzir valores, para a qual não se sentem qualificados. (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 75 e 77)

 No que se refere ao Direito Civil, Silva Sánchez (2013, p. 77-78) realiza a seguinte ilação:

(...) no que respeita ao Direito Civil de ressarcimento por danos, é mais que discutível que ele, dada a sua tendência a objetivização da responsabilidade, possa expressar a reprovação que é necessário manifestar diante de determinados fatos. Algo que está patenteado de modo particular na evolução do Direito indenizatório, desde um “modelo da responsabilidade” até um “modelo do seguro”. De fato, a partir desse modelo, é de duvidar que o Direito Civil esteja em condições de garantir dois dos aspectos, a meu juízo fundamentais, de sua função político-jurídica clássica. Assim, por um lado, se o dano está segurado, é quase inevitável que diminuam os níveis de diligência do agente, pois a seguradora responderá pelo montante da indenização, sendo sua repercussão individual, nas pior das hipóteses a correspondente a um aumento geral de valores de prêmios de seguro. Logo, o modelo de seguro tem como conseqüência um decréscimo da eficácia preventiva que o direito de responsabilidade civil por danos poderia ter em relação a condutas individuais danosas.   E, no tocante ao Direito Administrativo, a percepção trazida por Silva Sánchez (2013, p. 79) enfatiza a desconfiança depositada sobre as Administrações Públicas, via da verificação do que o autor chama de “uma tendência a buscar, mais do que meios de proteção, cúmplices de delitos socioeconômicos de várias espécies”. A constatação do descrédito oferecido às demais instâncias que ao lado do Direito Penal deveriam atuar para dotar a sociedade de segurança ou proteção, é algo extremamente nocivo. E, nesta direção: O resultado é desalentador. Por um lado, porque a visão do Direito Penal como único instrumento eficaz de pedagogia político-social, como mecanismo de socialização, de civilização, supõe uma expansão ad absurdum da outrora ultima ratio. Mas, principalmente, porque tal expansão é em boa parte inútil, à medida que transfere ao Direito Penal um fardo que ele não pode carregar.  (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 79)

Tendo em vista tamanha dificuldade, a doutrina estrangeira vem construindo respostas para esta incursão do Direito Penal em sociedades que se sentem inseguras. Algumas destas contribuições serão expostas de forma breve, para fins de reflexão, nas linhas a seguir.  

3 O Direito Intervencionista  Partindo do pensamento de Winfried Hassemer, este modelo tem como principal ideário a concepção de que o Direito Penal não deve ser ferramenta única para o controle das mais diversas mazelas sociais.  Masson (2011, p. 88) leciona que para Hassemer: o Direito Penal não oferece resposta satisfatória para a criminalidade oriunda das sociedades modernas. Além disso, o poder punitivo estatal deveria limitar-se ao núcleo do Direito Penal, isto e, à estrutura clássica dessa disciplina, sendo os problemas resultantes dos riscos da modernidade resolvidos pelo direito de intervenção, única solução apta a enfrentar a atual criminalidade.

Nota-se que a construção doutrinária em prol de um direito intervencionista altera o paradigma de um Direito Penal expandido, com amplas funções, nos moldes do que boa parte da sociedade demanda. O modelo de intervenção consistiria, pelo o que informa Masson (2011, p. 88),

na eliminação de uma parte da atual modernidade do Direito Penal, mediante a busca de uma dupla tarefa. Inicialmente, reduzindo-o ao Direito Penal básico, fazendo parte deste cerne somente as lesões de bens jurídicos individuais e sua colocação concreta em perigo. Em segundo plano, concedendo aos bens jurídicos “universais” - objetos dos maiores riscos e ameaças da atualidade, de natureza difusa e relativamente controláveis — um tratamento jurídico diverso do conferido aos bens individuais.

A ideia, pela análise do que foi trazido à baila, é a redução de funções com a ambição de se deixar ao Direito Penal somente os casos de efetiva lesão a bens jurídicos concretos, relegando ao direito de intervenção a tutela especial de condutas advindas das novas relações típicas da modernidade. Neste sentido é a lição de Machado (2005, p. 197), para quem: a proteção aos bens jurídicos supra-individuais em face dos novos riscos tecnológicos incumbiria ao “direito de intervenção” – novo ramo jurídico – e, desta maneira, restaria definitivamente afastada a intervenção penal clássica, estribada na pena privativa de liberdade e nas garantias fundamentais.

 Ante o exposto, vale trazer à tona a lembrança de que o Direito Penal não pode ser visto como o único ramo jurídico capaz de oferecer resposta às pretensões sociais por segurança, com o claro pensamento, de que suas linhas se constituem apenas como um dos meios de controle social disponíveis, aliás, e isto merece ser destacado, o mais grave desses meios.

4 As Velocidades do Direito Penal

Tomando a lição de Silva Sánchez (2013, p. 193), o Direito Penal apresenta duas velocidades iniciais, sendo a primeira, representada pelo o que o autor nomeia de “Direito Penal da prisão”, onde os princípios político-criminais clássicos, as regras de responsabilização penal e os preceitos processuais penais são seguidos à risca. Acerca da segunda velocidade, deve ser invocada “para os casos em que, por não tratar-se já de prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização”. (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 193). Em palavras mais diretas: (...) exige-se um procedimento amplo e garantista para os crimes nos quais possa resultar a imposição de pena privativa de liberdade. Por outro turno, quando a sanção penal possível de ser aplicada no caso concreto se limitar às restrições de direitos, ou à multa, a ação penal pode ser mais ágil, eis que a disputa entre o acusado e o Estado não envolve tão relevante bem jurídico: a liberdade do ser humano. (MASSON, 2011, p 91).

Observa-se que entre as duas velocidades apresentadas acima há uma disparidade de tensões e intenções, que, em um mundo ávido por “segurança” acaba por impulsionar o desenvolvimento de pensamentos antagônicos sobre a eficiência de cada um dos modelos indicados. Desta tensão erige uma teoria que adota uma terceira velocidade para o Direito Penal, na qual, nos dizeres de Silva Sánchez (2013, p. 193), “o Direito Penal da pena de prisão concorre com uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais”. O jurista espanhol aproxima a ideia de uma terceira velocidade do Direito Penal ao pensamento que o funcionalista alemão Günther Jakobs, já mencionado nesta pesquisa, difundiu em seus estudos da década de 1980 – o Direito Penal do Inimigo. Sobre o desenvolvimento da tese de Jakobs, nos dizeres de Masson (2011, p. 92): (...) em 2003, de maneira corajosa, assumiu postura inequívoca na defesa da adoção do Direito Penal do inimigo, justificando com toda uma obra doutrinária a necessidade de revolucionar conceitos clássicos arraigados na mente dos doutrinadores. Seu pensamento coloca em discussão a real efetividade do Direito Penal existente, pugnando pela flexibilização ou mesmo supressão de diversas garantias materiais e processuais até então reputadas em uníssono como absolutas e intocáveis.

Resta, portanto, evidenciado que As características do Direito Penal de inimigos seriam então, sempre segundo Jakobs, a ampla antecipação da proteção penal, isto é, a mudança de perspectiva do fato passado a um porvir; a ausência de uma redução de pena correspondente a tal antecipação; a transposição da legislação jurídico-penal à legislação de combate; e o solapamento de garantias processuais. (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 194)

A terceira velocidade ou o Direito Penal do inimigo avança de acordo com postulações emergenciais de ataque a fenômenos identificados como causadores do temor social e da tão difundida insegurança. Pode-se afirmar que o medo é o maior defensor desta teoria, uma vez que em prol da extirpação deste mal, abre-se mão de garantias penais e processuais penais. O Garantismo esboçado nas linhas iniciais deste estudo é o pilar de sustentação de um sistema que se ergueu em reconhecimento das garantias supra. No entanto, o funcionalismo radical de Jakobs, também objeto de exposição anterior, identifica e separa os indivíduos em categorias de cidadãos e de inimigos, ofertando os direitos e as garantias somente aos primeiros, afastando de tais prerrogativas os inimigos do Estado. Corroborando tal entendimento, Masson (2011, p. 95) arrazoa que: Nitidamente, enxerga-se na concepção de Jakobs a convivência de dois direitos em um mesmo ordenamento jurídico. Em primeiro lugar, um direito penal do cidadão, amplo e dotado de todas as garantias constitucionais, processuais e penais, típico de um Estado Democrático de Direito. Sem prejuízo, em parcela menor e restrita a grupos determinados, com ele coexiste o Direito Penal do inimigo, no qual o seu sujeito deve ser enfrentado como fonte de perigo e, portanto, a sua eliminação da sociedade é o fim último do Estado.

Não há dúvidas de que traços cada vez mais visíveis da aplicação da doutrina do inimigo podem ser vistos nos ordenamentos jurídicos estatais, e, na visão de Silva Sánchez (2013, p. 197) isto vem aumentando de forma gradativa dada a comodidade que tal prática gera.

5 Uma atuação segura do Direito Penal

A percepção de que os caminhos do Direito Penal na atualidade devem seguir pensamentos que os afastem da vereda dos Direitos Humanos para que se possam semear Direitos Humanos é no mínimo contraditória. Há que se raciocinar na defesa de um Direito Penal de última ou extrema razão. Queiroz (1998, p.125) nesta direção leciona que:

O Direito Penal deve ser, enfim, a extrema ratio de uma política social orientada para a dignificação do homem. Semelhante intervenção há de pressupor, assim, o insucesso das instancias primárias de prevenção e controle social, família, escola, trabalho, etc., e de outras formas de intervenção jurídica, civil, trabalhista, administrativa. Vale dizer: a intervenção penal, quer em nível legislativo, quando da elaboração das leis, quer em nível judicial, quando da sua aplicação concreta, somente se justifica se e quando seja realmente imprescindível e insubstituível.

Neste compasso, a lição de Andrade (1997, p.313) é emblemática ao apresentar que: o déficit de tutela real dos Direitos Humanos é (...) compensado pela criação, no público, de uma ilusão de segurança jurídica e de um sentimento de confiança no Direito Penal e nas instituições de controle que têm uma base real cada vez mais escassa.

Para fins de mera recordação, é preciso destacar que os Direitos Humanos gozam de primazia na ordem jurídica interna e também externa, cabendo ao legislador respeitar seus postulados fundamentais na formulação do conjunto de leis que regem um Estado Democrático, incluindo a legislação penal.  A consagração internacional dos Direitos Humanos por meio da Declaração Universal de 1948 tem por escopo “delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais” (PIOVESAN, 2010, p. 142). De tal sorte, “esta Declaração nada mais fez do que desenvolver princípios já consagrados pela Carta das Nações Unidas, razão pela qual é reconhecida a sua obrigatoriedade jurídica para todos os países, seus membros [...]” (ZAFFARONI E PIERANGELI, 2006). Do equacionado acima emerge aos Estados compromissados com os tratados internacionais que versam sobre Direitos Humanos, o dever de respeitá-los e de salvaguardá-los em seus ordenamentos internos. Igualmente, para que o Direito Penal seja aplicado respeitando um patamar mínimo de segurança para os indivíduos sociais, será preciso que se encontre em total consonância com a doutrina de proteção internacional dos Direitos Humanos, devendo, deste modo, reproduzir este alinhamento em dispositivos constantes das Constituições Federais dos Estados signatários dos Tratados e Convenções que versam sobre o tema. Destarte, ao se idealizar um modelo de Direito Penal contemporâneo, capaz de lidar com as inúmeras demandas sociais, deve-se dar ênfase às limitações de aplicação desta ferramenta. Luiz Régis Prado (2010) em raciocínio a respeito dos princípios de Direito Penal constantes do texto constitucional arrazoa que estes são: (...) o núcleo essencial da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do delito – suas categorias teoréticas –, limitando o poder punitivo do Estado, salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias de um Estado democrático e social de Direito. Em síntese: servem de fundamento e de limite à responsabilidade penal.

Da lição de Prado pode-se inferir que a atuação mais segura para um Direito Penal que privilegie seus cidadãos tem princípio na própria sistemática de proteção dos Direitos Humanos e se estende para as ordens internas com as disposições inseridas nos textos constitucionais dos Estados que se intitulam como democráticos de direito.

CONCLUSÃO

Embora se pugne por um tratamento emergencial, a questão envolvendo o medo e a insegurança não é autorizadora da quebra de um paradigma edificado sob pilares confiáveis – os Direitos Humanos. A forma como, mundo afora, as novas demandas por segurança e pelo combate ao crime e seus efeitos reconhecidamente danosos vem pressionando a aplicação da terceira velocidade do Direito Penal é preocupante especialmente pelo equívoco de tais posturas que conferem legitimidade à violação de direitos e garantias fundamentais, quebrando a máxima garantista defendida por Ferrajoli, em evidente priorização a um funcionalismo extremo, sem limites externos ao manuseio de um Direito Penal puramente punitivo e de segregação, nos termos da teoria de Günther Jakobs. Neste contexto, à guisa de reflexão final, sem ter a pretensão de findar qualquer estudo acerca desta temática, elege-se a primazia  dos Direitos Humanos como norteadora de qualquer espécie de intervenção penal, sendo, desta forma, inaceitáveis construções teóricas que pretendam desvirtuar ou se afastar deste pensamento.

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MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005.

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PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugenio Raúl.  Manual de direito penal brasileiro, vol. 1: parte geral.  6 ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

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Data da conclusão/última revisão: 18.08.2017

 

Como citar o texto:

COGO, Rodrigo; GARCIA, Naiane Vieira..A Crescente Demanda Social por Segurança e a (in)existência de limites ao Direito Penal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1467. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/3706/a-crescente-demanda-social-seguranca-in-existencia-limites-ao-direito-penal. Acesso em 8 set. 2017.

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